[TRAD] Tijeras para todas

Essa é uma de tradução coletiva do livro Tijeras para todas, cujo original está em anexo.
Para baixar o arquivo em pdf acesse: Tesouras para todas (tradução completa)

Tesouras para Todas

Índice

  • Prólogo à segunda edição
  • Por que temos sempre a sensação que partimos do zero?
  • O feminismo não é um tema de mulheres
  • Rompendo imaginários: maltratadores politicamente corretos
  • Porquê falar de sexismo nos espaços libertários
  • Geometria, ideologia e geografia das relações de confiança – Apontamentos sobre violência de gênero
  • Sobre gênero e caras “do rolê” (ou sobre como estamos com a merda até o pescoço)
  • Quem teme os processos coletivos? Apontamentos críticos sobre a gestão da violência de gênero nos movimentos sociais FEITO
  • Espaços okupados, espaços com cuidado
  • Carta por um debate sobre as agressões sexistas
  • A opressão “ao contrário”
  • Agressão é quando me sinto agredida
  • Os espaços libertários não estão isentos de agressões
  • No meio libertário
  • A autodefesa de e para as mulheres é uma resposta à violência de gênero
  • Comunicado das Anacondas subversivas
  • Em relação à ação direta feminista
  • Este escrito não faz parte de una campanha pedagógica
  • Breve história dos objetos cotidianos

Prólogo à segunda edição

Já se passaram quase dois anos desde que saiu a recompilação de textos “Tesouras para todas” que você tem em suas mãos. Durante este tempo, se colocou sobre a mesa o debate em torno da violência machista que vivemos nos espaços mais próximos. Surgiram novos grupos feministas, mulheres denunciaram agressões e enfrentaram duros processos, surgiram solidariedades, foram editados materiais, protocolos de ação, reflexões pessoais, foram levados a cado debates em centros sociais, em festas de bairro, dentro de coletivos, e foram dadas diferentes respostas a agressões concretas. Queremos reconhecer o valor desse grande trabalho e dar todo nosso apoio às mulheres que denunciaram agressões.

Esta reativação do debate em torno do feminismo, da auto-organização de mulheres, da violência machista e das estratégias de atuação, tornou visíveis questões anteriormente esquecidas ou guardadas em uma gaveta, de forma que já não é tão fácil evitar molhar-se ou desviar o olhar para outro lado. Algumxs tocaram nesse tema pela primeira vez, outrxs se entrincheiraram em velhos privilégios e posturas rígidas para que nada mude, outrxs seguiram crescendo em diferentes direções; abriram-se caminhos, ressurgiram olhares e diferenças, houve rupturas, momentos difíceis, mas também afinidade e respeito. E assim, dois anos depois já não partimos do zero. Os conflitos gerados possibilitaram que o debate avance, no que pretende contribuir Tesouras.

Decidimos reeditar este material porque para afrontar agressões na política, para lutar contra a violência machista e fazer do antissexismo uma realidade, nunca é demais ter uma caixa de ferramentas ao alcance da mão. Ademais, numerosos coletivos e pessoas a utilizaram e continuam pedindo-a, de forma que consideramos que Tesouras continua sendo raivosamente atual. Assim, essa tiragem pretende ser maior, para dessa maneira melhorar a discreta difusão que fizemos da anterior. Mantivemos todos os textos, vozes variadas desde perspectivas, momentos e lugares diversos, mas que compartilham um fio condutor comum: o olhar sobre a violência contra as mulheres como um problema cotidiano, estrutural, multicausal, e que nos atravessa. Essa visão compartilhada se opõe à imagem mediada que assinala as consequências mais brutais da violência, e a reduz a uma questão de alguns homens doentes e machistas, e a umas pobres mulheres vítimas que necessitam ser protegidas. Por último, a maioria dos textos coincide também em apontar o feminismo e a ação direta feminista como resposta chave.

Com respeito ao título, introduzimos uma mudança no subtítulo “Textos sobre violência de gênero nos movimentos sociais”. Por um lado, substituímos violência de gênero por violência machista, devido à despolitização e o uso institucional que se faz do primeiro, e ao fato de que não aponta a direção da violência, de onde vem e quem a recebe.

Por outro lado, mantivemos o termo ‘movimentos sociais’, apesar de que quando falamos de violência machista, a fronteira dentro-fora é fictícia e as dinâmicas não se diferenciam do exterior, nem da sociedade em geral. Afinal de conta, a violência é a mesma. Contudo, continuamos nos referindo aos movimentos sociais, onde nos situamos, porque englobam diferentes realidades com certos códigos compartilhados que permitem nos entendermos, e sobretudo porque partem de uma vontade transformadora que é à que nós apelamos.
Esta é uma chamada à auto-organização de mulheres, à solidariedade, à ação, aos grupos mistos que desejam crescer a esse respeito, a que sigamos criando iniciativas e lutando contra a violência machista.

O Tesouras volta a sair para ser de novo convite, reflexão, argumento, arma lançada, dor de cabeça, chave inglesa, objeto cotidiano e, sobretudo, para acabar de vez com a indiferença.

Por que temos sempre a sensação de que partimos do zero

“Tesouras para Todas” quer recolher a memória coletiva que diferentes grupos feministas, coletivos mistos e indivíduxs elaboraram nos últimos anos a partir de textos que falam de agressões concretas, propostas de debate e que vão diretamente referidos a nossos espaços políticos próximos. Não somos as primeiras… nem seremos as últimas…

Esta recompilação de textos surge porque estamos fartas da sensação de que sempre partimos do zero, como se nunca tivesse sido feito um trabalho nesse sentido. E na verdade é que apesar de que sim, de que este trabalho foi feito por muitas e por alguns, avançou-se muito pouco na hora de levá-lo à prática, politizar as agressões, ter posicionamentos coletivos e ações de resposta. Em contrapartida, muitas de nós mulheres não só continuamos caminhando como também estamos cansadas de repetir sempre o mesmo.

Queremos denunciar que o trabalho sobre agressões sexistas leva muito tempo aos movimentos sociais, fora da agenda ou de prioridade política. Que no momento em que emerge a denúncia por parte de mulheres que foram parte dos coletivos, os mecanismos de resistência, minimização ou o olhar o dedo ao invés de onde ele aponta, fazem com que se perda a possibilidade e a vontade de um trabalho político sobre as agressões machistas.

“Tesoura para Todas” é uma ferramenta coletiva, uma arma lançada para a reflexão, o debate e a ação contra as agressões. Encorajar as mulheres a denunciar, atuar, responder e os grupos a autogestionarem a desconstrução do imaginário sexista que nos toca, nos alfineta e nos atravessa, que ninguém espere ser iluminado porque não queremos assumir o papel de educadoras. Já chega de explicar, assinalar, escrever, justificar, propor… a violência machista nos tira a vontade de sermos compreendidas ao mesmo tempo em que aumenta o desejo de que exista solidariedade, ações e reações, sem que precisemos estar sempre presentes para visibilizá-la.

Este dossiê é um convite para a ação e para isso o estruturamos em três momentos diferentes; os primeiros textos nos dão o contexto ao qual nos referimos – violência nos movimentos sociais – o segundo grupo são textos que foram escritos como resposta a agressões concretas e o último grupo são propostas de ação direta feminista.

Saudações e tesouras para todas!

O Feminismo não é “um tema de mulheres”

Nenhuma opção é neutra, inócua; o silêncio é cúmplice dos privilégios de poucas pessoas. Não basta uma certa “aceitação” crescente a respeito de outras práticas não heterossexuais, devemos desmontar toda a cultura e simbologia reinante patriarcal (e heterossexista).
Uma das premissas básicas da luta feminista, da mesma forma que outras lutas que se organizam a partir das necessidades de um grupo oprimido por conta de alguma de suas características (cor da pele, sexo, etnia, idade, opção sexual, classe social, situação legal no que diz respeito aos papéis que regulam a imigração, o trabalho, a liberdade física…) é a defesa de que a concretização dos seus interesses, a determinação de suas estratégias políticas, sejam decididas pelas pessoas que estão sujeitas a essas relações de opressão-dominação-exploração, no caso do feminismo, as mulheres.

Se trata da fixação dos papéis na relação clássica de dominação que se estabelece entre “amo-escravo”, onde a masculinidade (encarnada por homens de carne e osso ao longo de toda a história, mas tratando-se principalmente de um modelo, de um arquétipo viril de dominação que pode adotar qualquer pessoa elegendo algum traço desse modelo) é a construção dominante e a mulher é “o outro”, o negado e excluído de toda uma economia não só material, mas também (e mais profundamente) significante, cultural e simbólica (Lévi-Strauss define o momento inaugural da cultura com a aparição e gestação da linguagem simbólica embasada no intercâmbio de mulheres como objetos entre os homens de distintas tribos-famílias (parentesco), formalizando assim a “objetificação” das mulheres no nascimento da cultura ocidental. As estruturas elementares de parentesco, Lévi-Strauss, 1949).

Entretanto, hoje esta explicação básica da necessidade de auto-organização por parte das pessoas apresentadas nessa relação dialética de poder é difícil de ser compreendidas e respeitadas por parte de muitos homens e mulheres companheiras em outras lutas. Esta incompreensão e, pior ainda, esta total falta de respeito é o que vemos acontecer a muitas de nós mulheres que apostamos por espaços-grupos-momentos não mistos. Quem não respeitaria o fato de que as pessoas negras quiseram auto-organizar-se para combater o racismo perante o ocorrido em Nova Orleans? E isso já não é somente assombroso, mas um grande incômodo. Em vez de criar redes onde a comunicação flua de maneira transparente e sem obstáculos e se produzam transferências de conhecimento horizontalmente, nos dedicamos a fazer política de “mercado”, em que a pessoa que mais grita vence, ou através do diálogo dos bares, onde criticamos as pessoas pelas costas, sem darmos a mínima para a criação de debates produtivos e enriquecedores para todas, abordando desde as diferenças até as divergências.

Por outro lado, outra obviedade a que facilmente se pode chegar uma pessoa esclarecida e esperta (isso é diretamente proporcional ao interesse que cada uma dá), é que o sistema encarregado principalmente de produzir e manter a hierarquia desigual entre os gêneros (relação de dominação que está extensamente explicada e documentada em múltiplos documentos e inteiramente disponível a qualquer pessoa que demonstre algum interesse), isto é, o PATRIARCADO, é um problema que atinge a todas (todas nos socializamos como homens ou como mulheres) e que, portanto, seremos capazes de transformar (ou destruir) este sistema se cada uma for tomando consciência dos mecanismos que tem operado para conformar nossa feminilidade-masculidade que, por sua vez, perpetuam a dominação patriarcal.
Portanto, a análise da especificidade do papel masculino também tem que ser analisado e desmontado por seus protagonistas que “inconscientemente” o reproduzem dia após dia – ou seja, os homens – e deixar de trivializar a magnitude dessa tarefa com o gesto fácil de “eu já refleti o bastante sobre o assunto”. As possíveis alianças virão desse empenho e trabalho coletivo, tanto individualmente como em revoltas, e é o que nos permite ir criando redes de comunicação e de apoio para lutar contra o patriarcado sujo.

No caso das mulheres, a feminilidade, tal e como hoje a conhecemos, representa a forma em que chegamos a desejar a dominação masculina, e que não está em absoluto a favor de nossos interesses (como sujeitos autônomos), é o adestramento para erotizar esse jogo perverso de domnação masculina, de acesso sexual (econômico, social) dos homens às mulheres. A feminilidade e a masculinidade se constroem para ser papéis complementários e necessários, e o mito do amor romântico e verdadeiro se apropria e regula os únicos códigos eróticos e sexuais aceitos. A heterossexualidade normativa é o produto ótimo da obrigação de ser “verdadeiramente” um homem ou uma mulher.

E não estamos falando de práticas sexuais concretas, mas da heterossexualidade como instituição política e social que estrutura a sociedade (em uniões de casal monogâmico, família, propriedade privada… ampliando-se agora essa estrutura a uniões de pessoas do mesmo sexo, fato que responde mais a flexibilidade do sistema para assimilar as novas necessidades – ou possíveis subversões – que mudanças profundas). Desmascarar os mecanismos que operam tanto individual como socialmente é uma tarefa de todas, repito, à margem de nossas opções sexuais temporais concretas, e neste assunto o trabalho continua infinito, pois enquanto a (hetero)sexualidade continue sendo assumida acriticamente como “ normalidade”, continuará existindo o “fora” para as deserdadas dos privilégios lesbo-homo-transfobos e estaremos condenadas a ser o “anormal”, o estranho, o outro… as estruturas profundas do patriarcado não mudarão, só se modificarão para ser mais eficazes, pois não se trata de desenvolver tolerância perante o diferente, mas do exercício de explodir os lugares “seguros” e “normais”, dinamitar essas construções sociais que nos estruturam em normais-anormais, mulher-homem, feminino-masculino, heterossexuais-lésbicas-homossexuais…

Nenhuma opção foi neutra, inócua; o silêncio sempre é cúmplice dos privilégios, de umas poucas. Não basta com certa “aceitação” crescente a respeito de outras práticas não heterossexuais, mas o que devemos é desmontar toda a cultura e simbologia reinante patriarcal (e heterossexista).

É claro, esse sistema de opressão específico para as mulheres como grupo oprimido não define nossa posição de sujeitos em luta a partir de um vitimismo passivo e chorão (mesmo que não nos sobrem razões para chorar) mas a partir do exercício de consciência de nossa realidade psicossocial como “mulheres”, nos jogamos a uma atividade criadora, onde articulamos as estratégias de luta a partir de nossas subjetividades, onde além da divisão entre feminilidade-masculinidade, também operam outro eixos de poder como são a classe social, a opção sexual, a cor da pele, os povos a que pertencemos… podendo chamar assim a esse sistema “hetero-patriarcado-capitalismo”.

Mas o que realmente me preocupa (e a razão principal desse texto) é a ausência “misteriosa” de responsabilidade individual (e também coletiva) na hora de enfrentarmos o exercício de tornar conscientes esses processos de socialização que desde criança fazemos segundo o individualismo egoísta, o consumismo compulsivo, a competitividade e luta por poder, também nos educamos segunda a feminilidade e a masculinidade, mas essas construções carregadas de interesses ideológicos deixamos passar como “naturais” ou “normais” e não as questionamos em absoluto (da mesma maneira que acontece com a “naturalidade” da heterossexualidade). Além disso é preciso dizer que esse processo de autocrítica consciente se realiza através da alegria de nos sentirmos mais donas de nós mesmas, do respeito a outra e aos processos dos demais, através da escuta e do apoio mútuo, e não através do sacrifício e, como dirão, não se trata de negar o desejo, o erotismo, a sexualidade.

Não era a não separação entre vida e política o que caracterizava os movimentos autônomos? Não são os centros sociais e outros espaços coletivos uma aposta pela experimentação, em nossas vidas, de novas formas de socializarmos, novas maneira de afrontar o consumo, o trabalho assalariado e escravizante, a indústria da cultura totalizadora e homogenizante, a geração de pensamento crítico e de novos modos de vida, de novas estratégias de luta e denúncia…? Não criticamos sem parar a política do “tempo livre” depois do trabalho e atenções familiares, que não leva em conta os processos concretos e materiais que operam em nossas existências?

É a partir do prazer em revolucionar os microelementos que ordenam a vida existente que as feministas (já pelos anos 70) apostam em cheio naquilo de “o pessoal é político”: recobrar a materialidade da política para pensá-la como um contínuo de elementos que têm um papel importante na própria vida. Daí o empenho por pensar questões que geralmente passavam batidas e que têm a ver com a educação, com a sexualidade, com a conformação dos corpos, tanto o sistema sexo/gênero/desejo como o imaginário social, com o cuidado, a sustentabilidade da vida, com o próprio ócio. O caráter subversivo deste prazer em politizar o cotidiano em nossas vidas, sobretudo na luta feminista e no trabalho de alguns grupos de mulheres, em falas e revelar o universo do “pessoal”, muitas vezes é depreciado por certas leituras que as relegavam à mística da feminilidade. O que há de mal nisso? O trabalho é e tem sido, entre outras coisas, o fazer consciente, de maneira coletiva, das estruturas sociais e psicológicas que nos conformaram na feminilidade, revelar os desejos e temores que surgiram dela. Com o gesto altivo do “tô me lixando”, por tabela se deprecia o potencial subversivo de questionar quais são os mecanismos de produção do desejo e quais são as possíveis transformações coletivas do mesmo.

Essas incompreensões, incomunicações ou “sombras” tem levado a uma desvalorização do que o feminismo estava produzindo no que diz respeito à forma de entender a política em outros espaço, o empenho em transformar toda política que não levasse em conta a condição transversal de questões como a sexualidade, a educação, os comportamentos cotidianos, os papéis sociais, a linguagem ou as relações afetivas e deslocando em muitas ocasiões as propostas feministas para o terrível formato tipo “a questão da mulher” ou “o tema da mulher”. Sintoma claro que se deixou de levar a sério o trabalho feminista (se é que alguma vez chegou a ser considerado realmente). Quem disse que o feminismo já não tem vigência, que sua luta está passada?

Nesses tempos de crise das antigas estratégias dos movimentos sociais frente às incessantes transformações de nossas sociedades pós-industriais e globalizantes, e ante a dificuldade que nos apresenta uma ruptura com certa “moralidade antagonista” que parece situar-nos sempre fora e contra tudo (o famoso gueto alternativo e autorreferencial e autocomplacente, com suas normas do que está bem e do que está mal) e a criação de projetos e modos de vida em luta que estejam mais próximas das dinâmicas de ação-reação ou ataque-resposta, não devem acabar com o empenho subversivo por transformar nossas vidas através da alegria, do prazer e do desejo coletivo, e aí é onde penso que o trabalho feminista continua sendo uma ferramenta valiosíssima e nada depreciável para nos entendermos um pouco mais e entendermos este mundo-prisão altamente tecnificado e dinâmico em que (sobre)vivemos.

Sendo sinceras, se não queremos nos implicar em projetos coletivos que questionem esse sistema em qualquer de suas produções, pelo menos deixemos de atirar pedras umas às outras e aprendamos a nos respeitar de verdade e de uma vez, porque certas atitudes de desprezo (já não só de incompreensão) são totalmente reacionárias porque tentam boicotar qualquer tentativa de resposta ou atitude transformadora que questione esse sistema, em qualquer de suas manifestações. Nenhuma luta é mais importante que outra, acabemos com o mito da hierarquia de lutas que continua a reproduzir a divisão entre o público e o privado, dando muitas vezes prioridade ao urgente em lugar do importante.

O FEMINISMO VIVE… A LUTA CONTINUA!!!

Susana, mantisafu@yahoo.es/ Alasbarricadas.org

Rompendo imaginários: maltratadores politicamente corretos

Barbara Biglia e Conchi San Martín

O imaginário criado em torno dos maltratadores se constitui como um mito que os mostra como seres irascíveis, toscos, com problemas de drogas ou álcool, de baixo nível educativo, ignorantes, violentos, sem habilidades sociais, transtornados, fracassados e/ou que receberam maus-tratos quando crianças: sujeitos mais além da bem-pensante normalidade. Sendo assim, as mulheres que iniciam uma relação com eles deveriam saber ou pelo menos intuir o que vão ter que aguentar e, portanto, poderiam se considerar parcialmente responsáveis de seus próprios maus-tratos (San Martín, neste volume).

O trabalho de associações de ajuda mútua e de grupos feministas de diferentes partes do planeta (Soriano; Tamaia, neste volume) conseguiram, em geral, desmascarar esta visão. Graças a isso, hoje em dia, manter esta caracterização do maltratador nas análises teóricas ou políticas está mal visto e pode ser lido como sinônimo de ignorância e atraso cultural. No entanto, esta imagem segue persistindo, constituindo-se numa realidade que circula no cotidiano. Isto faz com que, por exemplo, quando descobrimos que alguém conhecido e respeitado maltratou sua companheira, quase instantaneamente nos surge a necessidade de justificar, explicar…, de nos tranquilizarmos pensando que foi talvez um lapso de loucura o que pode tê-lo levado a perder o controle, que a agredida, de alguma forma, desencadeou a ira ou não soube prever a reação…

A apresentação das notícias de maus-tratos pelos meios de comunicação (Nadale e Gordo López, neste volume) quase sempre é acompanhada de declarações de vizinhos que oferecem uma mesma visão: nada podia suspeitar do agressor, pois se tratava de uma pessoa agradável, trabalhadora, simpática, educada, respeitável, e todo uma grande série de epítetos para definir um sujeito “perfeitamente normal” que, inexplicavelmente, ficou doente. A incredulidade e surpresa destas declarações mostra como, mesmo que as investigações tenham demonstrado com claridade que não existem padrões que unificam os maltratadores, no dia a dia resistimos em acreditar na realidade e mantemos o imaginário do monstro e da mulher desamparada.

Contemporaneamente, desdes os âmbitos politizados, sejam partidos ou grupos de esquerda ou movimentos sociais (MS), aparece outro imaginário muito pouco analisado: acreditar que no fundo os maltratadores são uns reacionários e suas companheiras mulheres fracas e sem apoio social. Isso quer dizer que, em âmbitos ativistas e/ou de extrema esquerda, nos quais a igualdade de gênero é teoricamente desejada e levada à prática (sobre a persistência das discriminações nestes âmbitos: Biglia, 2003; Alfama, Miró, 2005), nos sintamos de algum modo imunes ou protegidas. Infelizmente, a raiz de nossa experiência pessoal, de anos de debates em coletivos de feministas autônomas de diferentes partes do mundo, assim como de conversas e encontros informais com amigas/;ativistas, nos deparamos com a falsidade completa deste mito. Também apontam nesse sentido as informações recolhidas na tese de Barbara: 17,9% de ativistas de movimentos sociais que responderam um questionário em rede afirmavam que nos espaços do movimento se verificam episódios de abuso (de forma não isolada ou em situações de bebedeira) e outro 26,4% afirmava que situações deste tipo se produzem em casos isolados ou por parte de gente de um entorno maior (Biglia, 2005). Outra confirmação encontramos na declaração de ativistas chilenas que denunciam como alguns companheiros da guerrilha antipinochetista descarregam hoje sua agressividade martirizando suas companheiras: Creio que o homem no tempo da ditadura foi sumamente combativo e que durante a ditadura o problema era Pinochet e todo seu aparato repressivo; além disso, no tempo da ditadura aqui no Chile, como não havia outros problemas, como que o único problema era Pinochet e o produto de Pinochet era a pobreza, as demissões (ainda que não se falasse) e este tipo de coisas, sabe. E chega a democracia e tu te dás conta de que um excelente dirigente é uma merda em sua casa, bate na sua mulher, abusa sexualmente dos filhos.* Os exemplos poderiam ser muitos e todos tristemente idênticos entre si. Acreditamos que os motivos que levam alguns ativistas a ser violentos com suas companheiras são os mesmos que se dão em outros âmbitos; assim que não nos interessa de modo particular o que passa na cabeça destes “supermilitantes” maltratadores nem tampouco como podem viver em contradição com uma atitude pública perfeitamente politicamente correta e uma realidade de violência privada impressionante. O que sim podemos começar a investigar são as características peculiares de implementação e justificação destas situações, pois acreditamos que a possibilidade de que estas ações continuem, e com frequência impunemente, é responsabilidade de todas nós. Como sublinha num comunicado a Assemblea delle Compane Femministe di Roma (2000) – em resposta a um abuso sexual e que, a nosso ver, poderia facilmente ser ampliado a qualquer situação de violência de gênero e/ou abuso -: Não apenas é cúmplice quem defende explicitamente o violador como também quem, homem ou mulher, fomentando dúvidas, espalhando vozes, deslegitimando a palavra das mulheres, cria um clima no qual os violadores seguem mantendo a liberdade de se moverem tranquilos pela cidade. Cúmplice é também quem, em nome da “razão do Estado” e da prioridade da política, deixa intactas e inalteradas as condições, os lugares, as dinâmicas nas quais a violação ocorreu. Cúmplice é também quem transforma a violação ocorrida atrás dos muros domésticos em uma simples “falta de tato” de um homem sobre uma mulher, particularmente sensível, na regra de um âmbito privado onde qualquer limite está suspenso.

Neste contexto, a segunda afirmação resulta particularmente relevante enquanto mostra como, todavia, custa enormemente que a luta, na teoria e na prática, contra as discriminações e violências de gênero se considere na agenda dos movimentos sociais como elemento político importante. Ao se situar ou serem situadas no supostamente privado das relações, adquirem um valor subsidiário frente à política dos espaços públicos.

Um elemento, como muitos, a ser tratado pelas “feministas”, como diz Micaela (Espanha)*: quando tem um coletivo de mulheres ... tudo o que tem a ver com o sexismo se deixa nas mãos do coletivo ... e o resto do mundo não tem que se preocupar com nada porque elas já o farão. Então para as pessoas que se importam pouco com isso de sexismo e feminismo ... lhes convêm muito bem porque seu movimento tem uma imagem, “porque meu movimento também é feminista porque tem umas aqui para mostrá-la quando for preciso”, e o resto das coisas, então, ficam como antes.

Portanto, nos interessa começar a pensar, sem ânimo de contestá-las de maneira definitiva, estas questões: por que é tão complicado darmo-nos conta dos maus-tratos que ocorrem ao nosso redor?, quais são as dinâmicas e processos que permitem impunemente mantes uma dupla faceta de encantadores e maltratadores?, por que as mulheres feministas não são capazes de deixar estes caras e mostrar às demais a realidade de sua vida privada?, por que se elas começam a falar são poucas as que estão dispostas a escutá-las e acreditá-las? Escrevemos este texto sabendo das críticas e polêmicas que virão consigo, mas com a esperança de que estas simples reflexões sirvam de estímulo para o debate e como primeiro ponto de apoio para companheiras que estejam passando por esta experiência. Dedicamos assim, estas linhas a todas aquelas que conseguiram sair de situações de violência de gênero, a todas as que as ajudaram e, claro, àquelas que ainda não conseguiram encontrar forças suficientes e apoio para fazê-lo.

O MITO DO MACHO E A COERÇÃO DE GRUPO

Como poderia um movimento? "Mobilizar-se como uma força política transformadora se não começa interrogando-se sobre os valores e as normas internamente assumidas que podem legitimar a dominação e a desigualdade neutralizando “diferenças” particulares?" A. Brah, 2004

Em primeiro lugar, queremos remarcar como, desafortunadamente, ainda em muitos ambientes de ativismo o imaginário do “bom militante” toma um caráter quase caricaturesco em algumas figuras prototípicas (Subbuswamy y Patel, 2001). De uma parte, temos uma representação extremamente parecida com a que dão os meios de comunicação: “homem jovem branco com capuz negro com propensão à violência” (Alldred, 2000). Suas características seriam a força, a intrepidez, a decisão, a ousadia e, sobretudo, como diz Silvia (Itália)*, a capacidade de esconder todas as suas possíveis contradições. Por outra parte, encontramos o tipo intelectual, que se mostra como alguém com uma boa bagagem de conhecimentos teóricos (ou pelo menos com facilidade para aparentá-los), uma forte capacidade de convicção, dotes organizativos e de mando, uma tendência à liderança. Mesmo que “este modelo” tem atitudes mais sofisticadas segue mantendo dotes de masculinidade clássica (Jorquera en este volume); poderíamos dizer que enquanto os primeiros se aproximam mais da ideia normativizada de masculinidade de classe social baixa, estes últimos seriam mais parecidos aos machos aristocratas, mais refinados porém não menos perigosos em suas atitudes machistas.

Ao nosso entender, a assunção de ambos os papéis marcados nos canais da masculinidade normativizada pode desembocar em situações de maus-tratos, em sua vertente física ou mais intelectualizada. De maneira física, com surras ou tentativas de violações (ou adulações) – ocasionais ou contínuas. De maneira “invisível”, com a criação de relações de dependência, inferiorizando às companheiras e “fazendo-as crer” que sem eles elas nã são absolutamente ninguém (para um depoimento neste sentido: Nopper, 2005).
Porém, tem mais. As situações de maus-tratos podem ser de difícil reconhecimento quando seu “protagonista” não corresponde ao imaginário do maltratador; assim, por exemplo, nos mostra a campanha por parte da Association contre les Violences faites aux Femmes au Travail (www.avf.org), contra um professor universitário pró-feminista que segue exercendo sem problemas, apesar de várias denúncias de acoso a suas alunas e colaboradoras. Por outra parte, os grupos ativistas estão e/ou se sentem frequentemente ameaçados desde o exterior e como estratégia de defesa tendem a buscar uma coesão interna que passa, com demasiada frequência, por uma identificação identitária e uma redução das possibilidades de colocar em dúvida qualquer dinâmica interna de discriminação (Apfelbaum, 1989; Biglia, 2003). Nessas circunstâncias pode ser que haja resistências a reconhecer a existência de maus-tratos por parte de um ativista enquanto ele poderia converter o grupo minorizado em alvo de críticas de outros espaços externos. Provavelmente a este tipo de lógica responde, pelo menos em parte, o vergonhoso deslace em torno do homicídio de Hélène Legotien por parte de Althusser (Rendueles neste volume). Finalmente, o maltratador pode se amparar e justificar em nome do perigo (real ou imaginário) que acarreta seu ativismo, da repressão que está recebendo, que recebeu (como no caso dos ativistas chilenos citados anteriormente) ou poderia receber, ou do estresse de sua posição de super-herói, etc.

Elementos utilizados para justificar seus ataques, para reivindicar/exigir um cuidado onicompreensivo (já que põe tanto de si na luta necessitam o “descanso do guerreiro”) ou, finalmente, para acusar (expressamente ou de maneira latente) de conivência com o sistema repressor àquelas mulheres que não queiram lhes prestar estes serviços, se queixem dos maus tratos ou tentem denunciar a situação.

Digamos que o maltratador encontra razões para suas justificações, mas o que ocorre com o entorno? como se percebem estas dinâmicas? Este testemunho, coletado pelas autoras em uma conversa privada com uma companheira e amiga (2005), deixa clara a dificuldade de reconhecer estas dinâmicas a partir de sua experiência como mulher maltratada e como ativista no mesmo grupo no qual estava o casal: teve uma longa relação de maus-tratos com um militante heroico, sedutor, com carisma. Conseguia que qualquer crítica interna se convertesse em um ataque à causa, mas como questionar aquele que constantemente nos demonstrava que se deixava a pele no intento, na luta? como questionar aquele que parecia ter a experiência e a lucidez como para guiar o resto? Assim se dava a mudança mortal: aquele que criticava era culpado, a “graça” estava em que chegava a se sentir assim. Devolvia, então, o questionamento ao outro, sempre mais frágil, sempre menos valente, menos heroico, menos comprometido, mais egoísta… Esta pessoa se dedicava a atacar, com essa técnica de atacar sem que o pareça às mulheres. Quem acreditaria (entre elas, eu mesma) que essa pessoa fosse um maltratador?
Assim, criticar um “bom companheiro” tem com frequência a contrapartida de receber a acusação de estar fazendo o jogo do sistema e de não entender que existem problemáticas mais importantes a enfrentar; e as mulheres que se atreveram a isto são silenciadas, escarnecidas, ignoradas, excluídas, quando não ameaçadas – e acusadas de serem cúmplices dos adversários políticos.

Há poucos anos presenciamos um caso deste tipo na Catalunha. Quando uma ativista explicou sua situação de maus-tratos por parte de seu companheiro, um reconhecido ativista, a resposta generalizada fui de forte ceticismo. Dentro do movimento criaram-se dois blocos de enfrentamento (aqueles que acreditavam nela e apoiavam-na, e aqueles que acreditava nele e apoiavam-no), e talvez pior: algumas das pessoas se posicionaram somente por aquilo que tinham ouvido dizerem ou por proximidade política com o/a ativista em questão. Falando com algumas das mulheres que apoiaram a ativista “denunciante”, comentavam a sensação de tristeza, de solidão e de raiva ao ver como as pessoas com as quais haviam compartilhado anos de militância antifascista, anticapitalista, autogestionada, etc., podiam se mostrar tão fechadas e inflexíveis quando os discriminadores eram seus próprios amigos. É óbvio que, especialmente quando conhecemos as pessoas implicadas em uma situação deste tipo, mantenhamos uma certa precaução antes de formarmos uma ideia precisa sobre os fatos. Mas parece-nos que talvez as precauções para o “suposto maltratador” são desmesuradas em comparação com outras situações. De fato, por exemplo, no caso de que alguém torne público ter recebido uma surra por parte de outros por divergências políticas, nada colocará em dúvida que isto ocorreu e a pessoa não precisará explicar milhares de vezes todas as particularidades do evento numa sequência correta e precisa, nem justifica porque o golpe recebido deve ser considerado violento. Ao contrário, no caso de que uma ativista seja maltratada por um ativista se desenvolve um fenômeno curioso: a mulher que se atreve a “denunciar publicamente” antes de poder “demonstrar a culpabilidade” da outra pessoa deve primeiro defender-se da acusação mentirosa, rancorosa e histérica (e ainda assim nem sempre funciona como, por exemplo, nos detalha Rendueles neste mesmo volume). Com frequência, ouvimos comentários do tipo “se fosse verdade e ela não tivesse nada para esconder, viria aqui ao coletivo a nos explicar exatamente o que passou; melhor, poderiam vir os dois, assim com a confrontação saberíamos quem tem razão”, que mostram um clara insensibilidade pelas dolorosas dinâmicas dos maus-tratos e as dificuldades de superá-las. Ninguém pensaria, por exemplo, em obrigar um companheiro que foi torturado e/ou violado por algum organismo repressor a contar com todos os detalhes o ocorrido na frente de todos os grupos os quais pedem uma participação numa campanha de denúncia-solidariedade. Esta dupla moral faz supor três coisas: a primeira, que é fácil reconhecer os erros dos “inimigos”, mas que a proteção do “nós” resulta ainda muito forte; a segunda, que, todavia, as palavras das companheiras têm menos credibilidade que as dos companheiros; e a terceira, que os maus-tratos ainda se percebe como uma experiência pessoa nos espaços privados e não como para de um processo político. Quando, ademais, os maus-tratos são do tipo psicológico, a situação se complica ainda mais, pela impossibilidade de “provar” o que aconteceu: não existem marcas físicas e se trata de situações de abuso sutil cujo resumo as esvazia de suas matizes mais cruéis e devastadores. Assim, como sugere uma companheira da Eskalera Karakola (sem data): outro salto que tem que ser feito é a atenção à mulher que sofreu agressão ... Primeiro, para entender e aprender como se experimenta a agressão ... e não ter medo do intercâmbio e do fantasma da chacota (no original, morbo). Quando se produzem agressões tem-se que criar grupos de apoio, de intermediação e acompanhamento porque uma ocorrida a agressão, quem a sofre segue circulando por aí e tem muito que digerir.

Nada de invisibilizar sem saber, sem conhecer como se sente a agredida, como define a violência e atua contra ela, contra a violência do momento e contra a dos momentos posteriores. Se envolver com o ritmo e as exigências de quem a vive. Neste sentido, uma tentativa de encarar esta problemática, reconhecendo que ainda temos muito que aprender (o que es um bom começo), são as recomendações por parte da rede de ativistas People Global Action Europe (PGA, 2005) perante situações de maus-tratos dentro dos coletivos.

EU, MULHER FORTE: SOZINHA ENTRE MUITAS

Outra imagem a derrubar para uma superação dos maus-tratos dentro dos grupos ativistas é a de que uma mulher, para ser feminista o para ser não-sexista, deve ter superado todas as limitações de uma cultura heteropatriarcal; que uma mulher liberada tem que se parecer ao estereótipo do homem branco moderno: independente, forte, ativa, segura de si e, além disso, no caso das militantes, isenta de contradições (para um testemunho: Anônima, 2004). Este imaginário leva ativistas maltratadas a ter extremas dificuldades em reconhecer sua dependência de um homem e sua pouca força para sair de uma situação abusiva. Assim, por exemplo, nos mostra o testemunho desta ativista norte-americana: o incômodo associado a dizer às pessoas que sofreste um abuso, ou como no meu caso, que estiveste em uma relação abusiva, aumenta pelas respostas que recebes das pessoas. Mais que simpatizar, muita gente esteve como decepcionada comigo. Muitas vezes me disseram que estavam “surpreendidos” de que tinha “me enfiado nesta merda” porque longe de ser uma “mulher fraca” era uma mulher “forte” e “política”. (Nopper, 2005)

De alguma maneira seguimos sentindo-nos culpáveis ou inferiores por estar suportando uma situação deste tipo e nos dá muita vergonha admiti-lo, sem contar o medo de fazê-lo. Ao nosso entender, esta característica se deve a uma má compreensão, que queremos denunciar aqui, do que é o feminismo. Ser feministas ou ser uma mulher ativista não implica, afortunadamente, não precisar de apoio de nossas amigas e amigos, nem ser completamente autônoma nem ter que resolver qualquer problema pessoal só individualmente. Mais ainda, desafortunadamente, todas reproduzimos formas de dependência heteropatriarcal e algumas vezes nos comportamos de modo sexista. Reconhecer limitações e contradições, compartilhar nossos maus-tratos no diálogo com umas e outros, pedir ajuda, conselhos, suporte, são práticas feministas que podem nos ajudar a crescer tanto em nível individual como de maneira coletiva. Romper a imagem de mulher forte e dura, aconteça o que acontecer, vivermos nossas múltiplas facetas, performando-nos de maneira diferente segundo as ocasiões e os momentos, são práticas de subversão e desarticulação do heteropatriarcado que quer nos construir como subjetividades individualizadas.

Obviamente, abater as barreiras da solidão (que podem existir mesmo que tenhamos muitas amigas) e do privado não é uma tarefa fácil e, está claro, não incumbe exclusivamente aquelas que estão em situação de abuso, senão que deveria ser um trabalho político e coletivo que nos implique a todas e todos para deixar de ser, como diziam as companheiras de Romas (citação mais acima), cúmplices de nosso silêncio ou cegueira.

As barreiras como viemos mostrando são múltiplas, e insistimos, tomam especial força ao seguir considerando os maus-tratos como expressão de relações privadas. Assim, diante de suas manifestações, nos encontramos frequentemente com uma extrema indecisão e incerteza sobre as possíveis ações a realizar e tendemos a colocar a responsabilidade última de resposta a esta situação à mulher, como mostra este extrato de entrevista com Paloma (Chile)*:

P.: ... Eu fiquei chocada com a atitude de um companheiro que enche a boca com essa história de igualdade social e respeito mútuo. De noite fomos comer pizza e sua esposa ... pediu a pizza e ... não eram as que ele queria ... e disse “mas de onde inventaste de pedir esta porcaria” e não comeu e nos fez perder toda a tarde oprque queria outra pizza e tratou-a como um déspota…
B.: Ninguém disse nada?
P.: Não, ou seja, alguns de nós como que dissemos tá ... mas não foi algo como “escuta, acaba a palhaçada”. É que também ela deveria ter feito algo, mas ficou calada e esteve a ponto de chorar, como que super resignada.

Apesar de algumas interessantes campanhas, geralmente levadas a cabo ou pelo menos iniciadas por coletivos feministas em resposta a situações concretas, os maus-tratos, e em concreto aqueles que acontecem dentro dos espaços do movimento, não foi, todavia, objeto explícito de debate político profundo nos movimentos sociais. Isto nos leva a situações de enorme fragilidade e incerteza que se constituem em dificuldades para reconhecer e atuar. Como temos constatado através de conversas privadas, em diferentes ocasiões em que coletivos de feministas autônomas iniciaram campanhas de respostas perante agressões de gênero por parte de algum ativista, acabaram enfrentando também muitas contradições, dúvidas e, obviamente, uma quantidade de críticas que foram tremendamente dolorosas. A falta de debate sobre o tema, as poucas campanhas realizadas, a forte obstrução a que em geral foram submetidas, e o fato de ter que tentar maneiras de atuar que sejam incisivas mas que não despertem rupturas no movimento não permitiram desenvolver línhas de intervenção. Isto, tirando que requer muitas energias, converte às vezes as campanhas em pouco efetivas. Por exemplo, na Catalunha, há poucos anos, uma mulher explicou a situação abusiva que estava vivendo e não teve capacidade de “vesti-la” suficientemente nem de protegê-la da situação. Finalmente esta ativista não teve mais remédio que denunciar o maltratador ao sistema judicial, sendo então acusada de “traidora”. Nos perguntamos: como se podem julgar as atitudes das pessoas por pedir ajuda externa, se n]ao somos capazes de assumir coletivamente a responsabilidade na solução dos problemas?

ALGUMAS REFLEXÕES DE CONCLUSÃO

Qual é a finalidade deste escrito? Simplesmente a de servir para olhar para nós mesmas e para nossas companheiras, para que se acabe com as dinâmicas de maus-tratos e que juntas possamos encurralar aqueles que se creem no direito de realizá-los.
O que esperamos é que gere polêmica, que se considere os maus-tratos como uma questão política sobra a qual nos devemos posicionar e atuar. Gostaríamos que as ativistas que passam por esta experiência no se sintam só, nem pouco feministas devido ao que lhes está passando, senão que descubram que é algo que ocorre mais do que se diz e que a solução deve ser coletiva. Por isso, temos que encontrar forças para falar, compartilhar a experiência de maus-tratos com uma amiga; esse é um primeiro passo para sair deles. Por outro lado, esperamos que, quando uma mulher lance sinais do que está acontecendo, as pessoas que estejam ao seu lado tentem percebê-los e, a partir disso, possam oferecer o apoio necessário, sem que se hajam resposta de rechaço, de juízo e ataque, senão que haja escuta e acolhimento.

Mesmo que nos pareça exagerada a expressão “cada homem é um maltratador em potencial”, é importante reivindicar que o imaginário do maltratador com que iniciamos este escrito nos desvia da possibilidade de reconhecer o abuso em todas as suas formas e expressões. Esperamos ainda que se entenda que mesmo que “reconhecidos ativistas” possam ser maltratadores, físicos ou psíquicos, na realidade quem maltrata não é nem pode ser companheiro.

Ser capaz de ver mais além da imagem, do aparente e desarticular os imaginários de gênero, assim como os que circular ao redor das “identidades militantes”, é a nosso entender uma prática necessária contra as violências de gênero.
Texto publicado em “Estado de Wonderber”- Entretecendo narrações feministas sobre as violências de gênero, Vírus ed.

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Rompiendo imaginarios, maltratadores políticamente correctos

Por que falamos de Sexismo nos espaços liberados

- Porque vivemos em uma sociedade capitalista e patriarcal, baseada no império do macho sobre a mulher, e fomos educad@s com base neste valores. E porque para construir uma alternativa a este sistema, o primeiro passo é mudar a nós mesmas. Em nossa concepção da vida, as relações, a sexualidade… A dificuldade não está em teorizar sobre a mudança, senão levá-la à prática. E isso é precisamente o que mais nos custa.

- Porque apesar de que somos todos e todas as que combatemos o Capital, o facismo e o sexismo, ainda há alguns que contam mais que outros. Talvez por veterania, costume ou simples tom de voz, em determinados lugares, assembléias, jornadas… se escuta e se dá mais credibilidade à voz destes.

- Porque não apenas queremos libertar espaços, senão também mentes e atitudes. E nas festas dos centros sociais ainda há pessoas que se liberam cantando às (e nao a_os_)que estão no balcão por puro disfrute, ou pior ainda, porque acham que é assim que se flerta.

- Porque não somos as namoradas nem as companheiras de, senão que temos suficiente entidade e personalidade por nós mesmas. Mas, para nosso ambiente alternativo, embora se fale de fulano como “aquele que é muito bravo e que está em tal coletivo” se esquecem que fulana, ademais de ser sua companheira, é tão insubmissa como ele mas talvez faça menos ruído.

- Porque ainda há gente que acredita que ser forte significa ser durão ou durona. E se avergonharia de mostrar debilidade em público, ou então despreza aqueles que o fazem. E já muita repressão temos sobre nós para reprimirmos as lágrimas ou a tristeza porque há quem não as considere revolucionárias.

- Porque nós mesmas em teoria tratamos de romper com os tópicos e papéis estabelecidos de familia, casal, relações… seguimos reproduzindo em muitas ocasiões a mesma repartição de papéis, a incomunicação e a incompreensão entre homens e mulheres.

- Porque todos enchem a boca falando de sexo seguro, mas ainda é lamentavelmente certo que, em muitos casos (relações estáveis, abertas, esporádicas, trios, noites loucas e demais), esta responsabilidade básica está longe de ser compartilhada por todas e todos, e a iniciativa continuamos assumindo aquelas que podemos ficar grávidas.

- Porque embora a sociedade avance para uma maior repressão da sexualidade das crianças, nos vendem que as mulheres nos libertamos porque já podemos ser militares e agressoras em vez de agredidas, enquanto continua a desigualdade dos sexos, a homofobia e, definitivamente, a perpetuação dos papéis sexistas, enquanto seguimos sofrendo o sexismo inclusive nos espaços liberados, ainda há quem não vê o anti-sexismo como uma luta coletiva, necessária e urgente. Ou não entende por que algumas mulheres escolhemos romper com estes abrindo espaços de debate, de ação, de festas… somente para nós mesmas. Não seria porque temos mais urgência?

Este texto deseja recolher as impressões, debates e discussões que muitas de nós mantemos diariamente sobre o sexismo na nossa comunidade, e acreditamos que ele reflete muito bem nossa realidade. Não se trata de fazer críticas destrutivas, senão de romper com o que nos impôem com um pouco de auto-crítica sincera e rindo-nos de nós mesmas.

Saúde e Anti-sexismo! 1

Texto escrito por Las Tensas (As Tensas), coletivo feminista do centro social ocupado La Hamsa, publicado no Infousurpa, 1998.

1 uma maneira de ressignificar o ‘Saúde e Anarquia!’, forma de saudação anarquista.

Geometria, ideologia e geografia das relações de confiança: Apontamentos sobre violências de gênero (Antón Corpas)

Geometria da Confiança e do Direito

Se pegarmos o ditado “as paredes falam”, a denominada sabedoria popular, querendo dizer uma verdade, engana. As paredes ouvem, as paredes veem e as paredes sabem, mas geralmente, as paredes calam muito do que poderiam dizer. As paredes tem voz, vista e ouvido e inclusive são sensíveis ao tato, mas normalmente preferem fechar os olhos, morder a língua ou sair do seu lado.
Existe um espaço de direito que se define, se constrói, se destrói ou se transforma nas relações de confiança: familiares e pessoas da comunidade (vizinhas, amigas, colegas de trabalho…). Daí surge uma educação social e de gênero, uma educação política e uma educação sentimental, porque não só se deve aprender qual é seu lugar e sua função, o que lhe cabe decidir e do que se coloca aparte, também se deve aprender como sentir, para ser e sobreviver. Assim, um homem que nunca forçaria a “mulher do outro”, o faz sem problemas de consciência com a “mulher própria”, uma mulher que se defenderá com unhas e dentes de um “estranho” suportará fortemente à violação de seu “próprio marido”, o mesmo menino que ameaça a outro por molestar “minha irmã” dará a si mesmo o poder de encurralar “esse corpo”, ou uma mãe pode abafar o grito no caso de uma agressão em que o responsável seja “seu irmão”. Para isso é preciso aprender a sentir uma mesma ação de maneiras diferentes.

Essa é a geometria da Confiança e do Direito que, quando se passa entre a própria família, se transforma em uma geometria variável. Então a verdade pode ser paranoia, a raiva ou o temor suscetível, e a proximidade em vez de aproximar, distancia. Não é incomum que quando uma mulher denuncia o abuso ou a agressão de um bom vizinho ou um bom amigo, ela acabe sendo acusada ou estigmatizada, ativa ou passivamente, como um problema. Da mesma forma, os acontecimentos que lidos no papel ou vistos através da tela da televisão, são injustificáveis e indignantes, serão relativos ou “diferentes” atrás da porta ou do outro lado da parede. Não é uma questão de status ou ignorância, não necessariamente. Basta lembrar como Sigmund Freud diagnosticava a Dora – filha de um mecenas editorial de psicanálise – “desejo edipal e polimorfismo da conduta sexual”, quando a jovem sofria um transtorno pelo abuso sexual incessante de um amigo da família. O primeiro patriarca da psicanálise emitia assim um juízo conveniente para a paz familiar de seu amigo e colaborador financeiro.

Como indicam os dados do Centro de Apoio a Vítimas de Agressões Sexuais (CAVAS), é impossível falar de violência sexual sem referir-se às relações de confiança. Segundo esse centro, que trata uma quantidade pequena do total de agressões, dos 271 casos atendidos em 2005, mais de um terço (36,5%) conrrespondem a “conhecidos da vítima ou que tem algum tipo de relação com ela” e que o centro divide entre “conhecido recente” e “pessoa próxima”. Para agredir, da mesma forma que para se defender de uma agressão, é preciso sentir-se com direito de fazê-lo, e para isso são necessários convicção pessoal e certa proteção social. O protótipo do violador que ainda se desenha no imaginário coletivo, o sociopata do beco escuro, é consciente, e portanto clandestino, de estar cometendo um delito. Por outro lado, a agressão – de qualquer tipo que seja – de um marido, um irmão ou um amigo, acontece em segredo e amparada na privacidade mas com um respaldo de parentesco ou familiaridade, com a confiança e a coesão, com a certeza da compreensão, a mediação ou o silêncio da comunidade. Isso não significa que haja aprovação coletiva de determinadas ações, mas sim a facilidade para omiti-los ou para, uma vez visíveis e inegáveis, priorizar a proteção e a reprodução da normalidade: que o pai continue sendo o pai, o irmão o irmão, e o namorado o namorado.

É dentro dessa consciência do normal e do subnormal – o que pode acontecer sob a proteção da normalidade, inclusive quando quebra preceitos e tabus como o incesto ou a pederastia – que um marido e não raramente um irmão, um avô, um primo ou um vizinho impõem um ato sexual, mediante disfarces teatrais como o jogo, o carinho, a paixão ou a sedução. Um contexto que permite fazer algo danoso sem pensar na vontade do outro, com uma absoluta tranquilidade moral e emocional, e ainda ter o privilégio de fazer dano “sem querer”, “sem intenção”, “sem saber”.

Os homens que encontram amparo moral e jurídico no matrimônio ou amparo social e moral na família ou na comunidade para impôr uma vontade sexual sistemática ou circunstancialmente, não atuam nunca, nem ontem nem hoje, por impulso de nenhuma disfunção ética ou psicológica, não o fazem por uma falha educativa ou pedagógica, nem sequer por má intenção, senão como assinalamos acima, “por direito”. Da mesma maneira que quando uma mulher não se defende, não o faz por debilidade mental ou física, ou por alguma espécie de choque psicológico, mas por uma ausência de direito.

Ideologia e violência nas relações de confiança

Precisamente quando dizemos “relações de poder” falamos de relações de direito. O poder é muito mais e é habitualmente diferente da imagem do empurrão, da bofetada, do sangue ou dos hematomas. Forçar a um corpo que resiste, gritar a um rosto que responde, afirmar-se com um golpe contra uma negativa, isso não é exatamente o poder. Mesmo que seja a força o que habitualmente permite impôr e normalizar uma situação. O Poder em seu pleno sentido está onde a força não é necessária, onde as coisas podem precisamente “passar” sem nenhum conflito visível nem previsível.

Esses 36,5% que falamos – e que eu não diria que é pouco – não é uma acumulação de “erros” ou de “anomalias” individuais, não é uma porcentagem de amoralidade nem anormalidade, mas uma prova do bom funcionamento das relações de confiança como surdina e colchão das relações de violência. Ao falar de relacões de violência, nos referimos também e sobretudo à não-violência das formas de abuso e agressão sexual que não tem porque serem produzidas sob golpes ou força física.

Aí onde se produz a violência sexual de maneira normalizada, “privada” e invisível, é onde se comente mais equívocos na sofisticação da linguagem e nas interpretações. Será interessante pensar que sim, a violência de gênero nas classe altas sempre teve um componente psicológico e respeitoso com os estritos “modos” da alta sociedade, hoje, a importância dos modos e das aparências se aplicam também às classes médias, que aprendem que na não-violência das boas formas está o segredo da decência e da distinção. Ou seja, a relação entre violência, sutileza e bons modos, que era patrimônio das classes altas, tem se democratizado.

Por outro lado, no debate acadêmico, e eu diria que inclusive nas controvérsias privadas em torno da violação marital, continuam existindo divergências – que lembram a incansável e estéril discussão relativa à humanidade do feto e à legitimidade do aborto – sobre a necessidade ou não de forçamento e penetração para se definir agressão. De alguma maneira, essa postura que trata de analisar o acontecimento de maneira isolada, e que exige que para definir uma violação não só haja um conflito de direitos mas também uma derrota física, requer a existência de uma pessoa forte e uma pessoa fraca.

Se lembramos o caso de Nevenka Fernandez, ex-vereadora que denunciou em 2001 o prefeito de Ponferrada por abuso sexual, é antológica a postura do juiz ao colocar em dúvida o relato da denunciante porque, e cito de memória, “a segurança com que a senhora fala me indica que é uma mulher forte e me custa imaginá-la como uma vítima”. Nesta mesma polêmica, o jornalista Raúl del Pozo, muito moderado, muito progressista, rapidamente acrescentou: “Me parece que nessa história obscura pode ter acontecido de tudo, mas o abuso sexual não é um diagnóstico eficaz, nem tampouco o abuso de poder. Ela tem esse poder do apogeu da beleza que é mais poderoso que o de um prefeito.” (“Acoso”, El Mundo 3/04/2001). Mesmo que seja óbvio, me consta, por conhecimento direto, como homens frágeis psicológica ou fisicamente mantém uma sólida posição patriarcal e de dominação e, da mesma maneira, sei que mulheres fortes e inteligentes, em determinados momentos, toleraram ou se calaram diante de agressões e relações sexuais não desejadas.

Essa noção de pessoa forte e pessoa fraca, muito ideológica, muito ao modelo de sabedoria neoliberal, casa muito bem com o mito da violência explícita e visível como a representação fundamental do domínio, e com base em um discurso que quer relacionar competitividade com igualdade de gênero. São conceitos que, com uma firme raiz no imaginário e nas convenções morais, borram facilmente a realidade social das relações de poder, e a própria visão frente a acontecimentos próximos e cotidianos.

Nova geografia para velhas relações de confiança

Sem romper totalmente com o que temos e com as velhas estruturas familiares e comunitárias, o que viemos explicando se desloca e adota novas formas quanto mais a vida se afasta do privado, no trabalho, no ócio, no espaço público ou no ciberespaço.

Demos um salto de uma vida essencialmente ao redor do “lar” em um sentido amplo, a uma promiscuidade mercantil em que se multiplicam as formas e os lugares de familiaridade na mesma medida que se reduzem a profundidade e o compromisso. Damos lugar, então, a uma nova dimensão, uma zona onde convivem a cotidianidade, a proximidade e o desconhecimento mútuo, que podemos definir como de relações de confiança e superficialidade. Isso acontece em meio a um turbilhão competitivo e sem ter ocorrido uma transformação substancial das relações sociais de gênero. Podemos dizer que demos um salto mas não fizemos nenhuma ruptura, nenhuma revolução, nenhuma transformação, mesmo que tenham mudado os espaços, os tempos, as técnicas e as tecnologias. Assim, apesar da individualização generalizada do plano de vida e a destruição de numerosos aspectos dos laços comunitários, continuamos perante relações de poder sociais, sem que as modificações do status jurídico das mulheres em geral, e o acesso a outros trabalhos ou a outras opções de algumas mulheres, tenham modificado as linhas de continuidade da dominação masculina.

Apesar de que em todos os discursos e em qualquer das retóricas (pública, privada, institucional ou judicial), tem-se imposto um determinado sentido do politicamente correto, na verdade, não existe um dado resolutivo ou suficiente ao qual se agarrar para falar de diminuição da violência de gênero. E aqueles que consideram o aumento do número de assassinatos de mulheres por seus companheiros ou ex-companheiros e outros dados desse tipo, como os “últimos e violentos” golpes do velhos machismo, se enganam. A história e as relações de poder não são tão “progressistas” como nós.

Demos um salto rápido e caímos ainda mais desprotegidos no âmbito do mercado, mas mediados pelas mesmas relações de poder. Isso, que em linhas gerais é a vida social convertida em guerra civil, e em matéria de gênero está longe de indicar uma diminuição da violência e das agressões sexuais, faz mais que previsível seu crescimento.

Texto publicado no blog “mambo.pimienta.org”, 2006

Sobre gênero e caras do “meio” (ou de como estamos com merda até o pescoço)

Oi, escrevo essas palavras sem a intenção de encher a paciência de ninguém, com a única finalidade de me desafogar e no melhor dos casos, se continua lendo, compartilhar contigo certa inquietude ou curiosidade. Pra ir direto ao ponto, o que vou dizer já não é uma questão de como o patriarcado afeta caras como nós, não quero começar a analisar ou a difundir ideias que existem em milhares de materiais escritos e que, se te interessam, pode consultar. Sabemos que funcionamos por esteriótipos que nos associam e nos identificam a grupos concretos dentro da sociedade (homem, branco, okupa, hetero,…) e que nós, em um ambiente tão difuso como é o do “ativismo” antagonista em Barcelona, reproduzimos milhares desses esteriótipos cheios de merda que engolimos desde pequenos.

Minha frustração, chateação ou inquietude, como queira chamar, surge quando me deparo com várias situações ao meu redor em que se supõe que, segundo o discurso, deveríamos já ter superado ou no mínimo trabalhado sobre elas e que, muitas vezes, reproduzimos os comportamentos mais ordinários do oportunismo clássico. Vejo que colegas (gurias) são agredidas por seus companheiros, física e psicológicamente, vejo que colegas (principalmente caras) escondem sua homossexualidade, vejo que quando acontece algum debate sobre sexismo ou patriarcado é sempre uma iniciativa das gurias e as posturas dos caras são bastante patéticas, vejo milhares de dinâmicas que reproduzem as desigualdades entre caras e gurias, homos e heteros (cantadas, papeis em assembleias, restrição à escrita…), vejo hierarquias informais que faz com que tenhamos uma dupla moral frente a diversas situações (credibilidade de acordo com a pessoa, blábláblá, abuso, agressões…), vejo que não temos mecanismos para afrontar tudo isso, e que nem sequer temos espaço ou interesse para criá-lo, onde possamos falar sobre e procurar saídas…

Para mim ficam várias dúvidas: Que mecanismos desenvolvemos que nos fazem pensar que temos direito a dizer a outra pessoa (nesse caso me refiro a nossx companheirx) o que tem que fazer? Por que, em muitos casos, recorremos à força ou à chantagem emocional para conseguir o que queremos? Por que somos capazes de identificar, sem que haja qualquer dúvida, certos tipos de agressões e outros não? Por que não intervimos com a mesma contundência frente a uma agressão de gênero ou de casal quando acontece em nosso entorno mais próximo? Quando uma pessoa forma um casal, deixa de ser pessoa? Consideramos as relações de casal algo privado ou uma realidade política?

À parte que cada um deve viver sua sexualidade como queira, por que milhares de caras do “meio” não saem do armário? Criamos as condições necessárias em nosso meio para que se desenvolva nossa sexualidade com total naturalidade? Ou, se vê um colega se agarrando com outro em uma festa não voltarão a ser amigos?

Sabe, não queremos reproduzir o esquema que nossos pais e vizinhos usam em suas relações, somos legais e não acreditamos no casal fechado ou no padrão de família nuclear. Nos limitamos a fingir uma simples contraposição a esses esquemas, negando a existência de sentimentos que classificamos como ruins (ciúmes, compromisso, dependência,…), ou os identificamos, questionamos e tentamos superá-los? Até que ponto os “antiesteriótipos” que construímos não nos condicionam? Por que subvalorizamos qualidades que classicamente são atribuídas ao feminino (dozura, cuidar dos demais, fragilidade)? Está tudo bem em ter necessidades que consideramos convencionais? Você acredita que exista um elxs (fora do meio) e um nós?

Sem aprofundar muito o tema, quando você considera que uma relação sexual é satisfatória? Quando você goza? Quando a outra pessoa goza? Transar é penetrar? Não é não, ou insisto um pouquinho…? Me importa o que a outra pessoa sente ou só quero gozar? Você faz fantasías na cama (ou onde quer que seja), joga, experimenta…?

Se sxx pareceirx, esporádicx ou fixx, te pergunta: “ O que sente?” você é capaz de responder ou te dá um arrepio, um suor frio na espinha e sua mente se bloqueia? Nos falta vocabulário para expressar o que sentimos ou simplesmente nem pensamos sobre isso?

Bom, eu podia continuar semeando perguntas, e certamente todxs temos milhares mais, mas também não acho que o mais importante seja encontrar as respostas. Para mim, e sei que estou viajando, o objetivo ideal seria que fôssemos capazes de semeá-las juntxs, que criássemos e fomentássemos espaços onde se possa debater e experimentar. Que fizéssemos um trabalho pessoal e coletivo, sem distinção de gênero. Que explorássemos ao máximo nossa capacidade emotiva e sexual. Que aprendêssemos a das respostas às agressões de gênero de forma clara e contundente. Só isso.

Se você se interessa pelo tema tem uma série de livros que podem te agradar:
“? Que hace el poder en tu cama?”.Josep Vicent Marqués. Ed. Icaria
“Nuevas masculinidades”. Vari@s autoras/es. Ed. Icaria
“XY, la identidad masculina”. Elisabeth Badinter
“Los chicos no lloran”. Sue Askew y Carol Ross
“La dominación masculina”. Pierre Bourdieu
“Gender trouble”. Judith Butler
“Queer theories”. Anamarie Jagoda.
“Tengamos el sexo en paz”, “La pareja abierta”. Franca, Jacopo y Dario Fo.

Também tem uma série de autorxs que tem publicado livros e artigos muito interessantes: Robert Sly, Sam Keen, Luis Bonino, Beatriz Preciado…

E tem gente que leva tempo recolhendo informação e fazendo coletâneas sobre o tema, se procurar um pouco com certeza encontra.
Se tem algum apontamento, pergunta, sugestão, crítica ou insulto que queira me transmitir sobre o texto, escreve um e-mail para de_genere@yahoo.es

Esse texto foi difundido em 2004 em meios de contra-informação como Indymedia e o fanzine “Bailamos?”.

Quem teme aos processos coletivos? Notas Críticas sobre a gestão da violência de gênero nos movimentos sociais

O discurso contra a violência sobre as mulheres forma parte implícita e também explícita do discurso político geral. A violência machista é rejeitada pelo conjunto da sociedade e todo mundo parece reconhecer que é um problema político de primeira ordem. Evidentemente também os movimentos sociais recolhem esses conceitos e mostram abertamente seu próprio discurso anti-sexista. Até aqui perfeito.

Vocês perguntarão por que estamos escrevendo este texto… nós nos perguntamos por que há tantas agressões dentro dos movimentos sociais e por que tanta incapacidade para gestioná-las coletivamente. Nos preocupa o nível de tolerância que há nos espaços políticos ante as agressões e a naturalização/normalização de certas formas de violência. Nos inquieta a incongruência entre discurso e prática e a falta absoluta de sensibilidade a respeito; o que demonstra que é um tema de quarta, se é que chega a considerar-se como tema. Nos enfurece que dentro dos movimentos sociais atuemos como se tivessemos acreditado que as questões que planteia o feminismo já foram assumidas por tod*s e por tanto, já estão superadas e são repetitivas e desnecessárias. E este, apesar das reivindicações básicas de fazem mais de um quarto de século, siguem ainda no tinteiro, e quando as mulheres de todo o mundo sofremos discriminação, abusos e controle de distintos tipos que impedem a liberdade de expressão, pensamento, a liberdade sexual e o movimento. Não somente isso, no contexto de Barcelona há um retrocesso nas práticas coletivas e no discurso a respeito de um passado não tão lejano, fato sintomático de que restam poucos grupos feministas, o que demonstra que, uma vez mais, eram apenas as mulheres as que se ocupavam da violência. Esse retrocesso nas práticas coletivas não é um problema de uns poucos casos de sempre, estamos falando de um problema estrutural e de uma questão de responsabilidade coletiva.

No entanto, existe uma grande resistência a identificar o óbvio, a qualificar como tal as múltiplas caras da violência contra as mulheres, assim como para detectar os casos que podem ser incluídos sob esse nome; esse é um mecanismo magnífico para nadar e guardar a roupa, do tipo “a violência é algo muito ruim, mas isso justamente não é violência”.

A violência estrutural contra as mulheres não é um conceito abstrato próprio dos livros, nem uma coisa da vida de outros, alheio a nosso micro-mundo nos movimentos sociais. A violência estrutural não são os quatro abusos concretos na boca do povo, nem a soma infinita de agressões que cada uma pode constatar ter sofrido. Tampouco são aquelas ações perpetradas por monstros que vêem e apunhalam. O iceberg não é apenas a ponta.

Estamos falando de pautas generalizadas de dominação que atravessam a experiência de ser mulher e todas as esferas da cotidianidade: as relações pessoais, a percepção e o uso do espaço público, o trabalho, a autoridade reconhecida, a percepção dos próprios direitos ou a ausência deles, a relação com o próprio corpo e a sexualidade, e assim um largo etcetera.

A violência estrutural é um mecanismo de controle sobre as mulheres, mas não apenas como forma extrema, ameaça de castigo onipresente que necessita ser provocada o desencadeada, senão que é uma forma de relação normalizada e naturalizada e que portanto pode ser exercida sem a necessidade de justificação.

Mas não estamos fazendo uma dissertação teórica, falemos de casos concretos. No último ano houveram, dentro dos movimentos sociais, numerosas agressões contra mulheres: agressões no seio da relação a dois, violência psicológica na convivência e agressões físicas e sexuais dentro de um espaço político…, e aquelas em que em nenhum caso o agressor haja recebido resposta alguma. Em outro caso recente dentro do contexto político de Barcelona, uma mulher de nosso coletivo sofreu uma violação em sua própria casa por um habitante da mesma, que é um dentre tantos. Dito sujeito passeia tranquilamente durante a semana, alheio a qualquer movimento que pudesse estar esquentando por parte dela, pois – anjinho – nem sequer está consciente de ter feito qualquer coisa má… Mas se equivocava. Ela quis fazê-lo público e propô-lo em um grande coletivo, com ele presente, propondo sua saída imediata. Não apenas porque o ocorrido é uma agressão contra ela, mas porque é uma questão política e coletiva de primeira ordem. E este coletivo toma a decisão de que dito sujeito deve ir-se de casa por uma questão coletiva e política.

Nós valoramos positivamente uma coisa, e é que faz muito, muito tempo que não víamos reagir assim uma mulher, nem a um coletivo, tendo em conta as dificultades e os obstáculos que habitual e sistematicamente encontramos para gestionar grupalmente essas situações. No começo, nos sentimos muito satisfeitas de que essa agressão não tivesse sido silenciada como tantas outras e tivera uma resposta. Neste sentido, este caso é uma exceção. Contudo, a partir daí sucederam-se muitas coisas, mudanças de discurso, de posições e decisões. Com o passar do tempo, o que a princípio foi considerado político terminou relegado ao terreno dos conflitos pessoais. Sete meses depois, se tomou a decisão de que o sujeito regressasse aos espaços públicos da casa, que funcionam como centro social. Más além desta decisão questionável, o que nos parece grave é o processo pelo qual se chega a este resultado, definitivamente semelhante a tantos outros.

Que os grupos (mesmo que seja uma minoria) tratem de buscar uma resposta ante os casos de violência que se produzem em seu seio supõe um passo adiante na reflexão, na gestão coletiva e na erradicação da violência. Mas notamos que em linhas gerais, e a causa da falta de profundidade e sensibilidade a que nos referíamos, as respostas que costumam dar-se desde coletivos mesmos, em nosso entender, nem se aproximam aos mínimos exigíveis, e muitas vezes sofrem de alguns problemas de base que desvirtuam o processo. Falaremos aqui de três deles que nos parecem particularmente graves:

• O primeiro, mais recorrente e mais influenciado pelo trato mainstream da matéria, é dar aos casos de violência contra as mulheres um trato de problema privado e pessoal, a ser resolvido entre dois. Quando o que é denunciado como agressão se afronta como uma questão pessoal donde intervém emoções, o que se lê como um assunto turvo onde não há uma verdade, senão duas experiências muito distintas de uma mesma situação confusa, etc., então, perdemos a possibilidade de intervir politicamente, que é do que ao final se trata quando falamos de violência machista.

Há inclusive formas de transladar o assunto a um plano pessoal dentro de uma gestão coletiva. Por exemplo, quando se planteia qualquer trabalho do coletivo como feito por e para a “vítima”, ao invés de uma tarefa que o colectivo necessita para si; quando a intervenção do grupo se planteia como uma forma de mediação entre as “partes afetadas”; ou quando se define o problema como um assunto particular do coletivo a ser resolvido de portas adentro, ou o que é o mesmo, a versão grupal do roupa suja se lava casa. Ou seja, coletivizar não é condição suficiente para fazer política.

Quando tomamos decisões ou posicionamentos políticos, sempre está a possibilidade de receber críticas e entrar em discussões. De fato são muitos os debates que seguem abertos dentro dos movimentos sociais em Barcelona. Mas resulta que diante das situações de gestão coletiva de violência contra mulheres, se levantam muralhas contra as opiniões, críticas e planteamentos externos; se tenta manter a toda custa fora do debate coletivo. Que é o que sucede? Por que tanto medo ao debate? Não será fobia enfermiça às feministas? Ou é que nem sequer lhe estamos dando a categoria de assunto político?

• O segundo problema da gestão dos colectivos não feministas dos casos de violência contra as mulheres consiste em trabalhar a partir do enganoso esquema vítima-agressor, próprio da crônica de sucessos. De acordo com este, há um agressor, que é o homem mal, o monstro, a exceção; e uma vítima, a que necessita auxílio. Quando o que tem que ocupar o primeiro papel é um colega ou companheiro, temos muitos problemas para lhe “pôr a etiqueta”, e medo a “demonizá-lo”, porque além disso esse esquema se planteia como um juízo integral sobre a pessoa. Mas, chamemos as coisas pelo seu nome: agressão é o que descreve o fato, agressor é o que a comete. Fazer isso não deveria ser um obstáculo invencível nem tampouco uma opção reducionista que negue outras facetas que possa ter uma pessoa. Os eufemismos e relativismos são um atalho lingüístico para que o entorno do agressor e ele mesmo se sintam mais cômodos com o relato dos fatos, mas por isso mesmo não ajuda a mudar nem a realidade da convivência nem a consciência a respeito dos fatos.

Pelo medo a chamar as coisas pelo seu nome pretendemos encontrar “outras explicações” ou inclusive justificações, do tipo “estava bêbado/drogado”, “ela estava insinuando, ou o estava buscando”, e também a questionar o grau de responsabilidade do agressor sobre seus atos, e assim um largo etcétera. Como consequência da inoperância do esquema, costumamos nos perder em juízos pormenorizados dos sucessos, como se aí residisse a solução. Se traslada a discussão a fatores externos ou a detalhes morbosos dos fatos ao invés de abordá-lo desde a compreensão do estrutural da violência contra as mulheres e a necessidade de conservar uma tensão e atenção constantes para não reproduzí-la. Se não, por que quando o caso concreto nos toca de perto, os princípios que em outras circunstâncias seriam inquestionáveis se desvanecem?

O segundo papel dentro deste esquema se atribui a mulher agredida, com o que se a situa em uma posição de incapacidade: tudo que diga ou faça a “vítima” será lido como reação emocional, nervosismo, impulsividade e defensividade. As atitudes paternalistas e protecionistas com a que ocupa o papel de vítima obstaculizam sua participação em plano de igualdade no processo coletivo.

Então, reconhecer a estruturalidade da violência machista é começar a criar as condições necessárias para evitá-as, e em último lugar responsabilizar-nos quando sucede em nosso entorno. Mas geralmente isso não se dá porque assumir essa responsabilidade é abrir a porta à possibilidade de nos reconhecermos nos sapatos do agressor, o que dá pé à lamentáveis estratégias de corporativismo masculino, nos quais os companheiros guardam silêncio por medo a que suas cabeças rodem junto à dos que estão sendo assinalados abertamente neste momento.

• Por último, na prática da gestão coletiva de agressões contra mulheres encontramos uma hierarquização de interesses tácita, e em consequência uma subestimação de tudo que se refere à nós. Quando o que se prioriza por cima de tudo é o consenso, em um grupo onde mais da metade não têm sequer uma reflexão própria prévia e cujo discurso passa por simplificações pré-cozidas próprias de qualquer tele-diário, e além de que estas opiniões se pôem à mesma altura que discursos fundamentados e sensibilidades desenvolvidas a partir de um trabalho prévio, então, nos deixamos arrastar por la tirania do medíocre, que conseguirá desvirtuar os argumentos e rebaixar o discurso a um nível de mínimos. Encadenar palavras grandiloquentes não significa articular um pensamento elaborado.

Sucede que, para começar, só há uma decisão política possível, e é que o agressor desapareça de todos os espaços comuns, sem meias tintas. Mas a priorização do consenso por medo ao conflito também implica que, ante o desafio de tomar uma posição política como coletivo, não haverá lugar para distintas posturas que são irreconciliáveis e excludentes entre si ao redor desta decisão, por muito bem ou mal argumentadas que estejam. Tentar consensuá-las nos leva irremediavelmente a pontos mortos de estancamento sem poder chegar sequer a estes mínimos.

O consenso aqui exposto cumpre duas funções: manter certa coesão no grupo e dar uma ilusão de legitimidade às decisões. Diante do risco de conflito se agudizam os papéis de gênero pré-estabelecidos, que para as mulheres significa cumprir o papel de mediar, pacificar, compreender. Paradoxalmente nos encontramos com que outras mulheres atuam priorizando a unidade do coletivo e o consenso medíocre, como se a agressão a uma de nós não fosse em realidade problema de todas. Isso por outro lado põe a manifesto o arraigado que está as formas heteronormativas em nosso fazer: a definição do que é público e político se faz de acordo com os cânones do universal masculino, e assim as mulheres assumimos discursos construídos neste marco e postos no centro baixo essa lógica e deixamos de politizar questões que nos afetam para não incomodar ou dar a nota, perpetuando a necessidade de aprovação da mirada masculina e as formas de relação entre sexos. Outra vez nos venderam a moto e nos dedicamos a cooperar para que nada mude.

Definitivamente, que vamos fazer ao respeito de todo o exposto? O pior do sexismo se reproduz nos movimentos sociais, mas não estamos assumindo as responsabilidades coletivas para fazer uma gestão adequada da violência de gênero. Como vêem dizendo as feministas há décadas, é necessário fazer políticas as questões que nos afetam às mulheres, e não só de palavra nem como anotação. Se apostamos pelos coletivos mistos, coloquemos ditas questões no centro dando a elas a importância que têm. E é evidente, pois, a necessidade de espaços não mistos e coletivos feministas, assim como de recolher o trabalho e as contribuições que esses grupos vêm fazendo.

Para finalizar, os coletivos que assumem gestionar uma situação de violência de gênero deverão fazer públicos seus posicionamientos e permitir o debate para que sirva de precedente e que assim se produza uma acumulação de experiências (não termos que partir sempre de zero). Do contrário, estamos privatizando, restando transcendência e praticando pseudo política de auto consumo.

LasAfines

Contribuições e comentários a: lasafines@hotmail.com

Espaços okupados, espaços com cuidado

Acerca de uma agressão sexual no Centro Social Okupado “El Laboratorio” (Madrid). Texto escrito por Escalera Karakola, uma ex-companheira do CSO El Laboratorio

Todas vivemos com a raiva e a dor da violência que os homens impõem sobre as mulheres por meio dessa divisão que faz e hierarquiza o mundo dos sexos. As agressões contra as mulheres, recurso primeiro e último, atravessa pra além do particular o domínio das relações e das restrições que cada sociedade ou cada grupo coloque à ordem do macho. Quer se trate de agressões corporais ou psicológicas, quer se prodza na forma de espancamentos, estupro ou assédio, quer acabe em assassinato, humilhação ou auto-defesa, a violência consolida o mando e o localiza nos núcleos mais sensíveis da experiência: a integridade do próprio corpo, a liberdade sexual e a autonomia em cada circulação e no pensamento. Rara é a mulher que não tenha sofrido, seja na própria pele ou por haver intervido em uma agressão dirigida a uma outra mulher.

O sentido da vulnerabilidade e do domínio é uma experiência do cotidiano feminino que se compõe, antes de mais nada, como experiência dos limites e da proteção do próprio corpo e sua capacidade expressiva. Embora tenha relação com a idade, o espaço, a identidade, a situação e inclusive com o sentimento de segurança que uma expressa ou deixa de expressar, na realidade a possibilidade de ser submetida à violência machista excede as circunstâncias concretas e se extende à existência-mulher em geral. Está tão enraizada em nosso ser que embora pudessemos instalar-nos em outras coordenadas, seguiríamos alimentando-nos desses secretos temores que nos habitam. Nenhuma mulher deixou de assumir essa condição de periculosidade e bem ou mal aprendemos a nos mover com ela, a suportar da maneira menos traumática possível suas leis, e a desfrutar das miseráveis vitórias pessoais e coletivas que nos podemos permitir sem nos colocar em situações de alto risco.

Não podemos deixar de considerá-la como imposição generalizada e, no entanto, para lutar contra ela temos que recortá-la na medida do concreto e falar de suas ocorrências nos espaços e tempos nos quais participamos. A intervenção de uma mulher, feminista ou não, em um Centro Social Okupado busca, entre outras coisas, a criação de um espaço seguro, um espaço de cuidado do próprio corpo que anule a violência e a interiorização do perigo sexual. E o busca não por via de regras, restrições ou dispositivos de vigilância mas o busca como sentido, como sensibilidade, como atitude de todas as pessoas que o habitam. Por isso, o que é mais terrível de que ocorram agressões sexuais, além da vivência daquela que as sofre, não é o sentimento de todas de constatar que essas coisas podem acontecer – isso já sabemos – mas de que não foram possibilitadas atitudes, pensamentos e ações que as fizessem difíceis. Que não fomos capazes de levar adiante essa disposição, a tensão coletiva e cotidiana que faz, por um lado, que os agressores percebam de imediato que aí não vão poder, que não é seguro, e que podem se sair muito mal dessa situação e que as mulheres, por outro lado, cheguem a sentir, pelo contrário, que aí sim vão poder, que vão se sentir seguras e respaldadas em todo momento.
De nada serve repetir uma e outra vez que os espaços libertários não o são ou de que nas okupas se reproduzem os mesmos modelos e bla, bla, bla. Continuar falando nesses termos estimula um paradoxo bem estéril que se alimenta da ilusão do libertário, para chocar-se com a triste e já bem conhecida realidade, exercer a denúncia quando o momento da autodefesa já passou e voltar ao começo. Além de confirmar a lição de moral de que nada é o que parece e consolidar na secundariedade dos nossos problemas dentro do coletivo, esse deslocamento na linguagem não vale merda nenhuma. Ao despotencializar a diferença do espaço e igualá-lo a qualquer outro perdemos a oportunidade de construir essa diferença de um modo mais dinâmico saindo da oposição ‘libertários’, espaço utópico inexistente para todas pessoas que estejam nas nuvens, e o resto do mundo, uma totalidade uniformizada feita de casas, ruas, cidades e países onde se atualiza mais do mesmo.

Para começar é preciso idealizar formas concretas de comunicar esse sentido de cooperação para a liberdade sexual sem aconselhar as mulheres a manterem-se unidas ou evitarem lugares escuros. Vai ser preciso então reforçar o existente e interrogar o hábito. A visibilidade feminina e lésbica-gay-trans ((O original menciona somente’ gay’. O termo foi modificado por ‘lesbica-gay-trans’ porque o termo ‘gay’ parece invisibilizar os demais coletivos, já que gay não representa nem visibiliza a totalidade dos coletivos divergentes da heterossexualidade obrigatória. N.T.)) é um começo mas ainda é preciso mais. É que, além disso, para se fazer presente é necessária certa cumplicidade, não vamos estar todo o dia com as luvas postas ou frequentando os lugares-que-não-o-são. A criação desse sentido passa necessariamente pelo cuidado das situações que produzimos.

Tudo isso surge ao calor do tremendo estupro-espancamento que sofreu uma garota não faz muito tempo em uma festa em El Laboratório que por pouco passa sem pena nem glória para a história dos incontroláveis horrores aos quais já nos acostumamos. Para que uma okupa seja diferente da rua (seu papel seria de que transformasse a rua) é preciso ir pensando que nela não cabe todo mundo. E não queremos ser compatíveis com certos sujeitos que infelizmente às vezes estão próximos demais. Claro que os bons modos, no que se refere a okupas e anti-sexismo, podem ser aprendidos e praticados de maneira supérflua sem levantar muitas suspeitas mas inclusive nestes casos quem atua assim há de se sentir incômodo, por fora ou terrivelmente inclinado a mudança.

E já que essa agressão ocorreu numa festa vou referir-me a ela e outras com particular fúria porque sendo um ato coletivo para desfrute pessoal as vejo como o exemplo mais claro de um monte de coisas que me incomodam e que de nenhum modo tem relação com o tipo de lugar-momento nos quais me agrada estar. E não é que todas as festas, shows e outras coisas sejam iguais (seria bom perguntar, sobretudo às mulheres, o que acontece nas festas nais quais nos sentimos bem para que isso seja possível) mas ocorre que se estabilizamos certos hábitos das festas nas quais impera a falta de atenção pela ocasião. Na festa em questão, a cargo do felizmente extinto Projeto Ruído, por exceção do negócio e da decoração alucinante nada mereceu especial preparação ou continuidade. Como a festa era grátis não havia ninguém na porta responsável não digo para controlar quem entra, mas para deixar claro essa atenção de que se estamos falando: de que existem pessoas concretas por trás e a frente da bagunça e que irão responder ou organizar uma resposta ante possíveis agressões ou outras coisas menos terríveis. Comunicar, definitivamente, que o evento conta com uma presença real de pessoas interessadas no que acontece e que não se limita a inventar algo pra depois ver no que dá. Se não houver responsabilidade sobre o que organizamos ou o que deixamos organizar os coletivos de fora, por que nos surpreendemos? Ou se pensamos que não é possível, por que raios não organizamos nada? E é muito difícil estar o tempo todo de olho nas milhares de formas que alguém pode faltar o respeito e não vamos ficar em cima de toda pessoa suscetível de ser víctima de abuso… não quando o abuso já está consolidado como uma questão individual (cada um que as tome como possa e com quem seja), pra não dizer normal.

As consequências de deixar que as coisas aconteçam já a conhecemos, pelo menos em “El Laboratório”. Há pessoas que se cansaram ou que se sentiram sozinhas ao se depararem com situações de todos os tipos mas isso tampouco foi suficiente para dar um passo e colocar essa questão no centro e recuperar assim um espaço que se está se perdendo no burlesco.

Nos acostumamos às festas sem fim. Perfeitamente em sintonia com a agonia que nos empurra a esgotar todos os momentos sem reconhecer começos nem fins. Ninguém gosta de ficar atento o tempo todo ou de ser o responsável por terminar o que soube começar. Antes que acabar com a história é melhor ver o grupo ir desaparecendo pouco a pouco por esgotamento ou se adequando a algum nicho. Assim sendo, a festa se converte na atividade mais sagrada do centro social. Poucas são as coisas que podem chegar a interrompê-la. Nem que lancem pedras, nem que abram a cabeça de alguém, nem que uma mulher saia dançando ao hospital. Bastante paradóxico já que muitas das pessoas que assistem às festas não se enterem do que nelas se passa por mais chamativo que seja, por exemplo, alguém sangrando na metade do pátio e com um ataque de nervos. Neste sentido, chegamos no ponto em que a festa se torna imcompatível com a possibilidade de comunicar, decidir coletivamente e atuar. Para isso, seria preciso cortar a música e interromper o evento, ocorrência que produziria um alarme desnecessário e tudo mais.

Outra questão é o modo em que se afronta a questão de se colocar. Agora está generalizado o argumento de que tem gente que vai para fazer pose e mais que pose, que vai idiotizada. Resisto em acreditar que quando alguém vai para fazer pose não percebe o que está acontecendo, mas bem pelo contrário, a pessoa fica muito perceptiva, tanto que é capaz de ler os movimentos imperceptíveis, gestos, atitudes que demonstram formas de se relacionar com o mundo: o medo, a impotência… Para muitas mulheres isso se torna bem claro e é por isso que às vezes, quando acontece algo, a pessoa projeta e experimenta as agressões sexuais do micro. Às vezes preferimos não olhar em certa direção, a verdade é que não é por isso deixamos de ter visto. E já que de qualquer forma vemos, seria melhor olhar de frente. Já se sabe o quanto doem as armadilhas nas quais caímos… Quando não se pode ou não se quer ou alguém não se vê capaz de discernir o que acontece ao seu redor, terá que apostar no contato, a não ser que prefira apostar na estupidez, que aí já não há nada mais o que dizer.

Se isso é um hábito será necessário bater de frente, porque a denúncia a posteriori é insuficiente, pode nos deixar um sabor melhor na boca mas não vale para o que vem depois. Outro passo que é preciso ser dado é a atenção à mulher que sofreu a agressão. Também com isso estamos sendo bem frouxas. Primeiro, para entender e aprender sobre como se exprimenta a agressão. Para tanto, é preciso estabelecer que uma agressão é uma agressão e ponto, e não ter medo do intercâmbio e do fantasma da doença. Quando se produzem agressões é preciso criar grupos de apoio, de intermediação e de continuidade, porque uma vez ocorrida a agressão, quem a sofre continua circulando por aí e tem muito a digerir. Não tem nada a ver com invisibilizar, mas sim saber, conhecer como se sente a agredida, como define a violência e atua contra ela, contra a violência do momento e contra a dos momentos posteriores. Enganchar com o ritmo e as exigências de quem as vive. A mediação com a coletividade, que é a okupa, é importante como exercício contra o esquecimento e pela atuação positiva, pela recuperação de um espaço maldito que já não se deseja pisar.

Repensar as definições a partir dessa atitude de desculpa e intercâmbio pode revelar alguns esteriótipos interessantes sobre as agressões sexuais. Por exemplo, o que acontece quando para a agredida o que se coloca em primeiro plano não é a violação mas o perigo de morte ou quando atuar significa passar por estratégias de autodefesa tão inteligentes e espontâneas como fingir submissão e complacência perante uma violência desmesurada. Nós vamos lá falar com essa mulher com nossa linguagem ou vamos traçar uma ponte real com a vivência e os termos de quem tem muito mais a dizer? Seria bom ter conhecimento das subjetividades que são tocadas com isso tudo.

E mais: Por que se pergunta se realmente se trata de violação e se insiste, por parte das mulheres, que sim, o que aconteceu é o pior que podia ter acontecido? Provavelmente porque com a força das palavras se assumiu uma escala nos níveis de agressão que encontra na penetração seu máximo exponente e que deveria ser redefinido, também para nós mesmas. E assim prevenimos a diminuição inevitável do acontecido sem nos darmos conta de que pressupomos também as classificações e definições usuais. Gritamos que o sentimento de humilhação mais terrível nem sempre é a penetração ou continuamos dando continuidade aos mitos? Para avançar nessa direção faz falta envolver e envolver-se com a mulher agredida.

E ainda, como romper de uma vez por todas com a história de que somos só nós, mulheres, que devemos nos importar com essa questão, deixando, por alto, bem claro qual é nossa área de intervenção em uma okupa mista? É claro que nos importa, assim como também nos importa a coletivização de uma atitude diferente. A que faz com que as agressões sexuais se convertam em um assunto da okupa em seu conjunto, algo que merece muitíssima reflexão e atuação em comum. Nossa decisão, a das mulheres, de separação e acumulação de iniciativas nesse terreno tem muitos acertos mas também tem seus desacertos, sobretudo na hora de criar uma prática geral contra o sexismo e as agressões sexuais. Ao menos se não se antecipa e tem em conta a parcialidade na qual acabamos reduzindo a violência contra as mulheres. A melhor autodefesa, além daquela que permite transformar a autoestima em golpes certeiros, é a que gera uma disposição coletiva contra as agressões sexuais. A do golpe te defende, a outra te situa, situa suas companheiras e a comunidade em um espaço diferente.

Carta por um debate sobre agressões sexistas

A anedota

Nos meses de fevereiro-março, uma mulher de Cornella foi agredida por seu ex-companheiro, Fidel Salvador Sanchez. Foi a última agressão, depois de várias ameaças, intimidações e monitoramentos por parte do homem. Desta vez, ele apareceu no bar onde a mulher estava com uma amiga, pediu para conversar com ela e, depois de discutir, a agrediu. Ela tomou a decisão de denunciar o agressor, depois de ir ao hospital.

O julgamento foi realizado no dia 24 de maio e ela estava tão triste e patética como todas as outras mulheres maltratadas do Estado. Por sorte, havia sido convocada uma concentração e a moça foi acompanhada por um grupo de pessoas, com uma bandeira contra agressões machistas e folhetos informativos; porém encontrou com o agressor no caminho do tribunal e teve que esperar um hora em sua companhia – sob a tensão que essa situação impõe – e teve que falar e compartilhar a refeição com ele.

A atitude do homem foi, a todo momento, de desafio a ela e às pessoas que a apoiavam, umas 20 pessoas. Não só reconheceu a agressão, como a justificou através da raiva e lhe deu pouca importância. Além disso, ele repreendeu as mulheres dali que conhecia e ameaçou a pessoa que entregava os panfletos.

Na segunda-feira seguinte, o homem aparece na assembleia do Ateneu de Cornella completamente drogado e, depois de xingar e insultar todo mundo, ameaçou com um martelo uma das moças que estavam no julgamento.

Durante as semanas seguintes nos surpreendemos muito ao descobrir que havia pessoas conhecidas tendo contato com ele, já que ele havia começado a participar de um espaço libertário.

A nossa postura

Esse fato e o resto dos detalhes patéticos da história vieram à tona através das pessoas que apoiaram a mulher agredida – maioria mulheres – e fez com que nos sentíssemos duplamente indignadas: de um lado, ameaçada pelo agressor; de outro, questionada e impossibilitada de entrar no jogo de comentários exacerbados, críticas por ter escolhido a via judicial, especulações sobre a relação entre o agressor e a mulher, camaradagens… qualquer coisa que justifique o injustificável e despolitize o debate, questionando a decisão da mulher e a resposta de solidariedade.

As mulheres de Sants e Cornella e muitas outras que se juntaram mais tarde, se viram forçadas a exigir um posicionamento e a demandar explicações sobre a atitude de algumas pessoas do espaço onde aconteceu essa merda.

Em alguns casos, isso tem ajudado porque pessoas que têm dúvidas refletem e enxergam que estavam equivocadas. Mas nós não queremos que a história seja reduzida à versão que é contada no bar ou que fique exclusivamente dentro do coletivo diretamente implicado (onde tem havido um esforço em falar e analisar profundamente a questão).

Esta é a versão mais “descritiva” e despida de picuinhas que fomos capazes de escrever. Queríamos gravar os nomes e os comentários terríveis, para fazer alguma coisa e entrar a fundo na reflexão que pensávamos que tínhamos – homens e mulheres – a partir de histórias como esta, porque acreditamos que É REALMENTE IMPORTANTE GERAR O DEBATE.

Acahamos lamentável que tenham questionado a decisão da mulher de fazer a denúncia. É sua decisão e ponto. Se ela denunciou é porque se sentia solitária, perseguida e em perigo. De fato, muita gente sabia que houvia sido cometida a agressão e bem pouca fez algo até o final do julgamento.

Uma das coisas que provocou mais polêmica foi ter utilizado a via judicial para solucionar o problema, quando ninguém ali acredita nem reconhece a justiça penal e burguesa.

Para começar, consideramos que essa foi uma desculpa política na qual se agarraram aqueles que questionaram a mulher e quem se solidarizou com ela. Queremos esclarecer que essa é uma contradição que nós também temos, mas é uma das formas disponíveis para enfrentar às agressões machistas e muitas outras. Porque essa não é nem a primeira nem a única vez que usamos o sistema judicial: denúncia a nazis, a policiais, por desalojamentos ilegais, etc. Não deve existir um duplo padrão para quem vai a julgamento.
Temos muita certeza de que é preciso lutar porque as respostas a essas agressões são sociais. Se o assunto tivesse sido minimamente debatido, teria ganho publicidade e transcendido a esfera do privado, do casal, do grupo de amigos e do rumor e da fofoca. O isolamento é uma estratégia que busca, pelo menos, fazer com que o agressor sinta que fez algo horrível e que, se ele não parar, não encontrará nenhum apoio.

Muitas mulheres morreram na mão de seus (ex)companheiros porque as pessoas não reagiram a tempo e de alguma maneira. A resposta social implica também fornecer à mulher um suporte real, acompanhá-la, transmitir segurança e confiança a ela, além de cobertura física e emocional. O isolamento não é a única via, mas depende sobretudo da atitude do agressor, de assumir que tem um problema e de querer resolvê-lo. Nós não queremos escrachar esse homem em especial, mas sua posição tem sido muito clara nesses acontecimentos.
Parece significativo que para limpar sua imagem e questionar a mulher e o grupo de apoio, ele tem procurado o envolvimento de outros homens. Na mente daquele machinho as mulheres não tem credibilidade e, as que enfrentam, são ameaçadas porque ele se considera mais forte. Aos homens, por outro lado, vê como iguais, com quem pode desenvolver uma camaradagem e solucionar os problemas com uma cerveja, “de homem pra homem”.

Sentimos pelos homens que escolheram se aproximar dele e adotaram uma atitude negativa em relação à moça, pedindo,inclusive, explicações. Pensamos que se pode levantar dúvidas ou contradições acerca de um boicote coletivo sem ter que passar por cima daquilo que as pessoas pensam e sentem.

Pensamos que algumas pessoas se agarram às contradições sem afrontar a questão essencial: que o sexismo e as agressões machistas não são vividas da mesma forma se você é um homem ou uma mulher. Muitas vezes somente as mulheres se sentem afetadas e se mobilizam: elas se colocam mais rápido na pele de uma mulher agredida, violada ou intimidada e ofendida porque ou já passaram por isso ou têm consciência de viver em um corpo agredível. Queremos também expressar a nossa queixa a respeito da responsabilidade coletiva desse tipo de agressão. Por um lado, expressar que não queremos que dependa exclusivamente de nós o isolamento social do Fidel. Não queremos ser guardiãs a vida toda nem que as pessoas participem do boicote porque nós dissemos. Queremos uma consciência coletiva e real. Nem mais nem menos.

Por outro lado, temos críticas à maneira como se tem contado a história, especialmente ao fato das mulheres serem sempre reduzidas. Em qualquer outro tipo de agressão (dos fascistas, nazipunks, polícia) as pessoas rapidamente se organizam, se reunem e movem montanhas para dar uma resposta imediata, coletiva e organizada. Embora isso não tenha acontecido no círculo interno, a informação circula rapidamente e as pessoas se sentem implicadas. É melhor dar uma resposta com contradições que não fazer nada.
Por fim, apreciamos que o alarde que tem suscitado tanto a denúncia de uma agressão machista com mostras de solidariedade tenha evidenciado a imaturidade do discurso e, sobretudo, da ação coletiva em termos de luta feminista, antissexista ou como queira chamar. Emitimos um comunicado a Cornella com a conclusão de que feitos enchem as pessoas somente de palavras na boca. Mais clara, porém, se torna a água.

Nós pedimos que esta avaliação feita por alguns coletivos de mulheres continue aberta ao debate interno dos coletivos, que aqueles que emitem algum tipo de resposta: já continuam avaliando e portanto posicionando-se a respeito ou sugerindo algum tipo de alternativa.

Você pode fazê-lo entrando em contato com o c.s.o HAMSA (les tenses) ou com o Ateneu de Cornellà (dones de corneyà)

A opressão “ao contrário”

Quero falar sobre o tema da opressão “ao contrário”, aquela em que alguns anarquistas acreditam, apesar de não existir.

Um dia eu estava falando com alguns anarquistas de Barcelona sobre grupos de mulheres não mistos. No caso, esses ditos anarquistas tinham recebido uma proposta de um grupo anarcofeminista de desenvolver seus treinamentos de autodefesa no centro social ocupado e gestionado por eles. Fiquei muito surpreendido ao escutar o argumento de que um grupo de autodefesa só para mulheres é sexista.

Um dos argumentos consistia em que essa não mistura constitui uma discriminação contra os homens, portanto sexismo, outro era que como anarquistas a ideia era criticar o gênero e todas as categorias involuntárias, de maneira que as formas de organização exclusiva desse tipo reforçariam o gênero além do boato de que feministas odeiam os homens e a única coisa que querem é o poder (tenho que assinalar que esses últimos argumentos não vieram exclusivamente daí e que não entendi tudo o que foi dito; os cito porque esta crítica está dirigida a argumentos, não a pessoas). Que surpresa a minha em escutar isso, dado que, em meu país, me acostumei a escutar tais argumentos provenientes de personagens de direita (e isso que meu país não se caracteriza por ser nenhum paraíso de liberdade nem de radicalismo precisamente), mas aqui saem da boca de um companheiro.

Sobre o argumento da discriminação contra os homens direi que é uma análise fraca, algo como se opor ao capitalismo somente porque as classes populares sofrem discriminação. As coisas são muito piores que isso. A preocupação pela discriminação é própria do racionalismo, entre outras coisas porque certas discriminações diminuem a eficiência da economia. Funcionários do governo, que nunca admitem a opressão em que está assentado seu sistema, falam sobre discriminação e como corrigi-la, sem mencionar as causas estruturais e a história dessa discriminação. O problema é mais profundo do que aponta essa palavra. É uma hierarquia. Não existe sexismo “ao contrário”. É possível que existam feministas que odeiem aos homens (mesmo que eu jamais tenha encontrado nenhuma), mas esses seriam sentimentos gerados por individualidades, que não podem inverter nenhuma hierarquia poderosa, que não podem submeter os homens à violência cotidiana dirigida contra as mulheres durante milhares de anos de patriarcado e que não são sexismo. A reação assim de imediato dos homens contra o feminismo, creio que provém de um medo de ser censurado, de perder alguns privilégio e comodidades. Mas como homens nós também temos muito a ganhar na luta contra o patriarcado.

Sobre o segundo argumento, concordo com a necessidade de abolir o gênero binário. Mas como fazer isso? Não é uma luta fácil nem curta. Existe uma herança de desigualdade e de dor que cria todos os sistemas de opressão, inclusive o patriarcado. Estamos todxs condicionadxs, desde nosso nascimento. Um resultado disso é que na maioria das vezes nós, homens, não aprendemos como expressar bem nossos sentimentos, e nossa sexualidade é prejudicada, nos ensinam a machucar e a objetificar.

Outro resultado do patriarcado, entre outro milhares, é que as mulheres não se sentem motivadas para aprender autodefesa ou a usar violência física, mesmo que sofram tanta violência e ameaças por parte de nossa sociedade. E frequentemente nos grupos de autodefesa mistos existe o sentimento invisível de que isso forma parte do território dos homens, o que nos mostra que, sem nenhuma exclusão nem menção de gênero explícita, é possível excluir as mulheres. Se decidimos que o gênero é uma categoria opressiva e por isso não falamos sobre gênero, nem dirigimos ações contra seus resultados, que “já não vemos”, estaremos protegendo a herança do patriarcado.
Precisamos abordar a abolição do patriarcado de forma direta, como um sistema de opressão incompatível com a liberdade. Não desaparecerá com a abolição do Estado ou do capitalismo. Aliás, o patriarcado é muito mais velho que esses outros sistemas.

Não é um argumento novo e nem precisamente liberal (algumas pessoas acusam o feminismo de “liberal”). Na Gerra Civil ((nota: G. Civil Espanhola)), os homens da CNT disseram que o sexismo desapareceria através da revolução (Marx argumentou a mesma mentira em relação ao Estado). Felizmente, mulheres como Lucia Sanches Saornil não os escutaram e iniciaram o grupo “Mulheres Livres”. Esse grupo publicou um periódico, montou escolas e ensinou às mulheres como usar as armas para combater o sexismo do movimento e o facismo. Constituíriam um exército e, dentro de uma sociedade tão patriarcal, milhares de mulheres ganharam autoconfiança suficiente para lutar com os homens, tornar-se guerrilheiras, matar os facistas. A revolução era tão forte, que algumas anarquistas enfrentaram o sexismo existente dentro do movimento e criaram espaços seguros e cômodos.

Não digo que todas as mulheres necessitam seus próprios espaços (tampouco que seja uma necessidade ou que constitua uma característica de todas as mulheres ou de todos os homens) e também não digo que as mulheres que querem ter seu próprio grupo de autodefesa o queiram porque não sejam capazes de brigar com os homens. (por uma suposta fragilidade ou desvantagem física). As mulheres têm uma história de luta forte e violenta. Mas se algumas mulheres expressam que precisam de seu próprio grupo para autodefesa ou qualquer outra coisa, deveríamos respeitá-lo, deixando-nos guiar pelo sentimento de solidariedade e confiando que a pessoa que sofre uma opressão sabe melhor que ninguém o que necessita para combatê-la.

Agressão é quando me sinto agredida

Se me sinto agredido/a reajo como tenho vontade. Em uma situação de agressão o que quero reprimir é a agressão e não a reação a ela.
Se me sinto agredida/o não quero me sentir sozinha por ser a primeira vez que estou aqui ou porque não conheço ninguém ou poucas pessoas ou por medo de que não me apoiem ou pelo que for…

E o que que tem o coletivo?

Não queremos ser o/a “macho” protetor/a mas também não queremos usar isso como desculpa para não fazer nada. Não queremos olhar para o outro lado quando nos deparamos com uma agressão.
Uma agressão não é somente entre quem agride e quem é agredida/o.
Nós também estamos aqui!
Queremos viver bem
mas não queremos viver de tudo!
Os espaços “libertários” não estão isentos de agressões.

Esse cartaz saiu da Assembleia de Gênero e foi distribuído, juntamente com o flyer que se encontra na página seguinte, aos centros sociais e demais espaços politicamente próximos com o objetivo de que fossem pendurados em algum lugar visível. Barcelona, 2004.

Os espaços “libertários” não estão isentos de agressões

É muito difícil deixar de viver valores, atitudes e comportamentos que assumidos como normais. Para isso faz falta pensar, debater, questionar-se, a nível pessoal e coletivo. Criar um discurso, que é difícil de ter, que às vezes dói, que seja sincero, crítico mas construtivo…

Existe agressões dentro do meio libertário?

Sempre nos sentimos cômodas e seguras?

O que é uma agressão?

Diante de machistas, como reagimos?

Reagimos?

E como têm reagido as pessoas ao nosso redor?

Estamos atentos ao que passa a nosso redor?

DIANTE DE UMA AGRESSÃO HOUVE ALGUMA VEZ UM DEBATE COLETIVO SOBRE A MANEIRA DE AFRONTÁ-LA?

Como podemos reagir de uma maneira adequada se não construímos nenhum discurso até que aconteça alguma violação?

Acreditamos na pessoa que nos diz ter sido agredida?

Pedimos explicações/provas?

Existe maneira de tratar o assunto em um discurso de culpabilidade e vitimização?

Será que nunca vivenciamos uma agressão quando estávamos em uma festa?

PODEMOS ATUAR ANTE UM AGRESSOR TAMBÉM EM UMA FESTA ONDE NÃO CONHECEMOS AS ORGANIZADORAS?

Podemos atuar/reagir quando estamos festejando (drogadas, bêbados, etc…)?

Somos capazes de questionar nossas reações sem que isso signifique não fazer nada?

Que fazemos se é uma amiga que está molestando outra pessoa?

Nossa realidade é homem-centrada?

Temos que assumir atitudes hetero-machistas para sermos aceitas ou escutados?

Dominação, falar por falar, ser forte e convencido, não deixar espaço para dúvidas, são atitudes típicas em nossas reuniões?

Nós, mulheres, tendemos a tomar papéis tipicamente masculinos para que sejamos levadas em consideração?

Nos sentimos cômodos expressando nossos sentimentos, medos, frustrações ou, como em qualquer outro lugar, achamos melhor escondê-los?

Reagimos de maneira diferente a coisas que fazem ou dizem pessoas dependendo se são homens ou mulheres?

Nós, homens, temos em conta a posição de poder que representamos por nossa socialização?

Teríamos que ter mais cuidado com nossos comportamentos por isso?

Como podemos mudar o ambiente ao nosso redor para um ambiente onde nos sintamos mais cômodas e seguros sem simplesmente introduzir uma série de regras de como se deve comportar-se?

Até onde queremos que chegue nossa “libertação”?

Assembleia de Gênero, 2004. Barcelona

No meio libertário…

Apesar de tudo que nos diferencia, nos une a ideia de destruição de todas as hierarquias e, por isso, o trabalho contra o fascismo, o racismo, o sexismo. Nós acreditamos que isso não tem a ver só com reagir em relação a fascistas e machinhos, mas também contra as atitudes de todxs e das nossas. A NECESSIDADE E URGÊNCIA DE REAGIR E DE QUESTIONAR nos mesmxs, em nossas relações, nossas casas e centros sociais. De maneira geral, em nossa vida cotidiana. O personagem do machinho se entende como algo que está longe e fora de nosso meio mais próximo e não como alguém que pode ser nossx amigx ou nós mesmxs. Também porque é muito fácil que associemos a sexismo somente os abusos sexuais e violações e não todos os jogos de poder e agressões de todo tipo (psicológicas, verbais, físicas).

A crítica que propomos não se aplica somente à sociedade em geral, mas também aos grupos e espaços em que militamos. É muito difícil que reconheçamos, critiquemos e reajamos diante de atitudes sexistas das pessoas que escolhemos como nossxs amigxs, com quem decidimos conviver e com quem nos identificamos em muito do que pensamos e como queremos atuar.

Ninguém, nenhum espaço – nem nenhum coletivo – está livre disso. Mas tentamos mudar a nós mesmxs e mudar nossos espaços e relações. Daí a importância de nos autoquestionarmos e de falar entre nós mesmxs, de nossas dúvidas, atitudes, experiências. Porque o que uma pessoa sente como agressão, como abuso, como violência, é muito mais difícil de reconhecer nas pessoas conhecidas e com quem nos relacionamos. Na verdade, quase todas as violações acontecem em relações de casal, amizade, família. Não são tanto as pessoas escondidas por trás de um arbusto no caminho de casa que te atacam, mas muito mais as pessoas que vivem em sua casa, que você encontra em festas, assembleias, manifestações, oficinas…

É muito importante que uma pessoa, quando se sente agredida, não duvide se foi uma agressão ou não e que confie seus sentimentos, que possa falar sobre o que aconteceu e sentir-se confortável, ouvida e apoiada no que decida fazer.

Na maioria das situações não temos certeza de como reagir, mas pensemos que o que se deve ter claro é que é preciso falar sobre o assunto, discuti-lo, não silenciá-lo. Porque o silêncio significa aceitar a situação, ou seja, não dar visibilidade ao problema e não permitir que se encontrem respostas coletivas e também individuais. Entre nós, não tentemos evitar o escândalo. Escandalizemo-nos sempre! NÃO NORMALIZEMOS as músicas sexistas em shows, as posições de dominação em reuniões e relacionamentos, a superioridade do racional sobre o emocional, os papeis que se supõem masculino e feminino, o poder da força física para impôr algo a alguém, as desculpas de ambientes de festa de que “está bêbadx” ou “está drogadx” ou “está fazendo piada”, etc, etc.

Acabemos com a dicotomia entre pessoas boas e más que aprendemos nos contos infantis, os heróis não existem. Questionemos a nós mesmxs em todos os momentos. Não aceitemos a situação fácil de fingir tranquilidade quando existem coisas que nos incomodam. Não há soluções perfeitas, somente a possibilidade de tentar mudar para ter uma convivência melhor entre nós.

Não somos melhores, mas queremos viver melhor.

Cartaz publicado em 2002 e difundido através do Contra-Infos.

A autodefesa de e para mulheres é uma resposta à violência de gênero

Só de e para mulheres pela socialização que recebemos. Desde o momento em que nascemos somos educadas de uma maneira distinta dependendo de se somos consideradas menina ou menino. E a cultura em que crescemos e nos relacionamos também nos percebe e nos determina de uma maneira distinta. Isso se reproduz em todos âmbitos sociais como a família, a escola, o grupo de colegas, o trabalho, os relacionamentos pessoais, festas…

Não queremos dizer que todas as mulheres sejam iguais e sim frisar que há uma identidade feminina criada e imposta a um nível social que afirma que somos sensíveis, emotivas, passivas, dóceis, cuidadoras, conciliadoras, frágeis, hospitaleiras, sedutoras, heterossexuais, ciumentas, etc, etc.
Só de e para mulheres porque existe uma bipolaridade de gênero (mulheres/homens). Esta é a realidade em que vivemos. A partir do momento em que todos os espaços (ou quase) te vêm como mulher, você está mais sujeita a agressões pelo fato de que o gênero masculino domina e o gênero feminino se associa a ser dominado – em um sentido de força, de desejo, de necessidades, entre outras coisas mais.

Essa bipolaridade existe, gostemos ou não. Nós partimos desta base para questioná-la e mudá-la. Mudá-la por exemplo, transformando as relações entre mulheres que estão muito fragmentadas e dominadas por sua relação com o outro gênero.
Nós entendemos a auto-defesa como uma maneira prática e direta de transformar a construção de gênero, a socialização, a identidade feminina, o papel masculino de dominar pela voz e pela força física, de dominar os espaços públicos (ruas, bares…), o papel feminino do silêncio, da aceitação, da simpatia…

Questionar tudo isso a partir do cotidiano, de nossas experiênias e não de uma base ideológica ou teórica. Buscar a cumplicidade entre mulheres. Isso não tem apenas haver com o que podemos ter em comum pela educação, cultura ou o que seja, mas com o desejo de criar relações distintas entre nós mesmas. Relações distintas às impostas pelo modelo heterossexual. Que não sejam de atração pelos homens e de competitividade entre mulheres. Que não sejam de comparação entre mulheres e de busca de agradar aos homens.
Encontrar espaços para falar de coisas as quais costumamos nos calar, como situações que nos deixam inseguras, atitudes que nos molestam e que não sabemos como afrontar, não ter claro muitas vezes o que nos agrada, dúvidas com relação a nossas relações – “não sei se me passei…”, frustrações – “queria ter dito/feito…”, medo do conflito, medo da rejeição, priorizar as emoções das outras sobre as nossas, dificultade de não sorrir, a facilidade com que separamos nossas
emoções de nosso corpo – desejar surrar alguém mas sentir que não temos a capacidade física para tanto, que alguém te toque de uma maneira que você não goste e você, em sua cabeça, tenta não dar importância a isso… a dificultade que muitas vezes temos de reconhecer nossas potencialidades, a dificultade em aceitar o que sentimos, a dificultade de reconhecer agressões cotidianas.

Uma agressão é quando você se sente agredida.

Não há uma maneira de afrontar uma agressão. Há muitas maneiras. Tantas como situações, momentos, estados de ânimo. E, além disso, somos todas distintas em como reagimos e queremos reagir.
Na auto-defesa, aprendemos juntas estratégias e táticas físicas, verbais, psicológicas para defender-nos. Essas são ferramentas que cada uma decide como e quando usar. Você decide como reagir, confiando em você mesma. Nenhuma defesa é exagerada porque você sabe, melhor que ninguém, o que está sentindo e como o quer expressar, seja de uma maneira tranquila ou agressiva. O que é preciso questionar são as agressões e não as respostas a estas.
Queremos reconhecer e afrontar atitudes violentas que existem nas outras companheiras e em nós mesmas.
Visibilizar agressões que não costumamos reconhecer como tais: chantagens emocionais, papéis de poder…
Reconhecer elas, rejeitá-las e defender-se.
Para nós, um grupo de auto-defesa de e para mulheres permite criar respostas individuais e/ou coletivas para as agressões.
É uma alternativa real às instituições e autoridades que querem ter a resposta ou a solução. Não queremos recorrer nem a polícia nem aos advogados nem aos juízes.
Queremos combater a frustração e a sensação de impotência que podemos sentir ante uma agressão.
Entendemos um grupo de auto-defesa como um grupo de afinidade, com a possibilidade de organizar-se e atuar diante das agressões.
Perdamos o medo e saquemos a raiva!

Este texto foi publicado em 2005 no fanzine “de pernas abertas”.

Comunicado das Anacondas subversivas

Dizem por aí que o inimigo mais difícil de combater é o que vive em casa. Como isso é verdadeiro e próximo quando falamos de sexismo! Mas claro, “nós” somos a galerinha do rolê alternativo, gente politicamente mais ou menos correta e o assunto do antipatriarcado é bastante aceito. Sim, é bem verdade que às vezes dizemos “buceta!” ou chamamos a um policial de “filho da puta”, mas são só minúcias que algum dia abandonaremos. Algumas de nós já se cansaram de ouvir isso, de suportar essa hipocrisia, de acreditar que em nosso mundinho, microcosmo, rolê alternativo, o pior do sexismo não se manifestava, ou então não existia.
Nos cansamos do rumor, da fofoca insana que se tornou habitual nos bares, festas e outros eventos libertários, e queremos de uma vez por todas chamar as coisas por seus nomes e denunciar:

Que muitas companheiras, como nós, se sentem sistematicamente abusadas por rastafaris, cabeludos, gente-boa ou simplesmente galanteadores que ainda tem a ousadia de, em certo momento, empunhar a bandeira do antipatriarcado, participar de reuniões, cooperativas, tocar em grupos de inegável conteúdo antagonista… etc. Quando uma mulher diz “NÃO”, ou é um quase sim ou um meio não que quer se deixar convencer. Quando dizemos “NÃO”, é que “sentimos muito, chato, mas essa noite não rola”.

Que além disso, alguns “companheiros” tenham a pouca vergonha de dizer a quem denuncia: “Vai fazer escândalo toda vez que tivermos uma ereção?”. A esse respeito queremos dizer que não nos assusta nenhum levantamento de “membro”. O que sim nos pode assustar, causar nojo e/ou vontade de vomitar é o “membro” que apesar da negativa insiste, persiste, incomoda e inclusive agride em vez de continuar sua ereção sozinho ou com quem se anime de compartilhá-la.

Que várias companheiras têm sido objeto de abusos mais ou menos frustrados por um golpe a tempo em okupas, shows, festas, espaços supostamente libertários.

Que muita gente, ainda sabendo de tudo isso, encobriu uma ou outra vez semelhantes porcos ou simplesmente comentaram o assunto em forma de fofoca.

Se fazemos coro frente ao fascismo, autodefesa, se gritamos do fundo do peito que nenhuma agressão ficará sem resposta, se pintamos as paredes contra o patriarcado, ação direta, se fazemos tudo isso, então não há lugar para o que tem acontecido por anos entre nós. Não há lugar para as cantadas, para aquele que abusa, para aquele que sai à caça da moça e não nos respeita, tratando-nos como presa “fácil” em cujo pescoço se deve lançar-se.

O problema é coletivo. A resposta deve ser também coletiva. Limpemos a casa antes de varrer o pátio.

Queremos deixar claro que não somos um coletivo. Diferente deles, não fazemos um trabalho contínuo, mas nosso objetivo é combater o patriarcado mediante respostar a problemas concretos. A forma de organização que praticamos é o que se conhece como grupo de afinidade, ou seja, um grupo fechado de pessoas e com um alto nível de confiança que garante nossa operatividade e eficácia. Incentivamos a todas as moças que se organizem dessa ou de outra forma para lutar contra o patriarcado.

NENHUMA AGRESSÂO SEXISTA FICARÁ SEM RESPOSTA!

Sobre a ação direta feminista

Ao longo dos últimos meses, algumas mulheres tivemos que adequar nosso ócio noturno à realização de ações diretas feministas que consistiram, principalmente, na expulsão (ou tentativa de expulsão) de agressores (concretamente de um agressor, conhecido pelo apelido de Fer) de espaços públicos.

Consideramos legítima esta ação especialmente quando se leva a cabo em um ambiente político, como foi o caso. Ainda assim, durante os dias seguintes, nos deparamos com reações de surpresa, alarme e, em algumas ocasiões, questionamento, assim como algumas interpretações errôneas da ação e de seus objetivos. Isto nos faz pensar que talvez nos últimos tempos, nos movimentos sociais de Barcelona se está perdendo (possivelmente por falta de costume) a sensibilidade feminista que permite compreender em seu contexto e em sua justa medida ações como esta. Por isso gostaríamos de convidar os diferentes grupos a nos acompanhar em uma reflexão sobre o porquê e o como da ação direta feminista.

Por quê?

As agressões sexistas, os assédios, os estupros são formas de opressão patriarcal que ocorrem constantemente em nosso cotidiano e em nossos espaços políticos e se amparam em múltiplos apoios que têm a ver com as inércias sociais como um bom ambiente, o contexto festivo, as drogas e a ideia de que o que ocorre nesses contextos faz parte de um âmbito privado e não político, em que tudo vale. Este conjunto de elementos funciona como legitimador das condutas dos agressores e, portanto, deslegitimador dos possíveis sentimentos de mal-estar, protesto ou resposta da agredida e permite que estas formas de violência continuem silenciadas, minimizadas e continuem produzindo-se cada vez com mais impunidade.

A partir de uma perspectiva anti-patriarcal, estes tipos de ações não são casos isolados, mas sim fazem parte de uma forma de violência estrutural e, portanto, exercê-las é exercer uma forma de violência amparada em um privilégio social. Denunciá-las e combatê-las é uma forma de fazer política. Aceitá-las e justificá-las também é então um posicionamento político no sentido oposto.

Como?

Identificando-as, indicando-as, tornando-as visíveis já no momento em que acontecem e não quando suas consequências se manifestam.

Alguns exemplos?

Se em um contexto de festa uma mulher está sendo assediada, primeiro comunica seu mal-estar ao agressor incitando-o a desistir de sua atitude. Se este não responde, a mulher comunica o que está acontecendo a seu grupo de afinidade e este, em função do grau de hostilidade do sujeito, insiste para que ele abandone seu comportamento ou diretamente o expulsa do espaço.

Se neste mesmo contexto se produz uma agressão sexista, primeiro se protege a mulher agredida da violência que se está exercendo sobre ela. Uma vez criado um espaço de segurança para a mulher, ela decide como prefere gerir a situação e, a partir daí, sempre em função de seus desejos, se atua de maneiras diversas.

Se, como é o caso que motiva este texto, um grupo de mulheres está em contexto festivo dentro de um espaço político e se encontra nele com o agressor de uma companheira, presente ou não, (isto é irrelevante porque “se mexeu com uma, mexeu com todas”), uma delas se dirige ao agressor e lhe comunica que:

a) Sabe que ele é um violador.

b) Dado que é um violador, sua presença no espaço de luta política que inclui a luta feminista é non grata (é como se Núñez e Navarro estivessem em uma festa em um centro social okupado dançando “Eu sou assim, e assim continuarei, nunca mudarei…”)

c) Ante o anteriormente exposto e a consequente falta de respeito que sua presença supõe para a consciência política das presentes, ele deve abandonar o espaço.

Se o agressor expressa sua absoluta recusa em abandonar por seus próprios pés o espaço, o grupo de mulheres passa a fazê-lo abandonar o espaço rapidamente, com o menor prejuízo possível para o resto das presentes e explicando sempre às pessoas que organizam a festa e a quem pergunte o que é que está acontecendo e porque.

Esses são só alguns exemplos que esperamos sirvam para ilustrar o porquê e como da ação direta feminista para eliminar as desconfianças e receios que estas ações podem produzir em quem não dispõe de dados suficientes, assim como para que estas dinâmicas se integrem no funcionamento de nossos espaços cotidianos e centros sociais.

Mexeu com uma, mexeu com todas!

Unas/ LasOtras

Se ao longo da leitura deste exerto você visualiza a situação e te parece estranha ou difícil de compreender, mude o conceito de “sexista” por “racista” e verá como tudo fica mais simples.

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    freeg, se quiser, pode dividir comigo alguns dos teus textos que agora eu to mais de boa pra traduzir :)

     
     

    oi! ando sem internet! mas vou ver.
    Descobri o que é peña em giria espanhola. É tipo ‘galera’, ‘a galera’. No Peru falam ‘bateria’ :)

     
     

    eu traduzi como galera, grupo, pessoal algumas vezes, outras como “rolê” (tipo “fulano não faz parte do rolê”), porque achei que combinava usar uma gíria daqui.

     
     

    Si todavía tienen textos para traducir avísenme que ando con tiempo

     
     

    me pilhei e traduzi o texto em catalão.
    até achei que ficou bom, tem só umas duas frases esquisitinhas que eu não consegui traduzir direito.
    ainda falta dar uma revisada

     
     

    essa semana mando… bja

     
       

    freegana, acabei traduzindo o resto pq queria levar pro vulva.
    já posto aqui o que traduzi, mas fique super a vontade em contribuir com tua tradução tbm :)

    bjjjjs!