Uma aproximação política ao Lesbianismo - Beatriz Gimeno Reinoso

Ensaio onde a autora exibe a verdadeira perspectiva lesbofeminista sobre sexualidade, onde esta é uma construção social, ao invés da visão predominante de 'orientações sexuais' estabelecida pela hegemonia liberal no meio LGBT, primariamente impulsionada pelo movimento gay masculino. Demonstra que ficar refém dessa perspectiva é adotar definições masculinas da realidade e tais análises não servem para compreender a realidade das mulheres sob patriarcado, onde suas sexualidades são usadas para manutenção do mesmo sistema.

“Uma aproximação política ao lesbianismo” (Des)construção social da sexualidade – Beatriz Gimeno, 2003.

TRADUÇÃO COLETIVA
Colaboradoras (revisão e tradução): Saligia, Luca, Natalia Andrade, Amanda Verrone, Jan, Mona, Sophia Andreazza, Larissa, Bárbara, Elis.
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NOTAS DE TRADUÇÃO

NT 1 A palavra utilizada no original em espanhol era “opción” (opção), preferimos traduzir por “escolha”, porque opção além do ranço convervador, traz a idéia de escolhas por alternativas, quando é falso que lesbiandade é colocada como uma alternativa possível pelo sistema pelo qual uma mulher simplesmente “opta”. Escolha traz implícita a idéia de ter bancado uma decisão por algo, que é o ponto ético da lesbiandade num mundo patriarcal que coloca todas dificultades possíveis a mulheres que trilham esse caminho.

NT 2 Mantendo lesbianismo ao invés de lesbiandade ou lesbianidade, pois no Brasil houve essa mudança (países hispano-falantes não) porque homossexualismo era catalogado como doença, mudaram para homossexualidade (e movimento lésbico brasileiro inventou o “lesbianidade”). Tampouco acho essa opção boa porque foi a mudança liberal de doença para uma “sexualidade” congênita, visão que o texto quer questionar. Lesbiandade acho interessante foi uma adaptação meio coloquial que acaba por se referir aquilo que se refere ao “Lésbico” para além da prática sexual.

NT 3 Já diria Amélia Valcárcel, a agenda política do feminismo ainda é uma agenda terrível (femimício, casamento infantil, violência doméstica, tráfico de mulheres) para poder dar-se o luxo de ser esvaziada em uma teoria do desejo e como esse desejo pode expressar-se, como é o caso das teorias queer. Em: www.youtube.com/watch?v=TQDM34iJIeM

“Uma aproximação política do lesbianismo” (Des)construção social da sexualidade – Beatriz Gimeno, 2003.

1. Uma aproximação política do lesbianismo

Com esse artigo eu gostaria de me aproximar de uma questão que é crucial para mim, como lésbica feminista, que é explicar que o lesbianismo NT 1 tem uma dimensão política que as feministas lésbicas precisam resgatar. A partir disso, o lesbianismo não é só uma maneira de viver a sexualidade: também pode ser uma escolha política ou vital. Para entender que o lesbianismo, a sexualidade em geral, traz desde já uma perspectiva política, é preciso assumir que a homossexualidade e a heterossexualidade não são equivalentes, nem são simplesmente diferentes maneiras de viver a sexualidade, mas sim regimes que cumprem diferentes funções sociais.

A heterossexualidade, o regime regulador por excelência, não é a maneira natural de viver a sexualidade, mas sim uma ferramenta política e social com uma função muito concreta que as feministas denunciaram há décadas: subordinar as mulheres aos homens 1. A heterossexualidade é, como diz Ivan Ilich, a “ortopedia conceitual do patriarcado”, um regime regulador da sexualidade que tem como finalidade contribuir para a distribuição desigual de poder entre homens e mulheres, criando uma categoria de opressores, os homens, e uma categoria de oprimidas, as mulheres.

Portanto, apenas se entendermos a heterossexualidade como um regime que prejudica diretamente as mulheres, vamos poder entender que algumas delas resistem a ele. Onde há poder, há resistência, disse Foucault 2 (1987). Se reconhecermos que o poder masculino é exercido sobre as mulheres, sobre todas as mulheres, através da instituição da heterossexualidade, é lógico esperar encontrar resistência a essa instituição em qualquer época; e assim foi. A heterossexualidade é a principal ferramenta do patriarcado e a resistência das mulheres a essa instituição começa com o próprio corpo, uma vez que é o corpo que está em jogo; a resistência começa com um corpo que se nega e que diz “Não” à opressão 3 (Marlene Faith, 1994). O lesbianismo é então uma forma, entre outras, de dizer “Não” à opressão. E assim tem sido historicamente, e assim pode continuar a ser nos dias de hoje.

Isso que se tornou difícil de entender hoje em dia era, no entanto, inteligível para as mulheres que militavam no movimento feminista das décadas de 60 e 70, e inclusive nos anos 80. Depois, essa explicação desapareceu do panorama interpretativo e, atualmente, defender que o lesbianismo é, ou pode ser para algumas, uma opção, é quase impossível. O pós-modernismo, a teoria queer, veio fazendo esforços árduos para despolitizar a sexualidade, tanto a homossexualidade masculina, como a sexualidade em geral. As relações de poder entre homens e mulheres, o que antes se conhecia como patriarcado, mas que está cada vez mais difícil chamar assim, foi literalmente apagado do mapa e com isso a possibilidade de enfrentá-lo politicamente. Assim, nos últimos anos o capitalismo veio empreendendo o processo destinado a acabar com qualquer questionamento político da sexualidade e assim com qualquer questionamento à política da heterossexualidade compulsória, ao regime regulador da sexualidade no ocidente. Desapareceu qualquer análise dos homens como grupo detentor de maior poder que as mulheres, bem como a reflexão sobre os lugares que ocupam opressores e oprimidos. Mas se analisamos o lesbianismo sem ter em conta as relações de poder que o patriarcado estabeleceu entre mulheres e homens, sem ter em conta quem são os beneficiários da instituição da heterossexualidade e quem são suas vítimas, não poderemos entender quase nada do que ser lésbica significa para muitas mulheres e do que significou ao longo da história. Nos dias de hoje, para as ativistas lésbicas o debate sobre se o lesbianismo (a homossexualidade) é ou não uma escolha política só é possível como reflexão ideológica em círculos restritos e acadêmicos, e não em qualquer um. O certo é que se busca acabar com qualquer virtude que a sexualidade possa ter para potencializar uma mudança social. E o lesbianismo, por ser uma escolha que se situa fora da heterossexualidade compulsória, desde o lugar das oprimidas, é um lugar privilegiado
para proporcionar essa mudança.

Ao longo da história houve muitas mulheres que rejeitaram a heterossexualidade por entender e experimentar esta como uma instituição opressiva não apenas sexualmente. Estas mulheres criaram um espaço que historicamente foi visto de fora como o lugar da lésbica, e ocuparam este espaço buscando benefícios pessoais e melhor qualidade de vida. Os limites desse espaço foram mudando com o passar do tempo, e esse espaço foi se definindo de diferentes maneiras até chegar ao momento presente em que é definido fundamentalmente, gostemos ou não, pelo que é agora chamado de “orientação sexual”.

Lésbicas feministas defendem que o lesbianismo é uma escolhaNT 2 de vida. É certo que a maioria dos gays não vivem isso dessa maneira, eles costumam sentir que nasceram assim e que não foi possível escolher. Porque quem escolheria ser gay? E é precisamente a possibilidade de fazer essa pergunta a principal diferença entre ser gay e ser lésbica, porque o certo é que enquanto o lesbianismo pode ser vivido como uma condição libertadora, isto é impossível para os homens. A condição masculina significa pertencimento ao gênero que detém todo o poder. Ser gay significa renunciar ou ser privado de alguns dos privilégios masculinos, embora nunca de todos, ou de nenhum no caso em que a homossexualidade não se faça visível. Em todo caso, para um homem gay “conformar-se é receber as gratificações que os esperam como homens” (Bersani 1995)5, entretanto para uma mulher heterossexual conformar-se é aceitar a desigualdade, enquanto caminhar para o lesbianismo é chegar a um espaço que oferece benefícios importantes, logo, razões de sobra para se posicionar assim.

O espaço do lesbianismo nem sempre foi exclusivamente sexual, às vezes não foi sexual de nenhum modo. Mas foi de qualquer forma um espaço simbólico e social que não inventaram, a propósito, as próprias mulheres, nem mesmo as mesmas lésbicas. Em muitas ocasiões o espaço das lésbicas representou um lugar reservado à punição que a sociedade patriarcal destinava a determinadas mulheres que não se ajustavam ao papel feminino tão bem como deveriam. Lugar de punição sim, mas também de libertação, coisa que evidentemente não ocorreu e nem pode ocorrer com a homossexualidade masculina. A homossexualidade masculina não traz vantagens de nenhum tipo aos homens nem mesmo nas sociedades em que foi ou é admitida socialmente, uma vez que em nenhuma sociedade conhecida a heterossexualidade foi socialmente penalizada. O lesbianismo foi configurado para algumas como um espaço ambivalente, por um lado de estigma, mas também como um lugar (lugar físico, do corpo, mas também lugar simbólico, lugar social) em que é possível melhorar as condições de existência. E como uma situação mais desejável que outras, dentro das limitadas opções que as mulheres tinham, foram muitas que ao longo da história, e mesmo agora, poderiam ter escolhido ocupá-lo voluntária e conscientemente.

O lesbianismo como escolha vital e de resistência tem centenas de anos de história, mas somente no século XX essa ideia pôde ser articulada ideologicamente e se tornar uma posição política. Embora muitas mulheres ao longo da história tenham ocupado, voluntária ou involuntariamente, aquele espaço que hoje chamaríamos de lesbianismo por causa da opressão que sofreram como mulheres, as lésbicas feministas foram as primeiras, já em meados do século XX, que articularam seus motivos e criaram nele um corpus ideológico coerente. Não existe, e nunca houve, uma barreira intransponível entre lésbicas e outras mulheres, apesar dos esforços de moralistas, especialistas e, finalmente, ativistas gays para nos separar. Nós, mulheres, sempre soubemos que essa fronteira é muito permeável e, de fato, eles passaram a história dizendo, suspeitando, imaginando, temendo, escondendo, mas também promovendo e gostando.

Esquecer que na maioria dos períodos históricos as mulheres, se pudessem escolher, teriam escolhido não ter relações sexuais com homens 6 (Pomeroy 1987), não morar com eles, não se relacionar com eles, é esquecer algo fundamental na história das mulheres (e homens). E hoje, o lesbianismo como estilo de vida ainda tem algo a oferecer às mulheres. Muitas de nós acreditamos, sabemos, que o regime de heterossexualidade compulsória continua sendo uma das principais ferramentas que o patriarcado usa para oprimir as mulheres; não é o único, é claro, mas um dos mais importantes. É verdade que o problema é o patriarcado e não a prática da heterossexualidade em si, mas também é verdade que é a heterossexualidade que realmente penetra na vida e no corpo das mulheres. Ficar no espaço físico do lesbianismo pode ser libertador desde que seja assumida uma posição de fora em relação à heterossexualidade, enquanto o corpo se sente mais livre e respira, enquanto se pode observar (a si mesmo) do lado de fora e se tornar mais consciente dos mecanismos de opressão que operam sobre nós.

A heterossexualidade não é naturalmente mais difundida que a homossexualidade, nem é a maneira pela qual a maioria dos seres humanos é condenada a se relacionar. A heterossexualidade não é apenas ensinada, mas também são feitos esforços intensos para que a maioria das mulheres sinta que não tem outra opção; a heterossexualidade é fortemente induzida e, portanto, os múltiplos mecanismos destinados a sustentá-la, ensiná-la, favorecê-la, punir a dissidência, pressionar as mulheres a se tornarem heterossexuais: mecanismos psicológicos, sociais, econômicos, políticos. Se a heterossexualidade fosse natural, ou mesmo benéfica para as mulheres, não seriam necessários os mecanismos enormemente complexos que são empregados para mantê-las dentro dela.

Enquanto isso, o feminismo luta com ousadia para limitar o dano que a heterossexualidade causa às mulheres, luta pelo direito ao aborto, mas não ensina às mulheres que o melhor método contraceptivo, o menos prejudicial para elas, é não praticar o coito. Ele luta para que nenhuma mulher seja maltratada, para que não percam suas energias intelectuais e/ou afetivas com os homens, para que não deixem seus parceiros roubarem sua auto-estima ou seu tempo, mas nem sequer considera a opção de que muitas mulheres teriam muito a ganhar se houvesse uma equação que colocasse o homo e a heterossexualidade em pé de igualdade ou até promovesse a não-heterossexualidade. Somos ensinadas a reduzir os danos dos problemas de saúde física, mental, econômica, política e pessoal, mas não nos dizem que esses problemas também podem ser combatidos com o estilo de vida lésbico 7 (Frye 1996).

Como passamos de considerar que a sexualidade é um contrução social para considerar que a política não tem nada a ver com isso? Houve vários fatores que contribuíram para despolitizar o regime de nosso desejo. Entre eles, a luta pelos direitos dos gays não é o menor. A luta pelo direito dos gays foi feita ultilizando, entre outras coisas, a ideia de que ninguém é responsável por sua orientação sexual e, portanto, ninguém pode ser penalizado por isso. O que era uma escolha sexual nos anos 60 e 70 foi chamado de “orientação”. Mas, apesar de seus benefícios estratégicos, com o triunfo desse fluxo misterioso que parece ser orientação sexual e que decide o regime de nossos desejos e afetos, uma parte muito importante da história de resistência das mulheres está sendo negada. “Lésbica” sempre foi uma palavra, ou um conceito sem nome, para expressar resistência feminina à opressão masculina, e apenas é mais perturbador escolher um estilo de vida lésbico quando, pressionadas pela política gay, achamos nossa experiência reduzida a uma orientação imutável que não depende absolutamente da nossa vontade. As lésbicas feministas sabem que o heteropatriarcado constrói não só as práticas sexuais, mas fundamentalmente o desejo, que pode ser mudado para uma contrução sexual mais justa, afetiva e vital para todas e todos.

Ao longo da história, as relações entre mulheres nunca foram especialmente reprimidas quando comparadas à repressão exercida contra homens que praticam a homossexualidade. A verdade é que leis repressivas contra as mulheres não eram necessárias porque, por um lado, as mulheres não têm o poder como classe de fazer com que suas ações sejam significantes e, por outro, a repressão tem sido exercida sobre suas vidas de maneira absoluta. Que importa o que uma mulher sente ou pensa se finalmente precisa se ajustar à heterossexualidade para sobreviver? O que importa quais relacionamentos estabelece com outras mulheres se é forçada a se casar para se alimentar? O que importa o que as mulheres fazem, pensam, dizem ou escrevem se o que conta é que a heterossexualidade regula as relações sociais e econômicas de todas elas?NT 3 Qualquer desvio da norma, no caso das mulheres, por não ter consequências, é considerado um desvio menor, uma estratégia pessoal para criar pequenos espaços para respirar. Mesmo a partir do século XVII, as relações entre mulheres são sexualizadas a partir do desejo masculino, tornando-as mais um aspecto de suas imagens eróticas. Afinal, o que quer que as mulheres fizessem, execto por um número insignificante de privilégios, elas não tinham escapatória.

Mas essa situação muda a partir do século XIX. Nesse momento, as mulheres começam a conquistar, através do impacto do movimento feminista, espaços reais de autonomia. As mulheres começam a entrar na universidade e a trabalhar, e é nesse momento que as relações entre as mulheres se tornam realmente perigosas, pois, como disse um comentarista do final do século XIX protestando contra a crescente incorporação feminina ao trabalho: “O que a vida matrimonial pode oferecer agora a uma mulher liberada?”.

De fato, por que suportar um regime de subordinação, como a heterossexualidade compulsória, se não é necessário? De repente, como atestam muitas notícias da época, as mulheres que conseguem se sustentar começam a desprezar o casamento. E então ocorre a reação backlash. Os relacionamentos entre mulheres, ignorados na pior das hipóteses e socialmente sancionados na melhor delas (como foi o caso dos chamados “casamentos de Boston”), são considerados uma doença social e as mulheres que rejeitam a heterossexualidade compulsória são consideradas doentes. Durante o século XIX e até a segunda metade do século XX, o modelo patológico da lésbica é instaurado. Não é necessário explicar como os diagnósticos psiquiátricos e psicológicos têm sido utilizados como ferramentas de opressão e controle de grupos que ameaçam a cultura dominante, incluindo mulheres, não apenas as lésbicas. Sabemos como as mulheres que desafiaram o modelo feminino imposto foram invisibilizadas ou estigmatizadas com diagnósticos não apenas de doenças psiquiátricas, e sabemos como o rótulo da doença mental serviu para despolitizar movimentos incipientes de dissidência da versão da realidade dominante. O que o diagnóstico médico tenta fazer é explicar a dissidência sempre como uma questão individual 8, uma patologia pessoal, a fim de impedir que ela se torne social.

Apesar das pressões, as mulheres continuaram seu caminho libertador e nos anos 60 do século XX, graças ao movimento feminista, o modelo patológico havia sido superado na maioria dos casos. Assim, as feministas conceberam o lesbianismo como uma possibilidade disponível para qualquer mulher, era uma escolha política libertadora com enorme potencial de mudança. Mas foi um breve intervalo que imediatamente provocou uma reação furiosa da sociedade, e desta vez surgia como cúmplice da reação o movimento gay, que tinha seus próprios interesses a defender.

O interesse dos homossexuais masculinos é despatologizar a homossexualidade masculina, mas também despolitizá-la, pois eles, como homens, não têm nada a ganhar com o desaparecimento do patriarcado. É verdade que a heterossexualidade também oprime os gays, mas esse é precisamente o objetivo do movimento de libertação homossexual: que parem de oprimi-los como gays, mas deixar intocados os benefícios que eles recebem como homens. Portanto, a operação política consiste em converter o seu desejo, o desejo em geral, em algo que escapa à vontade individual de cada um, em algo pelo qual ninguém é responsável. O modelo imposto desde a década de 1980 é o modelo sexológico, a estrutura interpretativa típica do capitalismo liberal, contrária a qualquer interpretação política da sexualidade. É o modelo no qual nos encontramos atualmente e que explica a homossexualidade com base na chamada “orientação sexual”. Não é uma mudança trivial 9, é uma mudança estratégica com muitas vantagens aparentes, incluindo transformar a homossexualidade em algo socialmente aceitável para todos e pela qual ninguém é “culpado”, despojando-a, ao mesmo tempo, de qualquer razão política e, portanto, de seu potencial revolucionário.

O fato de ser uma mudança que apresenta certas vantagens imediatas na luta pelos direitos é o motivo de o movimento gay, os cientistas gays, a intelectualidade gay em geral, ter asssumido a tarefa – impensável até umas décadas atrás – de demonstrar que a homossexualidade tem sua origem em alguma particularidade biológica. Os cientistas se esforçam em demonstrar que, uma vez que a homossexualidade não se escolhe, ninguém é culpado de nada. Os homossexuais são, simplemente, um tipo especial de pessoa que não merece que sobre ela recaia qualquer estigma. Se o estigma da homossexualidade desaparece e no seu lugar aparece o estigma da homofobia, os gays serão mais livres. Mas as lésbicas continuarão sendo mulheres que ocupam o lugar que esta sociedade reserva às mulheres.

Por isso o conceito de orientação sexual não serve para nós feministas lésbicas que
continuamos nos considerando mulheres que rechaçam a instituição política da
heterossexualidade compulsória. Que somos mais do que um tipo especial de mulher ou mais do que simplesmente mulheres sexualmente diferentes 10. O discurso da identidade sexual fixa e imutável não passa de mais um dos discursos relacionados com a sexualidade próprios do capitalismo tardio, e um dos mais exitosos certamente. Mas para chegar a impor essa explicação, os cientistas tinham que antes apagar tudo o que as feministas lésbicas sabiam sobre o lesbianismo.

Muitos trabalhos que pretendem fazer uma aproximação explicativa da realidade homossexual, independentemente de qual seja a parcela da realidade que estudem, começam com uns quantos capítulos que trazem um apanhado de diferentes teorias que vieram sendo formuladas sobre as causas da homossexualidade. A eterna pergunta sobre as causas da homossexualidade está mais em voga hoje em dia do que nunca. Todo mundo fala sobre isso. Se o autor é ele mesmo gay, como é o caso na maioria das ocasiões, sua posição costuma ser a de explicar que de todas as teorias, que ele mesmo percorre exaustivamente, nenhuma afinal é conclusiva a ponto de poder dar a explicação final da causa da homossexualidade. Finalmente, a maioria dos autores afirma que o mais provável é que a homossexualidade não esteja relacionada a uma única causa, mas a um conjunto de fatores: educacionais, ambientais e predisposição genética; entretanto, misteriosamente, esta predisposição genética parece afetar apenas aos homens, o que, por sua vez, desencadeia muitos questionamentos. Muitos autores, cegos pelo androcentrismo, não se preocupam em explicar que todas essas teorias referem-se unicamente à homossexualidade masculina, embora, uma vez lido o trabalho, se perceba que é realmente assim. que trabalho gente? *olhar o original depois Alguns autores, mais honestos ou mais cuidadosos com seus dados, preocupam-se, ao menos, em deixar claro que as causas citadas e sempre buscadas da homossexualidade, certas ou não, explicariam apenas a homossexualidade masculina. Em contrapartida, as autoras lésbicas geralmente não incluem em suas investigações pesquisas ou revisões das possíveis causas da homossexualidade; pode-se dizer que não as preocupam. Elas não pesquisam o cérebro, nem os genes, nem os hormônios, as causas da homossexualidade feminina. Mas isso não importa porque suas contribuições não se tornam parte do acervo de conhecimento científico acerca da homossexualidade. As autoras lésbicas que escrevem sobre
lesbianismo não podem formar teorias gerais sobre a homossexualidade, enquanto os autores gays possuem este poder.

Dos cientistas gays, esta tendência passou para os meios de comunicação gerais em que, nos últimos anos, são constantes os estudos e artigos sobre a conduta de homens e mulheres que se baseiam no estudo do cérebro, dos cromossomos, dos genes. Vivemos uma autêntica e intensa quantidade de informações acerca da determinação genética da conduta. Assim, nos últimos tempos fomos capazes de ler que as mulheres são naturalmente menos promíscuas, que buscam homens ricos, que têm pouca habilidade espacial e mais habilidade linguística; que os homens buscam expandir seus genes para favorecer a espécie e por isso são naturalmente promíscuos e buscam mulheres jovens e belas; que as mulheres preferem trabalhar em casa e os homens fora, e encontraram os genes que favorecem a crença em um deus e mesmo aqueles que nos impulsionam a consumir 11 (portanto o capitalismo está com sorte, consumir é plenamente natural). Na realidade, o que estamos assistindo é uma ofensiva ideológica que tem como objetivo minar a ideia do caráter fundamentalmente construído de nossa conduta, especialmente no que se refere a comportamentos e papéis de gênero.

É evidente que as teorias sexológicas ou de diferença sexual não incomodam os gays, que estão confortáveis com elas. Como caso paradigmático e de um tempo próximo se encontra a famosa teoria sobre a origem da homossexualidade do professor Simon LeVay, que a relaciona com o tamanho do hipotálamo. O professor LeVay não se conformou em buscar – e encontrar – a origem da homossexualidade (masculina), e logo encontrou algo que os homens adorariam saber: que os homens são mais promíscuos que as mulheres porque “algo no cérebro de machos e fêmeas induz a que ajam assim”. Em todo caso, LeVay não tem mais remédio para reconhecer que sua teoria acerca da orientação sexual (muito contestada em todo caso, mas que encontrou grande eco nos meios de comunicação) não é válida para as mulheres, visto que não pôde observar nenhuma diferença entre o hipotálamo das lésbicas e das mulheres heterossexuais.

Ao mesmo tempo que descobrem que a homossexualidade é plenamente natural do ponto de vista da biologia, as mesmas descobertas conduzem especialistas (do sexo masculino) a afirmar, sem que se saiba o porquê, que os homens são mais propensos à homossexualidade que as mulheres. E aqui encontramos uma questão que vale revisar: quando os pesquisadores explicam, ou mesmo buscam, a origem da homossexualidade, é normal supor que a homossexualidade masculina tem uma gênese e um desenvolvimento diferentes da feminina e não se dedique nenhuma linha para explicar por qual razão isso acontece? Por que não existe uma teoria geral que aproxime as teorias acerca da gênese do lesbianismo às teorias sobre a gênese da homossexualidade masculina?

Embora pareça uma explicação simplista (a misoginia não requer uma grande complicação conceitual), o mais provável é que diante do onipresente pensamento androcêntrico, as pessoas se bastem em pensar uma teoria acerca da homossexualidade masculina, e que depois simplesmente se conformem em elevá-la à categoria de teoria geral, não importando que a realidade das mulheres não se ajuste a tal marco explicativo. A não adequação de uma explicação à realidade de mais da metade da humanidade não parece ser suficiente para invalidar a generalidade de uma teoria.

Mondidore, por exemplo, depois de escrever um livro para demonstrar a origem biológica da homossexualidade, e encher páginas e páginas de hormônios, genes, hipotálamos, cromossomos… é obrigado a deparar-se num momento ante a realidade de que as lésbicas não parecem se ajustar em nada a suas teorias, problema que despacha com a seguinte frase: “A orientação sexual nas mulheres parece seguir um programa menos rígido que a sexualidade dos homens e se conformar mais às experiências de relação” 12. Por quê? Que programa é esse? E que consequências tem isso então para as mulheres? Não parece que importe a ele. Curiosamente, ele empenhou os gays de naturalizar a homossexualidade masculina por uma parte, junto ao empenho das feministas lésbicas por manter uma explicação social para o lesbianismo, bem como os restos das antigas explicações que desde o século XIX se utilizaram para despolitizar o lesbianismo e patologizar o desvio feminino. Isso determinou que na atualidade as causas fisiológicas sejam utilizadas cada vez mais para explicar a etiologia da homossexualidade masculina, enquanto que para o lesbianismo seguem sendo utilizadas explicações do tipo psicologizantes.

Esta situação é certamente paradoxal porque é em si mesma uma contradição com um dos pilares da construção das diferenças de gênero: o que ao longo da história sustentou como uma verdade indiscutível que as mulheres são mais dependentes da biologia que os homens. Vamos supor que essa nova perspectiva da questão não seja mais que uma consequência não desejada de tentar naturalizar de maneira obssesiva a orientação sexual nos homens.

Desde o século XIX, as causas da homossexualidade feminina são buscadas tanto na
biologia como na psicanálise. De fato a psicanálise é quase uma teoria sobre a homossexualidade feminina, enquanto ao tentar teorizar a homossexualidade masculina, sempre se deparou com problemas. Mas a psicanálise não se ocupou da homossexualidade feminina porque estivesse interessada nela, senão porque surgiu como um marco interpretativo que vinha se encarregar da tarefa de colocar as mulheres dissidentes em seu lugar, no lugar que lhes correspondia e de que de princípios do século XIX até hoje, pareciam querer escapar.

Portanto, é perfeitamente lógico e consistente que, na história da psicanálise, “A homossexualidade da mulher é teorizada quase exclusivamente em termos do que é “pré”: o pré-edipiano, o pré-simbólico, o pré-direito, o prematuro e até o pré-sexual. A psicanálise em geral, mas a teoria da homossexualidade feminina em particular, posiciona seus sujeitos como sujeitos fundamentais, elementares, primitivos e, definitivamente, como sujeitos anteriores às operações normativas e heterossexuais do complexo de Édipo, essa coordenada legal e legalizadora" 13 que estabelece a civilização .Embora a psicanálise originalmente tentasse explicar a homossexualidade em homens e mulheres, a homossexualidade feminina logo se tornou o objeto fundamental de estudo dessa disciplina. O estudo da inversão em mulheres é essencial em Freud, mas absoluto em Lacan, de quem Diana Fuss, parafraseando a observação de Catherine Climent (1983) de que “no começo Lacan só se interessava por mulheres”, diz: “no começo Lacan estava interessado apenas em mulheres homossexuais”.

Em todo caso, de Freud a Julia Kristeva, a fase pré-edipiana tem definido a organização psíquica fundamental da mulher homossexual, que, ao que parece, nunca pode acessar completamente sua posição como sujeito e permanece, portanto, nesse espaço ambíguo do pré-cultural. O espaço que eles haviam nos colocado de todas as formas, muito antes da psicanálise existir.

Embora haja sido resenhado à exaustão pelas feministas, aos psicanalistas homens não parece ter causado espanto a chamada de atenção para o fato de que nem as teorias biologicistas nem as psicológicas levam em conta o papel do patriarcado, as condições sociais e materiais que atuam neste jogo de forças e que convertem os homens, sejam ou não gays, em beneficiários da instituição heterossexual, e às mulheres em suas vítimas. Para afirmar por exemplo, como costumam fazer todos os pesquisadores, que a incidência da homossexualidade é muito maior entre os homens que entre as mulheres (sem que este fato suscite, por outra parte, a necessidade de buscar qualquer explicação), costumam se basear no informe Kinsey (1953) do qual extraem a conclusão de que a porcentagem de lésbicas seria de 6% da população, frente a 10% de gays.

Durante muito tempo as lésbicas feministas acusaram a Kinsey de ser cegamente androcêntrico ao não considerar os fatores sociais que impediam as mulheres dos anos 50 de imaginar sequer a lesbianidade, o que dificultaria, sem dúvida, que pudessem declarar-se como tal nem sequer de maneira confidencial; também acusaram a Kinsey durante muito tempo de não cruzar dados de lesbianidade com os de insatisfação sexual das mulheres que mantinham relações sexuais com homens, que são bastante altos. Todavia o incômodo das feministas contra Kinsey é injustificado uma vez que ele foi, em realidade, um dos poucos investigadores da sexualidade que observou a questão da heterossexualidade como instituição opressiva ou, pelo menos, pouco desejável para muitas mulheres. Foram os seguidores do cientista americano que, em plena época do puritanismo sexual, se encarregaram de atuar como “apagadores”.

A respeito dos maiores índices de heterossexualidade em mulheres em comparação dos homens, Kinsey diz que: “Talvez a incidência maior de heterossexualidade nas mulheres reflita simplesmente uma história de acomodação aos homens de um determinado contexto sexual ou de conformismo com determinadas expectativas sociais” 14, nada de misteriosos fluxos interiores, nada de biologia. E quanto às altas cifras de insatisfação sexual nas mulheres heterossexuais, Kinsey talvez não tenha chegado a cruzar os dados, mas afirmou claramente que as lésbicas eram as mulheres mais satisfeitas sexualmente e que as mulheres que, alguma vez em sua vida, realizaram sexo lésbico eram muito mais capazes de desfrutar de sua sexualidade e corpo.

Além disso, Kinsey demonstra que uma elevada porcentagem de mulheres havia tido experiências sexuais lésbicas (28% das entrevistadas nos anos 50) e assegurou que a frequência de desejos homoeróticos entre as mulheres, bem como a frequência com que se ocorria sexo lésbico, impedia dizer que as lésbicas fossem um tipo especial de mulheres. Para Kinsey não existem lésbicas, e sim experiencias sexuais lésbicas das quais qualquer mulher pode desfrutar. Também diz o mesmo sobre a homossexualidade masculina. A diferença é que os índices de insatisfação sexual entre mulheres que praticam sexo heterossexual são muito altas, tão altas que, combinadas com os também altos índices de satisfação sexual nas lésbicas, permitiriam afirmar que para desfrutar o sexo, tornar-se lésbica é quase uma garantia.

Nada disso é citado por seguidores de Kinsey ou por investigadores posteriores, que se apegam à porcentagem de 6% de lésbicas. Os seguidores de Kinsey muito menos reconhecem que em suas pesquisas muito mais mulheres que homens se colocam na metade de sua escala e informam oscilações importantes ao longo da vida que vão inclusive de um extremo ao outro dentro da escala (desde a heterossexualidade exclusiva até a homossexualidade exclusiva) 16. Apesar de as conclusões realmente revolucionárias do relatório de Kinsey nunca terem sido levadas em conta, e muito menos incorporadas na sabedoria ou ciência sexual, Kinsey deixa claro que, ao menos nas mulheres, o desejo é fluido e inclusive “em algumas pessoas é tão variável como o tempo” 17. Ainda que sutilmente e nunca assumidamente, o relatório de Kinsey continua sendo a fonte mais citada para a porcentagem de lesbianismo, e isso é assim porque o indicativo de 6% é mais aceitável que as muito mais altas que saem em outros estudos, como o Relatório Hite. O Relatório Hite, publicado em 1976 18, deveria converter-se na fonte principal sobre sexualidade feminina já que está dedicado a esta exclusivamente. Hite afirma que, mesmo sendo verdade que a porcentagem de práticas lésbicas é baixa em relação à porcentagem de homens que têm práticas homossexuais, no entanto, ao contrário daqueles, a maioria das mulheres sente curiosidade pelas relações lésbicas e são bem poucas as que manifestam sentimentos de nojo ou repugnância ante este tipo de sexualidade, enquanto que neste aspecto os dados se invertem com relação aos homens; ou seja,enquanto menos mulheres têm experiências homossexuais em relação aos homens, por outro lado mais mulheres que homens manifestam curiosidade ou certo interesse por estas práticas, bem como muito menos mulheres expressam repugnância ao lesbianismo.

Para onde quer que olhemos, a maioria dos estudos, conhecidos ou não, dão conta também da enorme quantidade de mulheres que experimentam desejos lésbicos, número que é inversamente proporcional ao daquelas mulheres que gozam de suficiente autonomia, pessoal e social, para poder levar estes desejos à prática. Por exemplo, podemos citar um estudo pouco conhecido, o que realiza o espanhol Ramón Serrano Vicens em 1961 19 e que não pôde publicar até 1974. Neste trabalho, de 1471 mulheres estudadas, seis em cada dez entrevistadas admitem terem tido alguma vez desejo de manter relações sexuais com alguma amiga ou conhecida, embora somente três de cada dez tenham tido oportunidade de levar seus desejos à prática. O que é interessante neste estudo – e nisto coincide com outros muitos – é que perguntavam às mulheres entrevistadas o que buscavam das relações homossexuais, pergunta que se faz poucas vezes tendo em conta que se dá por certo que as pessoas buscam prazer no sexo. Buscam, como diz Oscar Guash, orgasmos e isso o fariam seguindo um instinto incontrolável.

As mulheres entrevistadas por Serrano Vicens, por outro lado, afirmam que o que buscam no sexo com outras mulheres são carícias, palavras e atitudes que os homens não podem oferecer. Em outras palavras, elas são capazes de encontrar explicações racionais para o seu desejo, não o atribuem à orientação do nascimento e buscam muito mais que o orgasmo: buscam, entre outras coisas, por palavras. Mondidore (1998) afirma que “a pesquisa psicológica e sociológica revelou que, pelo menos em algumas mulheres, a orientação sexual é mais fluida que nos homens”. Segundo ele, as mulheres têm muito mais fantasias de “preferência cruzada” que os homens e, devido a fatores desconhecidos, sua orientação sexual parece seguir um programa menos rígido que os homens e se adaptar mais às experiências de relacionamento.

E, embora os especialistas falem sobre “fatores desconhecidos” e o modelo de explicação sexológica prevaleça, a verdade é que se sabe que qualquer mulher pode ser lésbica, mesmo que esse conhecimento não seja levado às suas consequências definitivas. Por exemplo, as mulheres que fazem sexo com mulheres em filmes pornográficos são lésbicas? E as mulheres que praticam sexo lésbico a pedido de seus maridos? São lésbicas as mulheres que, na publicidade, acariciam, beijam, procuram umas às outras, dando a entender que há algo mais, algo morbidamente emocionante, por trás dessas carícias? Na vida real, não há poucos maridos ou parceiros que gostariam que suas eposas participassem de duplas lésbicas – e muitos têm sucesso; na verdade, esta é uma das fantasias masculinas heterossexuais mais recorrentes. Que papel a mulher desempenha nessa fantasia? Sendo um objeto, supomos, e nunca um sujeito; sendo um objeto sem capacidade de usufruto autônomo, porque se assim fosse, poderia ocorrer a circunstância de acabar descobrindo que ela gosta muito mais do relacionamento lésbico que do que mantém com o marido. A possibilidade de manter as mulheres como objetos e não sujeitos é o que permite que essa fantasia continue sendo mantida. Por que, pelo contrário, não é imaginável que um homem faça sexo gay apenas para satisfazer a sua esposa, quando também há evidências de que assistir a cenas de sexo gay é emocionate para a maioria das mulheres? Isso não é imaginável por várias razões, entre as quais a impossibilidade de reduzir os homens a objeto, por um lado, e também que cada desempenho da sexualidade masculina é um exercício de reafirmação da identidade masculina, o que não é o caso da sexualidade feminina, sempre vicária.

Já dissemos que Kinsey foi capaz de verificar algo conhecido, que o desejo das mulheres é variável em termos de seu objeto ou, pelo menos, mais variável que o dos homens. Certamente, a heterossexualidade está mais rigidamente ligada à masculinidade que à identidade feminina, porque essa é construída de forma negativa: “não sou bicha, não sou mulher”, enquanto não há uma construção ideológica rígida da feminilidade; não é necessário, o único requisito da feminilidade é que ela esteja sujeita a cada momento histórico aos desejos masculinos. Essa é sua única condição. A sexualidade das mulheres tem menos a ver com sua identidade que com seu papel social. Como afirma o teórico gay John Stoltenberg, a sexualidade dos homens está intimamente ligada ao sentimento de “homem de verdade”, que envolve foder uma mulher, ou seja, ser um agente, enquanto, pelo contrário, sentir-se como uma mulher de verdade não faz de você um sujeito, mas um objeto; é uma frase que os homens gostariam que as mulheres pronunciassem quando as estupram. Portanto, esta frase pode ser proferida como uma ameaça: vou fazer você se sentir uma mulher de verdade, ou seja, vou estuprá-la, ensinar-lhe o que é ser dominado, enquanto vou fazer que você se sinta como um homem de verdade implica que vou me oferecer.

O modelo sexológico, o da orientação sexual, é em si mesmo um modelo rígido e conservador que os gays devem rejeitar porque legitima a heterossexualidade obrigatória em vez de questoná-la, mas a verdade é que o movimento gay não demonstrou resistência a isso, ao contrário das lésbicas feministas. Ao assimilar o discurso de lésbicas e gays e convertendo a orientação sexual em uma essência imutável que afeta certas pessoas, a consequência inevitável quando se trata de lésbicas é que as impede de identificarem-se como mulheres, já que elas não são nada além de um grupo especial de pessoas, também inofensivo, uma vez que são e serão muito poucas; é inútil converter, ou um não é um não. É assim que o lesbianismo perde o componente de resistência e desestabilização que teve ao longo da história. A verdade é que ativistas e teóricos gays tendem a se concentrar mais nas vantagens que o modelo sexológico oferece, entre elas a de favorecer o desenvolvimento de um movimento pelos direitos dos gays 22, e não nas desvantagens, talvez porque as desvantagens afetam muito mais as lésbicas que os gays. Afinal, o status de minoria sexual não é tão ruim para os gays no início do século XXI, quando eles conseguiram se livrar do fantasma da feminilização, a “bicha” oprimida, e agora o gay é mais macho que qualquer um.

A categorização do lesbianismo como uma orientação sexual que está fora da vontade do povo (que nunca existiu) constitui um mecanismo de controle para reduzir seu possível impacto como arma política. Em troca do reconhecimento da existência de uma minoria de lésbicas, à qual são reconhecidos certos direitos, reduz-se o impacto do feminismo, da solidariedade e do amor entre as mulheres e a possibilidade de as mulheres decidirem deixar de lado a heterossexualidade 23, além de minimizar ou tornar invisível a existência de mulheres no passado que lutaram contra a heterossexualidade como instituição.

A ideologia liberal retira do campo da política a ação ameaçadora, neste caso a rejeição ativa da sexualidade heterossexual, onde as feministas inicialmente a colocaram. E a deslocam para o campo do pessoal, liberando assim a heterossexualidade compulsória de qualquer responsabilidade no problema da situação desigual das mulheres. Sem dúvida, a aceitação quase incontestável do modelo sexológico tem a ver com a institucionalização da ideologia liberal nas democracias ocidentais, com o triunfo de um discurso que se afasta de qualquer possibilidade de crítica à desigualdade básica das relações entre homens e mulheres 24. A ideologia liberal e seus discursos, entre eles o de diferentes orientações sexuais, aparecem como uma verdade incontestável que não nos permite conhecer os mecanismos de opressão que sustentam essa realidade aparentemente libertadora 25. É a perspectiva do direito liberal e do reaganismo em sua expressão máxima, em que o indivíduo é responsável por si mesmo e em que as condições sociais não têm importância. O contexto de exploração, opressão e discriminação das mulheres na instituição da heterossexualidade desaparece da análise para se tornar uma tendência privada e, portanto, inócua. Em troca da despolitização, ganha respeito e direitos individuais. O direito inalienável de ser assim é consolidado. Nesse discurso, todos os comportamentos privados se tornam aceitáveis, todos têm seu espaço e, assim, testemunhamos uma exibição de comportamentos sexuais que deixam de ser perversões para se tornarem perfeitamente respeitáveis, com seus clubes e seus associados, seus profissionais públicos e privados etc. As velhas anormalidades sexuais foram destruídas e existe uma nova normalidade sexual: não importa que tipo de sexo é praticado enquanto for praticado, pois agora a anormalidade consiste em não expressar interesse suficiente em sexo.

Não se trata de apagar o lesbianismo, mas de torná-lo politicamente inócuo. Kitzinguer 26 sustenta que o método antigo pelo qual as relações lésbicas eram patologizadas operava de maneira oposta à forma como a ideologia liberal agora opera. Então, foi sobre personalizar a política, enquanto agora é sobre despolitizar a subjetividade. Segundo Kitzinguer, a ideologia liberal criou a imagem da nova lésbica, atribuindo-lhe quatro características básicas: 1. basicamente, a homossexualidade e a heterossexualidade são as mesmas, embora a primeira maioria esmagadora em relação à outra (sem saber ou explicar o porquê); 2. a homossexualidade é apenas uma das muitas características organizadoras da personalidade humana; 3. a homossexualidade é tão natural, saudável e normal quanto a heterossexualidade; e, finalmente, 4. a homossexualidade não representa nenhuma ameaça à família nuclear ou à sociedade como a conhecemos.

Uma psicologia moderna também constrói subjetividades enfatizando “o pessoal” em oposição ao político. O indivíduo é absolutamente responsável por si mesmo e, se algo falhar ou for disfuncional, ele poderá sempre procurar ajuda do psicólogo; dessa forma, você pode parar de fumar, ficar chapado, aprender a ser assertivo, pode parar de timidez, parar de comer, encontrar um parceiro, superar inibições sexuais, atingir o orgasmo, superar impotência… o psicólogo apagará todos os traços de explicação política para qualquer subjetividade disfuncional. Se 60% das mulheres têm dificuldade em ter um orgasmo em seus relacionamentos heterossexuais, enquanto praticamente todas fazem isso quando têm relacionamentos homossexuais, ninguém pensará em culpar a heterossexualidade. Comprimidos, terapias, fórmulas mágicas que alcançam o milagre serão procurados, mas a verdade é que o número de mulheres que não têm orgasmo em seus relacionamentos heterossexuais continua a ser muito alto várias décadas após a revolução sexual que deveria libertar as mulheres de velhos laços.

2. Mas… É possível escolher?

Tudo dito até agora nada mais é que uma linha clássica de argumentação do feminismo lésbico. Frente a isso, feministas heterosexuais argumentam frequentemente que, mesmo compartilhando que a sexualidade é uma construção social e que a heterossexualidade compulsória é uma ferramenta do patriarcado para colocar as mulheres em uma posição subordinada em relação aos homens, não se pode deduzir disso que o desejo possa ser modificado à vontade. Talvez seja difícil para os homens entender isso, cujo desejo é, como vimos, rigidamente ancorado à subjetividade deles. Mas não precisa ser assim para as mulheres, para quem é um componente fluido de sua personalidade. A verdade é que as mulheres podem aprender a sentir desejo por outras mulheres, a maioria delas acha que isso é possível, e os homens sabem que é possível. As mulheres aprenderam a desejar outras mulheres ao longo da história, muitas fazem isso todos os dias, embora nem todas tenham conciência de que sua mudança é uma verdadeira fuga da heterossexualidade. A questão, então, é a seguinte: é possível que as mulheres escolham seu objeto de desejo de maneira que este corresponda ao que é uma escolha política e vital? É possível e vamos tentar explicá-lo.

Carla Golden, que estudou a formação da identidade lésbica, afirma: “A questão da identidade sexual e como ela é formada não é definida nem compreendida. Os pressupostos habituais não fazem jus à complexidade do processo” 27. A verdade é que assumimos de maneira simples que as pessoas experimentam atração sexual por um ou outro sexo como algo pessoal e intransferível que não tem nada a ver com nada. Pensamos que costuma ocorrer em consonância com o desejo e que a identidade acaba se adequando à atividade sexual, embora saibamos que pode haver resistência quando se trata de uma identidade estigmatizada. Existe uma pressão social evidente para que desejo, atividade sexual e identidade sejam correspondentes e imutáveis. Na concepção tradicional da homossexualidade, o desejo condiciona a chamada orientação sexual. No entanto, essa é uma concepção alheia à experiência de muitas mulheres. Novamente o androcentrismo tende a definição para o lado da experiência masculina, esquecendo da experiência feminina, que acaba não tendo capacidade para impôr ou deixar registrada a sua própia definição do que é lesbianismo.

Muitas mulheres, mesmo hoje em dia, definem-se como lésbicas somente depois de se envolverem com grupos feministas ou com outras mulheres, mesmo que nunca tivessem se considerado lésbicas antes, mesmo que nunca tivessem tido relações sexuais com outras mulheres, e mesmo se não tivessem anteriormente sentido desejo sexual por mulheres, e sim por homens. Muitas dessas mulheres acabam vendo como, depois de estabelecer um forte vínculo relacional com outras mulheres, seu desejo parece mudar de direção. Todos os estudos indicam que, embora os gays se considerem gays antes de ter qualquer tipo de relacionamento sexual homossexual, muitas mulheres só descobrem seu desejo homossexual no âmbito de um relacionamento com outra mulher 28. Para muitas mulheres “lésbicas” torna-se um momento específico de suas vidas, em uma subjetividade com a qual elas se sentem mais confortáveis. Para muitas, a convivência com outras mulheres, o comprometimento, a oportunidade de aprender, trabalhar, viver ou desfrutar com outras mulheres, pode ampliar sua autoconciência; você também pode expandir suas possibilidades de vida, incluindo a descoberta de uma ampla variedade de opções e possibilidades sexuais.

Nós, mulheres, sambemos disso, mas os homens relutam em buscá-lo em seus estudos ou empregos. Em um trabalho de campo recente com 40 lésbicas, Markowe relata quantas delas viviam o lesbianismo como escolha 29. Enquanto algumas mulheres deste estudo, um pouco mais da metade, sentiram que não tinham sido capazes de escolher e optaram por “Sou assim, nasci assim”, outras achavam que podiam e escolheram. Em pesquisas ou trabalhos semelhantes, a porcentagem de gays que declararam ter feito uma escolha é praticamente nula. Apesar de haver muitas lésbicas que, em vários estudos, optam por se definirem como lésbicas por opção, essa possibilidade é apagadada das conclusões ou nunca é levada em consideração ao se fazer uma teoria geral sobre a
homossexualidade (exceto no caso da autora do estudo ser uma lésbica feminista), talvez porque isso nos permite repensar a teoria geral válida até agora – teoria esta que cobre apenas a homossexualidade masculina – e não parece que estamos próximas do momento histórico em que teorias gerais podem ser feitas a partir de modelos explicativos que se referem às mulheres.

Há muitas lésbicas que afirmam terem escolhido sê-lo, por razões políticas ou, embora não tenham conciência dessa escolha, dizem que concluíram que são mais felizes sendo lésbicas, pois descobrem que as relações entre mulheres são dotadas de qualidades que não encontram em relações com homens. Algumas acham que podem se relacionar sexual e afetivamente com homens e mulheres, muitas sabem que antes de serem lésbicas eram heterossexuais 30. Muitas outras acham que escolher uma vida lésbica é escolher uma vida diferente da que suas mães levaram e, finalmente,muitas outras acham que sua atração por mulheres é exclusivamente sexual e que sempre esteve lá.

Carla Golden 31 fez uma recontagem das definicões que as feministas fazem do “lesbianismo”, do que entendem como tal. Sua lista certamente inclui a definição já fundamental de Adrienne Rich sobre o continuum lésbico 32; também inclui a definição da historiadora Lilian Faderman, que chama a atenção para os compromissos e o amor entre mulheres para as quais o contato genital não existia ou foi um aspecto a mais do relacionamento, e não o mais importante. Também inclui a definição feita pelo grupo Radicalesbians em 1972: “A Lésbica é a raiva de todas as mulheres condensada ao ponto de explosão”. Golden também utiliza a definição de Blanche Wiesen Cook, que entende que lésbica é “uma mulher que ama outra mulher, que escolhe mulheres como fonte de educação, de apoio e para criar um ambiente no qual possa trabalhar de forma criativa e independente de seus relacionametos sexuais”. As vantagens dessas definições são que elas servem às feministas para que possam considerar as mulheres de outras épocas como lésbicas, mesmo quando não há definição cultural de lesbianismo, e também para receber sob o seu guarda-chuva as mulheres que sentem que chegaram ao lesbianismo depois de passar por um caminho vital que é muito diferente em cada caso, mas que não se limita à definição da homosexualidade masculina. Mas a desvantagem dessas definições é que elas não contemplam a sexualidade, nem mesmo o desejo, o que as torna muito vulneráveis às críticas feitas em muitas ocasiões ao lesbofeminismo, no sentido de que ele des-sexualizaria o lesbianismo, o que acabaria por menosprezar o lugar da sexualidade na vida das mulheres, deixando também de fora aquelas mulheres que não são feministas, mas que são lésbicas.

Definições feministas do que é lesbianismo ajudam a entender as mulheres que viveram em tempos anteriores, onde estas não tinham possibilidade de se construírem como indivíduos sexualmente autônomos. Mas devemos concordar que na atualidade a definição de lesbianismo não é aceitável se não incluir o fator do desejo sexual, embora para que esta seja uma definição inclusiva e sobretudo, realista, também deve incluir outros fatores. Portanto, não é necessário descartar absolutamente as definições feministas de lesbianismo, mas incluir nelas o papel da sexualidade. Ferguson (1981) oferece uma definição que pretende ser mais inclusiva: “Uma lésbica é uma mulher ligada por laços sexuais e emocionais a outras mulheres ou que vive a si mesma relacionada a uma comunidade de mulheres chamadas lésbicas e cujos laços sexuais e emocionais são direcionados principalmente para mulheres”.

Um elemento importante da identidade lésbica aparece aqui: a autoconsciência. Mas a questão sexual continua persistindo nessa definção em que Ferguson utiliza a palavra “primariamente”. A questão da definição, portanto, não é resolvida no caso de lésbicas. Uma definição ampla deveria incluir as diferentes experiências de mulheres que se consideram a si mesmas lésbicas, independentemente de seus relacionamentos sexuais, porque uma definição de lesbianismo que estabeleça um critério sexual imutável deixaria de fora a diversidade de muitas identidades lésbicas. Ao mesmo tempo, uma definição exclusivamente em termos de vínculo emocional e/ou intelectual também deixa de fora as muitas lésbicas que sentem que é a orientação de seu desejo sexual que define sua identidade como lésbicas.

Nas definições que buscam ser mais inclusivas, a orientação do desejo é considerada dependente de quatro fatores 33, mas é na ordem e influência destes fatores onde podem ser apreciadas diferenças importantes entre homens e mulheres. Esses quatro fatores são: atração sexual, fantasias sexuais, comportamentos sexuais e vínculo emocional. O vínculo emocional é fator fundamental na definição da orientação sexual de muitas mulheres, a ponto de, em muitos casos, ser o mais importante.

No entanto, para os homens parece ser o menos importante, pelo menos em uma primera fase, a ponto de, ao contrário do que ocorre no caso das mulheres, para muitos gays sua orientação sexual está definida pelos três primeiros fatores, ao passo que, com respeito ao quarto, estes se manifestam “contrários”, ou seja, a vinculação emocional se orienta às mulheres. Especialmente durante a juventude, ou durante a infância, a vinculação emocional às mulheres é um fator que pode constituir marca de homossexualidade em um adolescente. Pelo contrário, a lesbianidade de muitas mulheres começa por uma forte vinculação emocional com outras mulheres antes de desenvolver os outros três, não tendo nem que desenvolver os três nem que fazê-lo ao mesmo tempo. A vinculação emocional define os sentimentos afetivos positivos de ternura e apaixonamento por pessoas do mesmo sexo.

Ainda quando se façam tentativas conscientes de despolitizar a lesbianidade e sexualizá-la à maneira masculina, ou seja, desvinculá-la da ligação emocional e potencializar outros fatores (e nunca fomos nós, as feministas, quem negamos a importância do sexo, do orgasmo para ser mais precisa), o certo é que os estudos que se fazem sobre lésbicas seguem mostrando que o padrão de desenvolvimento e aceitação da homossexualidade é diferente em homens e mulheres e que não é possível que ambos os processos sejam considerados equivalentes. Os homens homossexuais sentem desejo sexual por outros homens e, a partir disso, buscam a outros homens para os satisfazer. As mulheres se envolvem emocionalmente em uma relação e, a partir disso, ainda que nunca tivessem sentido desejo sexual homossexual, podem chegar a desenvolver uma identidade lésbica.

No entanto, a autoconsciência e a consciência coletiva de que é possível desenvolver uma identidade lésbica a partir da vontade de se vincular com mulheres e não com homens começam a se perder. Como o discurso marjoritário e onipresente que faz inteligível o desejo é o da orientação sexual fixa e imutável, a maioria das mulheres sente que seu desejo sexual é algo que escapa a suas vontades. Porém, em todos os grupos de lésbicas é possível fazer, ainda hoje, uma distinção entre aquelas que acreditam que ser lésbica é algo que escapa a seus desejos e seu controle, e aquelas outras que pensam que foi uma decisão consciente 34.

Nos anos 60 e 70 havia mais mulheres que tendiam à segunda opção, mas na atualidade, na medida em que o feminismo já não ocupa um local importante na vida das jovens, é mais difícil encontrar jovens que definam seu lesbianismo como uma escolha. Não é difícil, no entanto, encontrar mulheres que se definiam como feministas em sua juventude e que agora têm 45 ou 50 anos ou mais, que afirmem ter escolhido o lesbianismo como forma de vida. Tampouco é difícil encontrar esta definição em mulheres que optaram por este estilo de vida mais tarde na vida, já na maturidade. Aquelas que dizem que sempre foram lésbicas manifestam que desde meninas sentiam-se diferentes das demais meninas.

Em muitas ocasiões, essa diferença consiste nas meninas se sentindo atraídas por estereótipos de gênero atribuídos normalmente a meninos: brinquedos, costumes sociais e vestimentas de meninos desde muito pequenas, e em seguida, sentindo atração sexual por outras meninas. Essas mulheres não sentem que escolheram ser lésbicas. Pelo contrário, dizem que nasceram lésbicas e não entendem aquelas outras que manifestam haver feito uma escolha. Carla Golden chama a estas lésbicas “primárias”. As outras seriam aquelas para quem a sua identidade lésbica é uma escolha ou uma elaboração posterior.

A diferença fundamental entre um e outro grupo é a questão de se percebem sua lesbossexualidade como uma experiência imodificável ou se a percebem como algo fluido e dinâmico. Entre esses dois grupos também há diferenças internas, já que algumas experimentam sua lesbianidade como imodificável a princípio e logo vivenciam-na como fluida. Algumas fazem o caminho inverso e depois de uma vida de experiências sexuais satisfatórias com mulheres, chegam a ter boas experiências com homens. Outras falam que seu desejo era mais fluido na sua juventude, de maneira que parece haver-se fixado com a maturidade, no contexto da cultura lésbica. Por último, algumas pensam que, ainda que pudessem ser bissexuais, o ambiente exclusivamente lésbico no qual vivem as impede de se definirem como tal. A bissexualidade não é fácil em um ambiente lésbico.

As lésbicas “primárias” costumam pensar que as chamadas “lésbicas por escolha” são menos lésbicas. A maioria delas, simplesmente, diz não acreditar que tal coisa possa existir. Por sua parte, os gays não entendem nem acreditam nisso, por isso a presença desse tipo de lésbicas nas associações mistas LGBTs tende a ser minimizada, e suas vozes caladas. Os gays inclusive tendem a receber esses discursos com suspeita por acreditar que sejam negativos à reivindicação de direitos, por isso lésbicas por escolha alé de serem invisibilizadas pelas pesquisas, tendem a terminar ocultando sua história a não ser em ambientes favoráveis como grupos feministas.

A identidade sexual, portanto, não tem que estar definida pelo comportamento sexual, nem sempre há congruência entre desejo, prática e identidade, e ainda que existam muitas mulheres a quem não lhes preocupa essa aparente disparidade, é certo que existe uma enorme pressão para fazer com que o desejo, o comportamento, a prática e a identidade sejam coincidentes. Dado que a orientação sexual parece mais rígida entre gays, a possibilidade de que essa rigidez não se dê entre as mulheres não é estudada nem abordada senão como uma curiosidade particular que não alcança a categoria de maneira geral. Além disso,ao sistema patriarcal tampouco interessa indagar nem promover a possibilidade de que a identidade lésbica seja uma maneira (factível) de escapar ou de rechaçar a heterossexualidade 35. A gama de sentimentos e experiências gays se aplica às lésbicas, cuja pressão para considerar que a verdadeira experiência homossexual seja a masculina é constante e muito forte.

Sexólogos e psicólogos, os “especialistas” que no passado tentaram curar a homossexualidade, hoje dedicam seus esforços a fazer com que as pessoas se definam e se situem em um lado ou do outro da linha. Se uma mulher não aceita que seu desejo é fixo e imutável ou não se define desta maneira, se alguma mulher expressa seus desejo de optar por ser lésbica, a coisa mais provável é que algum terapeuta tente consertar essa confusão. O fato de muitas mulheres não sentirem desejo sexual lésbico até o momento em que se apaixonam por outra mulher comunica aos autores do sexo masculino que se trata de uma estratégia de auto-justificação, enquanto a maioria das mulheres o percebe como algo que fundamentalmente as separa do mundo gay 36. A maneira como ativistas lésbicas que trabalham em associações mistas aceitaram unificar as homossexualidades masculina e feminina é mais uma de nossas renúncias.

Mas finalmente, tudo isso não faz mais que explicar a situação, mas não elucida a pergunta fundamental: se pode verdadeiramente escolher a orientação do desejo? Dizer que algumas o fazem não responde de todo a questão, pois parece que a maioria não pode fazê-lo. Contudo, se admitimos que é possível experimentar a sexualidade como uma escolha, isso deveria ser assim tanto para mulheres como para homens, e todavia parece que homens experimentam a orientação sexual como fixa e imutável. Há duas razões fundamentais pelas quais a sexualidade das mulheres se experimenta como mais fluida que a dos homens: a construção social da maternidade (a divisão sexual do trabalho dentro da família) e a construção social da masculinidade e da feminilidade.

As teorias de relacionamentos de objeto da psicanálise explicam claramente porque as mulheres têm limites sexuais e emocionais mais flexíveis que os homens. Fazendo um esforço para simplificar teorias psicológicas muito complexas que excederiam o âmbito deste trabalho, poderíamos dizer que essa é uma construção social da maternidade, na escolha do primeiro objeto de amor, que é quase sempre uma mulher para meninos e meninas, unida com a brutal repressão em meninos de ter qualquer comportamento ou sentimento de natureza homossexual. O que não acontece com meninas – para quem se permite uma sexualidade dinâmica desde que afinal acabe se fixando socialmente como heterossexual –, que permite essa certa fluidez do desejo feminino. Muitos psicólogos, especialmente psicólogas, pensam que dada a origem familiar, é a heterossexualidade das adolescentes que necessita de uma explicação 37. Por outro lado, há alguns trabalhos focados em estudar o desenvolvimento de jovens que mostram os processos sociais, psicológicos e culturais por meio dos quais as jovens são direcionadas para a heterossexualidade (Griffin 1985, Coyle e Kitzinger 1998).

Apesar de Dorothy Dinnerstein (1976) 38 ter explicado claramente nos anos 70 de que maneira o exercício da maternidade, tal como se contrói nesta cultura, tem por força deixar latente nas mulheres uma homossexualidade potencial e apesar de o mesmo ter feito de maneira incontestável Nancy Chodorow (1978) 39 (embora esta não tenha se atrevido a chegar até o final em sua proposta), a maioria dos cientistas e pesquisadores posteriormente não levou em conta esta circunstância. Já Groddeck em 1923 considerava que, desde uma perspectiva psicanalítica, o normal é que as meninas sejam lésbicas e após muitas pressões se convertam heterossexuais ao chegar na puberdade, pressões que buscam mudar o objeto amoroso e desviá-las em direção aos homens. Também em 1964, Mc Dougall 40 realizou um dos primeiros estudos sobre mulheres lésbicas para afirmar que o lesbianismo é um componente normal da vida de todas as mulheres, embora advirta que estas devem aprender a integrar-se na vida heterossexual. Em 1971, a doutora Charlotte Wolf publica “Amor entre mulheres”, um estudo com 108 depoimentos de lésbicas 41. Sua concepção do lesbianismo começa o que, poucos anos depois, Adrienne Rich chamou de “continuum lésbico”. Para Wolf, a essência do lesbianismo é o incesto emocional com a mãe, enquanto a imagem paterna faz reforçar ou atenuar essa tendência, conforme seja a imagem negativa ou positiva.

Talvez tenha sido Nancy Chodorow (1984) com seu livro “Exercício da Maternidade” quem exerceu uma influência além do que ela pretendia. Seu livro proporcionará uma das chaves fundamentais para as lésbicas feministas e permitirá que outras teóricas desenvolvam o que, antes esboçado por outros, ela não se atreveu a levar até as últimas consequências. Seu estudo pretende explicar não a causa da homosexualidade feminina, mas a razão de que sejam as mulheres as que desempenham as funções maternais em todas as culturas, porque acham isto natural. Tratando de desmascarar a trama que se oculta atrás de qualquer explicação naturalista, Chodorow 41 empreende uma indagação psicanalítica e sociológica para explicar o chamado “instinto maternal”. Segundo Chodorow, quase tudo o que somos provém da primeira relação dos bebês com outro ser humano, que é, com quase toda a segurança, uma mulher. E segundo Chodorow isto não é, não pode ser, indiferente. Curiosamente, mesmo Freud, contradizendo sua própia teoria acerca da gênese da homosexualidade, recomendava para garantir a heterossexualidade que os meninos fossem criados por mulheres e as meninas por homens. Chodorow demonstra a importâcia que têm aspectos como a intimidade e a fusão, para assumir-se como próprias do sexo feminino ou para rejeitá-las como impróprias do sexo masculino, que tem a ver com a primeira relação do bebê com sua mãe. Meninos e meninas são em sua origem matrissexuais e permanecem apegados a sua mãe todo o período da sexualidade infantil, mas logo que as meninas percebem que seu primeiro amor, sua mãe, as leva à impotência, transferem seu amor ao pai. A inveja do pênis serve para explicar por que a menina vai em direção aos homens buscando sua liberdade, buscando poder estabelecer seus limites além da mãe e buscando, acima de tudo, compensar sua falta de poder.

Chodorow afima que a teoria psicanalítica reconhece, explícita ou implicitamente, que as meninas nunca mudam absolutamente de objeto. As meninas chegam à
puberdade em um estado de indefinição sexual ou bissexual, e é a partir daí que este conflito tem que se resolver. Nós diríamos que é a partir daí que as pressões que conduziram a menina à heterossexualidade se multiplicam. Em todo caso, sabe-se que a preferência heterossexual aparece relativamente tarde no desenvolvimento da adolescente e que a preferência homossexual aparece mais tarde ainda, muito mais tarde do que geralmente nos gays. Chodorow afirma que as meninas começam a receber pressão para se feminilizar, o que significa que se heterossexualizem, mas o relato clínico deixa muito claro que não há nada inevitável que conduza as meninas a esse destino heterossexual, que estas não abandonam o apego a suas mães, nem se comprometem nunca definitiva e absolutamente com o amor heterossexual como um componente emocional, e isto ocorre seja se participam ou não de escolhas de objetos do tipo genital. Não se trata, pois, de interpretrações psicanalíticas muito complexas. Trata-se, simplesmente, do fato certeiro de que os bebês tocam, mamam, chupam, beijam e são beijados, acariciados, cuidados mais pelas mães, ou por mulheres, que pelos pais, por homens. O que é preciso explicar portanto é por que depois disso tudo as meninas se comprometem com a heterossexualidade e como se produz esse processo.

A teoria psicanalítica que situa a mãe como a influência formativa primária no desenvolvimento psicossexual das mulheres, e que é considerada por muitas autoras como “o fator homossexual”, ou pelo menos como uma latente homossexualidade, é considerada como constitutiva da subjetividade feminina. Este primeiro amor se renunciará posteriormente: por um lado, a menina percebe muito rápido que deve dirigir seu amor aos homens se quer se empoderar de alguma maneira; permanecer no mundo feminino não é mais que permanecer na esfera da impotência e da falta de poder. E por outro lado, em seguida, entra em questão uma complexa rede de forças sociais que empurram a menina à heterossexualidade, que a empurram a se feminilizar, embora a possibilidade de recuperar este primeiro objeto amoroso sempre permaneça latente, consciente ou não, ao longo da vida de todas mulheres, sendo a responsável pela extendida convivência com a bissexualidade e por um fluido e oscilante padrão de identificação e de escolha de objeto que vai converter a identidade sexual das mulheres em instável.

Há outros fatores, ligados ao gênero, que influenciam na construção do desejo. Os
homens são socializados para conceder muita importância aos fatores de gênero e/ou
biológicos no momento de escolher seus companheiros/as sexuais. Por isso eles focam se sua companheira/o é atrativa/o, jovem e feminina se é uma mulher, enquanto as mulheres são socializadas aprendendo a dar mais importância à relação e menos aos fatores biológicos ou de gênero, o que faz que as mulheres heteros possam achar atrativos como companheiros sexuais homens mais velhos ou pouco atrativos, se este pouco atrativo é compensado por fatores como qualidade da relação (qualidade subjetiva: bem-estar, ou qualidade quantificável: acesso a determinados status ou bens). É uma diferente socialização que propicia que as mulheres configurem seus desejos sexuais baseando-os em distintos fatores, que podem ser mais ou menos predominantes segundo o momento, a pessoa desejante e a desejada. Mas definitivamente estes fatores se entrecruzam e são mais ou menos predominantes dependendo, por sua vez, de outros tantos, mas que definitivamente fazem com que, em qualquer momento, um deles possa acabar se impondo por cima dos de sexo e gênero.

Todas essas explicações nem sempre são aceitas pela teoria feminista ou pelas lésbicas em geral. Lauretis, por exemplo, aponta que a teoria feminista tem muito cuidado para não qualificar isso como lesbianismo. Embora ela mesma não questione esse relacionamento pré-edipiano com a mãe, se encarrega de observar que, em última análise, seria um relacionamento de tipo psicanalítico e dessexualizado, deserotizado e metafórico 42. De Lauretis reclama que, na teoria feminista lésbica, não há diferença entre dizer que as mulheres podem dormir com mulheres e que elas efetivamente o façam. Para De Lauretis, esse é o problema. Segundo ela, “essa metáfora homossexual-materna projeta na sexualidade feminina certas características de uma socialização idealizada (não-hierárquica, ética de compaixão, fraternidade entre mulheres) que atrai feministas lésbicas e também feministas heterossexuais”. Para ela, essa metáfora cria um tipo particular de lesbianismo, uma configuração diferente do desejo, que é sexual, mas também sócio-simbólico e que apaga a especificidade sexual do desejo lésbico e seus efeitos no corpo, na subjetividade. Esta é a razão, de acordo com De Lauretis, por que 42 algumas lésbicas detestam essa explicação e querem se distanciar do desejo “materno” e menos sexual; é a razão também para que muitas dessas lésbicas tenham recebido a teoria queer com alegria, como a teoria que oferece uma alternativa mais sensual ao desejo lésbico.

O que alguns representantes da teoria queer veem como um problema é, no entanto, para as lésbicas feminista, a solução. Para começar, é evidente que o desejo, todo desejo, é construído de alguma maneira. Ninguém sustenta que a matrissexualidade é a única influência na construção do desejo lésbico. A explicação de uma das muitas influências na construção do desejo nas mulheres não o torna menos sexual. As lésbicas feministas fazem distinção entre as mulheres que dormem com mulheres, que são lésbicas, e todas as que poderiam dormir com mulheres e, assim, escapar de uma instituição opressora para elas. Conscientes de que essa possibilidade é viável, as lésbicas feministas são a favor de explicar e advogar essa possibilidade. O que queremos é que todas que possam dormir com mulheres, na verdade durmam com mulheres, que gostem sexualmente de mulheres. O desejo sexual das mulheres pode ser orientado para uma possibilidade que serviria para libertar as mulheres da instituição opressiva da heterossexualidade; que a possibilidade libertadora não a tornará menos sexual; que o desejo sexual das mulheres possa conter potencial revolucionário e feminista não o tornará menos sexual. Mais uma vez nos deparamos com o aparente esquecimento da verdadeira situação da mulher na sociedade, de sua situação como classe sexual subordinada e, em muitos lugares, autenticamente escravizada. A prática do lesbianismo serviria, portanto, imediatamente, para melhorar a qualidade de vida de muitas mulheres e torná-las mais livres.

NOTAS

1 Monique Wittig, The Straight Mind and Other Essays. Boston: Beacon Press, 1992.
2 M. Foucault. Historia de la sexualidad. Madrid: Siglo XXI, 1987.
3 Marlene Faith, “Ressistence. Lessons from Foulcault and Feminism” em Power/Gender. Social Relations in Theory and Practice. H. Lorraine Radtke e Henderikus J. Stan. London: SAGE Publications, 1994.
4 Rosemary Hennessy. Profit and Pleasure. Sexual Identities in Late Capitalism. London/New York: Routledge, 2000.
5 Leo Bersani. Homos. Buenos Aires: Manantial, 1995.
6 Sarah B. Pomeroy. Dioses, rameras, esposas y esclavas. Mujeres en la antigüedad Clásica. Madrid: Akal Universitaria, 1987.
7 Marilyn Frye. The Politics of reality: Essays in Feminist Theory. Freedom, California: The Crossing Press, 1983.
8 Celia Kitzinger. The Social Construction of Lesbianism. London: SAGE Publications, 1988.
9 J. A. Herrero Brasas. La sociedad rosa. Madrid: Foca Investigación, 2001.
10 Sheyla Jeffreys. La herejía lesbiana. Una perspectiva feminista de la revolución sexual lesbiana. Valencia: Ed. Cátedra, 1996. p. 35.
11 El Mundo 5-8-03; El País 1-02-05 “Identificados los cromosomas que definen la orientación sexual”; El Mundo 11-11-2004 “La testosterona forja la sexualidad en el cerebro”; El Mundo 7-12-1995 “El cerebro, un órgano sexual”; El Mundo 12-12-1999 “Homosexuales salvajes” El Mundo 5-0-8-2003 “El gen de la promiscuidad”; El Mundo 20-04-1995 “Genes con humor” El Mundo 31-03-2000 “El dedo”; El Mundo 25- 04-1999 “Un nuevo estudio descarta la existencia del origen genético de la homosexualidad”; El Mundo 02- 11-95 “Nuevos hallazgos confirman que la homosexualidad es de origen genético”; El País 27-11-2001 “El influjo hormonal materno determina la estructura cerebral”; El País 24-04-1999 “La homosexualidad no tiene origen genético; El Mundo 13-10-2004 “Las mujeres emparentadas directamente con homosexuales son más fértiles”; El País 21-10-2003 “54 genes pueden explicar la identidad sexual”…
12 Francis M. Mondidore. Una historia natural de la homosexualidad. Barcelona: Paidós, 1988. p. 209.
13 Diana Fuss. “Las mujeres caidas de Freud: Identificación, deseo y un caso de homosexualiad en una mujer” em Identidades transgresoras: una antología de estudios queer. Rafael Mérida Jiménez (de.). Barcelona: Icaria, 2002.
14 Sexual Behavior in the Human Female: By the Staff of the Institute for Sex Research, Indiana University, Alfred C. Kinsey … et al. ; With a New Introduction by John Bancroft. Indiana University Press, 1998.
15 Também em P. Blumstein y P. Schwartz American Couples. New York: Pockets Books, 1985 ou no informe Hite (Shere Hite. El informe Hite. Estudio de la sexualidad femenina. Madrid: Punto de lectura, 2002) esse dado é refletido. A heterossexualidade em nenhum momento histórico parece ser capaz de proporcionar prazer às mulheres. Nem sequer na atualidade, apesar da propaganda (40% de anorgasmia segundo todos os estudos). Não queremos afirmar que, por si, sexo homossexual seja superior ao heterossexual, senão que todas as condições patriarcais que atravessam a heterossexualidade compulsória não permitem que as mulheres se situem em uma situação de igualdade frente aos homens, muito menos no território da sexualidade.
16 Margaret Nichols chama atenção sobre esse ponto em Homossexualidade/Heterossexualidade.
17 DeCecco J. P. “Definitions and Meanings of Sexual Orientation”. 1981.
18 Shere Hite. El informe Hite. Estudio de la sexualidad femenina. Madrid: Punto de lectura, 2002.
19 Para citar um informe afastado das correntes científicas usadas. Este informe é resenhado por Fernando Olmeda em “El latigo y la pluma: Homosexualidad en la España de Franco.” Madrid: Oberón, 2004. p. 59.
20 Para o tema da variabilidade e fluidez do desejo sexual feminino em “Diversity and Variability in Women’s Sexual Identities”, Carla Golden em Lesbian Psychologies. Urban University of Illinois Press, 1987.
21 Em uma ocasião na qual eu mesma buscava compartilhar os gastos de meu apartamento em Madri pus um anúncio em um jornal no qual dizia que buscava dividi-lo com uma pessoa ou casal, já que tinha espaço. Surpreendi-me muito quando a maioria das ligações que recebi foram de homens que queriam dividir sua mulher ou namorada comigo. Pensavam que suas mulheres eram lésbicas? Certamente não, certamente não eram. Mas então… sofriam ao manter relações lésbicas? Certamente tampouco.
22 As vantagens deste modelo são desenvolvidas por J. Weeks em “El malestar de la sexualidad. Significados, mitos y sexualidades modernas”. Madrid: Talasa, 1993.
23 S. Jefrreys. La herejía lesbiana. Valencia Cátedra, 1996.
24 A relação do patriarcado con o capitalismo é desenvolvida por Rosemary Hennessy em “Profit and Pleausure. Sexual Identities in the late Capitalism”. London/New York: Routledge, 2000.
25 K. F. Koerner. “Introduction: Liberalism and the End of Ideology” em: K. F. Koerner. Liberalism and its Critics, 1985.
26 Celia Kitzinger. The Social Construction of Lesbianism. London: Sage Publications, 1987.
27 Carla Golden. “Diversity and Variability in Women Sexual Identities”. Em Lesbian Psychologies – Explorations and Challenges. University of Illinois Press. Casell, 1996.
28 Há muitos estudos que confirmam isso. Em castelhano o estudo “Como se vive a homossexualidade e o lesbianismo” de Sonia Soriano Rubio, Amarú, 1999; “Identidades lésbicas” de Olga Visuales, Ed. Bellaterra 1999, ou o estudo ainda não publicado de Begoña Pérez Sancho
“Aproximação à investigação sobre o manejo do segredo em famílias com algum membro
homosesxual”. Pesquisa com bolsa pela EVNTF 2003-2004.
29 Laura A. Markowe. “Coming out as a lesbian” em Lesbian and Gay Psychology: New Perspectives. Adrian Coyle e Celia Kitzinger (comps). Oxford: BPS Blakwell, 2002.
30 Markowe, 2002.
31 Carla Golden, 1996.
32 “Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence", Signs 5/4 (1980) p. 631-660. Rich utiliza uma imagem muito poderosa para explicar a possibilidade do lesbianismo, possibilidade que descreve como um continente submergido do qual emergem à vista fragmentos de vez em quando, fragmentos que pouca gente identifica como pertencentes a esse “continuum lésbico” de que fala. Para Rich, igualar a existência lésbica à homossexualidade masculina (embora lésbicas e gays compartilhem vida social, alguma causa comum e uma mesma estigmatização) é negar e apagar a realidade feminina.
33 Sonia Soriano Rubio, 1999.
34 Olga Viñuales em “Identidades lésbicas”, um estudo realizado em uma associação de lésbicas, menciona esta possibilidade entre o que significa ser lésbica hoje para as integrantes deste coletivo: “para algumas é um determinismo biológico, para outras, ser lésbica nos finais do século XX é um gozar, uma perspectiva pessoal e psicológica das relações que, como outras, brinda a possibilidade de ser feliz, e, para outras, o lesbianismo é um posicionamento político” (p. 49). Porém, apesar de que todas as autoras recolherem esses posicionamentos, estes nunca se recolhem quando se trata de teorias gerais.
35 Germaine Greer. La mujer completa. Barcelona: Ed Cairos, 2000.
36 Olga Viñuales, 1999.
37 Christine Griffin. “Girls Friendships and the Formation of Sexual Identities” em Lesbian and Gay Psychology. Adrian Coyle e Celia Kitzinger (comps). Oxford: Blakwell Publishers, 2003.
38 Dorothy Dinnerstein. The Marmaid and the Minotaur: Sexual Arragements and Human Malaise. New York: Harper and Row, 1976.
39 Nancy Chodorow. El ejercicio de la maternidad. Psicoanálisis y Sociología de la Maternidad y Paternidad en la crianza de los hijos. Barcelona: Gedisa, 1984.
40 Citado em “La amante celeste”.

   

Beatriz Gimeno Reinoso é uma teórica espanhola lésbica feminista, ativista e política. Possui vários livros publicados, em temáticas como lesbianismo, prostituição num viés abolicionista, direitos maternos, etc. Alguns deles são “Historia y análisis político del lesbianismo: La liberación de una generación”, “La Construcción de la Lesbiana Perversa”, “La prostitución”, além de artigos e estudos vários.

Nos livros de Gimeno sobre lesbiandade, se nota sempre uma análise muito lesbocentrada, geralmente baseada em vasto repertório teórico em feministas e lésbicas radicais de perspectiva materialista, forte denúncia da misoginia do movimento gay ou movimento homossexual masculino, assim como críticas ao heterossexismo do movimento feministas, críticas a cooptação da lesbianidade pelo discurso liberal que visa suavizar e transformar estas em um bem de consumo sexual mais na contemporaneidade, uma perspectiva construccionista social da sexualidade… todas características que nos permitiriam localizá-la como teórica radical. Porém, politicamente Gimeno se encontra no partido de esquerda espanhol PODEMOS, e já exerceu cargos políticos no Estado, tendo sido eleita deputada desde 2015 e o é até então. Além disso, é parte da “Federación Española de LGTBs”. Esteve ligada a legalização do matrimônio igualitário na Espanha e é casada com sua companheira a também ativista Boti García Rodrigo. Gimeno se encontra em políticas portanto, ligadas ao LGBT e institucionais. Por isso embora a consideremos radical nas análises teóricas e sempre priorize lésbicas, na política podemos considerá-la liberal, por ser reformista e impulsionar uma agenda de direitos estatais. Mesmo assim, a consideramos uma brilhante teórica e achamos válido nos servir das suas análises e contribuições intelectuais principalmente pelo vasto estudo histórico que realiza e pela forte ética lésbica de suas obras. É também mãe, tendo um filho nascido na década de 80 antes da lesbiandade. Escreve também para jornais como El Diario, Publico e revistas feministas.