Sororidade é um conceito muito bonito. Na teoria.
Ele diz respeito basicamente sobre irmandade feminina, para se contrapor ao conceito de camaradagem masculina. Significa mulheres se amarem e se respeitarem, defenderem uma a outra, apoiarem-se nos momentos difíceis e formarem uma união para ficarem mais fortes. É lindo. Não tem nada mais bonito que ver pessoas agredidas se unindo para se defenderem, pessoas vulneráveis aprendendo a se amarem. Mas como todas as coisas bonitas da vida, sempre tem quem transforme o conceito em desculpa para fomentar lixo verbal.
Eu sinto que tenho que ser muito clara a esse respeito para me fazer perfeitamente compreendida, e é basicamente:
sororidade é o caralho.
Tem um diálogo no segundo episódio de Bomb Girls no qual a protagonista, uma moça rica, está com as outras moças (todas pobres) para trabalharem na construção de bombas na II Guerra Mundial. Essa moça rica começou a trabalhar para desafiar sua família e por acreditar em sua pátria. Ela teve uma escolha e, por vontade própria e contra a vontade de sua família, deixou de ser secretária e se aliou às outras garotas para trabalhar na linha de montagem. Ela não precisa daquela profissão para se sustentar. Aquelas outras moças, porém, dependem do emprego para terem o que comer. E então, quando todas estão enfileiradas, a garota rica diz:
“Sou como todas as garotas aqui”
Então sua chefe apenas ergue os olhos e pergunta às outras: “e então? Ela é como todas vocês?”
As outras mulheres não conseguem suprimir o riso.
São todas mulheres, brancas, presumidamente heterossexuais e cisgêneras. Elas reunem diversas características semelhantes. Porém uma era rica e as outras não, e isso não permitiu que elas conseguissem se identificar com a garota rica. Porque a questão da classe marcava-as de forma violenta, porque enquanto a mais rica tem condições de discordar dos seus chefes e de se opor aos homens abertamente – porque ela não tem família para sustentar – as outras aceitam condições humilhantes porque precisam daquele trabalho. Essa diferença de classe distancia a personagem das outras e foi apenas, só uma questão de classe. Imaginemos, então, como podemos lidar com tais questões quando temos mulheres transgêneras, negras, pobres, latinas, lésbicas, bi/pansexuais, deficientes? Como podemos, então, dizer que a bandeira do feminismo atende à todas igualmente, com suas necessidades específicas?
Como podemos usar do discurso da sororidade quando as correntes tradicionais do feminismo ignora questões de classe e cor, por exemplo? O que é sororidade quando uma feminista abertamente é racista e as outras apenas tentam pôr panos quentes? As pessoas vivenciam opressões de modos diferentes, e dizer que uma única questão se sobrepõe à todas as outras é ignorância. Dizer que “a mulher nunca oprime” é estúpido. Dizer que “a cor sempre se sobrepõe ao gênero” é estúpido. Dizer que há questões que podem ser deixadas em segundo plano, “para depois”, não é apenas estúpido, mas também criminoso porque enquanto o movimento feminista e o movimento LGBT ignora a existência das pessoas transgêneras, tratando-as em segundo, terceiro, quatro, décimo lugar, essas pessoas estão sendo expulsas de casa, desempregadas, forçadas à prostituição e assassinadas nas ruas. E o próprio movimento trans* acaba por violar a existência das pessoas não-binárias, tentando enquadrá-las em formatos binários aceitáveis, acabando por culpar essas pessoas pela não compreensão do “público leigo” do próprio conceito de transgeneridade (que era algo que eu não sabia que acontecia até hoje, ao ver o caso de Tereza). E nunca, nunca podemos nos servir da linda e maravilhosa sororidade quando nós machucamos as pessoas que deviam ser as nossas aliadas.
E aqui, novamente, eu faço uma crítica à diversas feministas: criticar vocês abertamente é falta de sororidade? Eu declarar publicamente que eu não gosto de vocês, que eu não me alinho a vocês, que eu não fecho com vocês é falta de sororidade? O fato de vocês serem mulheres, Nádia e Lola e Caitlin Moran e tantas outras que não recordo o nome, não significa que eu feche com vocês o tempo todo. Podemos compartilhar o fato de termos uma vagina, o que nos confere a cisgeneridade e todos os privilégios decorrentes disso, e podemos compartilhar sobre a nossa vivência de sermos mulheres ocidentais e protestarmos contra salários menores ou algo assim. Mas é tão confortável, não é? Nunca nos criticarmos, sempre sermos aliadas e dar cobertura uma na outra quando alguém fala merda. Fingir que racismo, transfobia, capacitismo e todas essas coisas são irrelevantes. Ou, ao menos, menos importante para a causa – porque o que importa é ser mulher, não é? O resto é apêndice.
Mas não é.
Todas as minhas outras condições não são apêndices. Minha deficiência auditiva, meus cabelos e minha cor de pele que não me permitem ter 100% de passabilidade branca, minha classe social: essas coisas não são apêndices, são características minhas que se cruzam com eu ser mulher. Eu vivencio ser uma mulher muito diferente de vocês. E enquanto Caitilin Moran pode se dar ao luxo de dizer que “não dá a mínima” para questões raciais porque ela é branca em uma sociedade ocidental, eu não posso fazer o mesmo. E enquanto Nádia, do Cem Homens, pode se dar ao luxo de dizer que “mulheres não podem oprimir” ou Lola pode apenas atenuar questões de transfobia em sua caixa de comentários, bem, eu tenho que ver minhas amigas com seus nomes contestados e precisando de laudos psiquiátricos para conseguirem justificar suas existências diante do Estado. É tão confortável, não é? Achar que ser mulher cobre tudo. Que eu sou uma mulher da mesma maneira que Caitlin ou Lola, como se não houvesse recortes de cor, classe, orientação sexual, identidade de gênero, nacionalidade e tantas coisas, recortes cruéis que marcam bem as nossas diferenças.
Veja bem, não estou aqui propondo que essas mulheres todas são inimigas. Muito menos considerando que homens – do outro lado no espectro sexista da coisa – são possíveis aliados. Porque se nem mulheres conseguem realmente perceber que ser mulher não as isenta de fazer outras merdas racistas, transfóbicas, etc., imagine então homens. Nisso, confesso ser taxativa: eu dedico pouca esperança aos homens. Eu acho muito cansativo conversar com homens no geral a respeito do feminismo porque a maioria esmagadora simplesmente não consegue entender uma fração que seja do que é ser mulher. Parece que mesmo quando possuem algum desprivilégio (ser gay, ser pobre, ter alguma deficiência), ainda assim o “ser homem” cobre tudo e a falta de empatia é uma coisa incrível. Simplesmente não tenho paciência e o meu feminismo costuma ser frequentemente direcionado para dialogar com mulheres. O meu feminismo sempre foi sobre mulheres, para mulheres, por mulheres.
Por isso as minhas críticas à vocês. Eu acho urgente que se desenvolva uma consciência dentro do movimento feminista para que a gente passe a coibir atitudes racistas, transfóbicas, homofóbicas (bifóbicas também), classistas, capacitistas, gordofóbicas, etc. Acho urgente que se pare de acreditar que o feminismo abarque todas no mesmo barco, cobrindo todas com o mesmo manto de “é mulher”, ignorando completamente todas as outras classes sociais em que a pessoa faz parte. Eu critico abertamente porque eu não acredito em intrigas ou indiretas como métodos válidos de diálogo. Uma das coisas mais importantes para uma feminista não é nem ela nunca errar, mas reconhecer seu erro e saber se posicionar claramente. Quando uma feminista é transfóbica e nega claramente, recorrendo à subtefúrgios como “cadê sororidade” ou “mulher nunca oprime”, ela não está apenas se recusando a reconhecer seu erro, mas também fazendo parte da classe dos algozes de pessoas trans.
Isso não é uma “questão de opinião”.
Isso não é uma questão de “que ninguém é perfeito”.
As pessoas falam merda. As pessoas fazem merda. A diferença está entre você ser covarde para fingir que não fez merda ou ser uma pessoa decente e admitir que fez merda, pedir desculpas e não repetir mais. Essa é uma diferença tão básica que me pergunto, seriamente, como é que conseguem tropeçar nisso.
Então, fechando aqui o texto, vão ao inferno com “sororidade”. Não porque o conceito, em sua definição básica, seja ruim: ele não é. Eu acho importante mulheres aprenderem a se verem como aliadas, amigas, companheiras. Acho importantíssimo desconstruir a famosa rivalidade feminina e perceber como acreditar nisso nos impele uma contra a outra. Mas toda vez que eu vejo feministas se servindo desse conceito, é sempre pra abafar a merda que uma companheira fez e eu não tolero esse tipo de comportamento. Não aceito que feministas que critiquem outras feministas recebam censuras de “falta de sororidade” só por terem ousado desafiar suas próprias “irmãs” para apontar racismo ou transfobia, por exemplo. Não venham para mim e digam que “mulher não pode oprimir”, porque pode sim. Mulher não é só mulher. Mulher também é branca, rica, heterossexual, cisgênera, sem nenhuma deficiência. E pessoas brancas, ricas, heteros, cisgêneras oprimem. Ser mulher não confere à ela uma qualidade mágica de nunca oprimir nenhuma pessoa no mundo. Ser mulher não as isenta de ter outras características opressoras. Vou repetir isso até cansar porque parece que galera não entende. Qualquer pessoa pode oprimir qualquer pessoa – basta ela ter algum privilégio sobre alguém que não tem esse mesmo privilégio. Eu não me alinho com mulheres que sejam racistas ou transfóbicas só porque são mulheres, porque eu não acredito em feminismo que não seja para todas. Eu não acredito que é válido escolher x mulheres que defenderei.
É incômodo? Sim. Esse tipo de ideia incomoda às pessoas? Sim. É desconfortável perceber que você tem esse poder de oprimir outra pessoa com sua cisgeneridade ou heterossexualidade ou mesmo sua cor de pele? Sim. Mas seu desconforto nunca chegará perto de toda a discriminação histórica que essas pessoas sentem. Por mais horrível e desconfortável que eu me sinta percebendo a minha identidade cisgênera e de como ela oprime minhas amigas trans*, todo meu sentimento nunca chegará perto de toda a saga de sofrimento e exclusão que elas sofrem. Eu dizer que eu não posso oprimir porque “sou mulher” é mentiroso. Mas esse tipo de sentimento – o de desconforto – nunca, nem por um segundo, deve deixar de existir para não ferir a “sororidade”.
Sororidade é um conceito lindíssimo.
Atenham-se à ele. Parem de usá-lo como uma desculpa esfarrapada e fingirem que não erraram. Parem de fazer de conta que ser mulher une a todas nós de forma igual e mágica, porque não une. Por favor, parem de ignorar as muitíssimas opressões que todas nós vivemos e achar que elas são menos importantes do que “ser mulher”. Parem de dar cobertura às feministas racistas e transfóbicas. E, por tudo que for sagrado nesse mundo, parem de falar da misandria como se fosse uma pauta do movimento e prestem mais atenção nas suas próprias “irmãs” que estão sendo agredidas pelo próprio feminismo por serem trans* ou negras, como gostam de dizer. Porque essas mulheres estão sendo violentadas duas vezes, uma pela sociedade patriarcal e outra pelo movimento que diz que representa-as. E isso é tão triste que eu não sei nem por onde começar a lamentar.
Eu só digo isso à vocês. Não aos homens, mas à vocês: feministas que falam tanto de sororidade, empatia, irmandade, empoderamento. Por favor, apliquem todos esses conceitos de verdade. Não selecionem suas “irmãs”. Desçam do pedestal dos outros privilégios que vocês possuem e sejam menos arrogantes. Ou… podem fazer o feminismo de vocês excluindo metade das mulheres. Sem problemas. O feminismo branco e limpo. Não tem problema.
Cada um sabe da sua consciência. Fiquem com a sua sororidade… para as irmãs brancas, cisgêneras e classe média. Euzinha e mais outras iremos trabalhar em outras frentes <3