Uma ideia e o que se faz dela pode muitas vezes ser algo contraditório. Me parece bem claro que o problema está no fazer e não na concepção ideal, pois afinal de contas, esta não tem necessidade alguma de realização. Em outras palavras, quando vamos colocar uma ideia em prática, existe mil complicadores, trocentas variáveis, um sem-número de ajustes a se fazer no meio do caminho. Quando ela ganha a materialidade do acontecimento (e mesmo antes) ainda outras ideias vêm influenciá-la e adicionar-lhe nuanças.
Uma que eu gostaria de discutir aqui é a de amor livre. Assim como anarquismo, amor livre pode ter (e tem) várias versões e formas. Uma relação afetiva baseada na liberdade, ou seja, troca de carinho e cuidado sem competição ou posse. Eis a minha versão.
A ideia não é nova, mas hoje, com o aumento da discussão de gênero e várias décadas de movimento feminista, novas perspectivas estão abertas, tanto para realização como para compreensão ou resignificação do que já foi feito.
Por exemplo. Estava lendo um texto (infelizmente não lembro nem o título nem quem escreveu, que merda) em que a autora mostrava o quão machista era a versão hippie de amor livre dos anos 60 nos EUA. Homens que transavam com várias mulheres, e mulheres que tinham que se amparar em um homem e aguentar ser sua propriedade ou ser descartada de tempos em tempos (não era preciso a ideia de amor livre pra isso, não?).
Esse exemplo é bom por algumas razões. Primeiro, pela supremacia hetero ainda ter o poder de normatizar/ doentificar/ invisibilizar o que é diferente de si. Segundo, pelo “companheirismo” masculino assegurar lugares confortáveis para o machismo. Entre vários pontos problemáticos do exemplo hippie, estes dois que citei configuram relações de poder que podem ser (e provavelmente são) reproduzidas nas várias combinações de relações afetivas entre gêneros. Ou seja, poder dizer o que é bom, e poder dizer isso de um lugar seguro.
Estas duas capacidades me parecem essenciais para a liberdade, mas elas podem ser realizadas opressivamente. São objetivos libertários que, na prática, acabam sendo efetivados por meios autoritários. (A contradição aparece mais em obrigar xs outrxs a buscar o tipo de liberdade que se quer para si, pois é isso que garante a segurança de uma posição.)
Então, dá para lembrar aquela frase boa de que os meios são os próprios fins. Isso quer dizer que não deve existir utopia? Ou que viver viajando na utopia, teorizando dia e noite sobre ela é estar no meio? Que acontece um colapso temporal do presente com futuro? É tudo isso e também não é. Se por um lado, parece que a gente pode ter um monte de ideias e não realizá-las (o ato de ter ideias, ainda assim, é uma realização!), por outro parece que não existe caminho sem uma direção. Resumo do parágrafo: a dicotomia ideiar-fazer é meio furada.
Mesmo assim, a relação entre a ideia de amor livre e o fato de amar livremente parecem encaixar nessa metáfora de direção e caminho. É por isso que a pergunta do título importa: o que fazer? Pra começar, como em muitas outras coisas que fazemos, essa é uma pergunta em que não cabe a característica mecânica “funcionar”. Nada social funciona. As coisas sociais acontecem. Se a gente bota uma expectativa, do tipo “vai ser bom”, então dá para dizer se achamos bom ou foi bom. Mas uma amação livre pode se realizar e não ser bom (será?). São duas coisas diferentes. A não ser que implicitamente a gente assuma que funcionar é “acontecer sem percalços”. Aí, nada social funciona mesmo.
Se amor livre é uma direção para onde caminhar, sabemos que essa caminhada não é nada fácil. Vejo que algumas ferramentas podem ajudar nisso (e que também não são muito tranquilas de conseguir): autoestima ou -confiança, e mínima aceitação do entorno. Como toda ferramenta, estas facilitam, mas não realizam a coisa. Autoestima é a aceitação de si, é aquele conforto que temos com nós mesmxs que nos permite e instiga a arriscar feitos e exprimir opiniões. A aceitação do entorno é, de certa forma, necessária pois estamos falando de relações interpessoais, ou seja, existe mais pessoas envolvidas. Se algumas pessoas nos apoiam e buscam caminhar na mesma direção (não necessariamente no mesmo caminho, mas pode acontecer) então somamos força ou no mínimo trocamos experiências.
Pode parecer estranho, mas o machismo, citado lá em cima, se configura como uma posição dominante, entre outras coisas, por usar estas ferramentas (segurança pessoal e pública). Ele usa-as para seus fins, mas elas poderiam ser usadas para facilitar, ou até mesmo garantir, a realização de amações livres. Contraditório? Pois, não. Qualquer sistema de dominação usa o que tem para se manter e não deixar (faz-nos acreditar que é impossível) que outras ideias aproveitem as ferramentas que o promove. Temos que estar atentxs e que romper essas falsas barreiras!