Métodos Sapatão - Joyce Trebilcot

Tradução de Dyke Methods - Joyce Trebilcot, filósofa lésbica radical e separatista. Acredito que o texto tá MUITO pertinente para a análise crítica da situação que estamos vivenciando no movimento feminista radical, de uma comunicação hostil, competitiva e extremamente danosa para as lésbicas. Neste artigo a autora propõe três princípios éticos básicos para favorecer uma comunicação não-violenta em espaços de mulheres e os descreve como métodos sapatão, por romperem radicalmente com a lógica patriarcal de conversação. Joyce não propõe estes princípios como dogmas a serem seguidos, afinal pontua a possibilidade de precisarmos agir com estratégias de discurso que seriam patriarcais para confrontar situações patriarcais [inclusive no caso de confronto com mulheres que conscientemente se identificam com homens, colaborando com eles e prejudicando outras], usanso as armas do sistema contra ele mesmo. No entanto, são propostas éticas interessantíssimas para criar outras formas de relação, mais saudáveis, em relações lésbicas, sejam elas coletivas, políticas ou não. Boa leitura!

Métodos Sapatão 1 – Joyce Trebilcot
Filosofias e Culturas Lésbicas – Jeffner Allen
tradução: Raposa d’Oeste

Primeiro princípio: Eu falo apenas por mim mesma.
Segundo princípio: Eu não tento fazer com que outras mulheres aceitem minhas convicções no lugar das suas.
Terceiro princípio: Não há determinação¹. 2

Os métodos que discuto nesse artigo são, em particular, métodos para utilizar a linguagem. São também métodos para uma variedade de coisas – experienciar, pensar, atuar. Mas meu foco é na linguagem verbal, em Inglês; meu foco é em de que forma, como uma sapatão, – consciente, comprometida e lésbica política – eu posso usar palavras para contribuir com a descoberta/criação de realidades lésbicas conscientes.

O centro deste artigo é a afirmação de três princípios. Não se tratam de regras a serem seguidas. Eles são, ao invés disso, um resumo de valores que eu frequentemente tenho e de fato gosto de ter. Não tenho a intenção de ser seguida por outras e eu posso “violar” esses princípios eu mesma se quiser, sem consequências negativas, sem culpa.

Fontes dos princípios em minha experiência. Os princípios vem em maior parte da raiva, da raiva de ser controlada.

Esse controle é exercido por homens e mulheres[y] que se identificam com homens 3 contra mulheres e garotas de várias formas, das quais – como eu aprendi através do feminismo – duas das mais efetivas são o apagamento e a nomeação falsa. No apagamento, homens nos tornam invisíveis seja declarando que estamos incluídas quando não estamos – como no termo mankind 4, por exemplo – ou simplesmente nos ignorando; e na nomeação falsa, eles nos definem e reforçam suas definições contra nós – como no conceito de “mulher”[y].

Outra manifestação de controle pelos homens é que mulheres adotam os vários significados da opressão que os dominadores usam e aplicam tais técnicas contra si mesmas e umas contra as outras. Por exemplo, eu estive na audiência das sessões da Society for Women in Philosophy Sociedade para Mulheres na Filosofia e da National Women’s Studies Association Associação Nacional de Estudos de Mulheres quando lésbicas feministas fizeram reivindicações sobre as mulheres[x], sobre as dykes, sobre “nós”, termo que apaga ou me descreve mal. Nesses casos, se eu mantenho meu senso de quem sou, sou excluída; se me sinto uma parte do “eu” sendo discutido, eu distorço quem sou. Essa dificuldade não é apenas minha; ouvi outras mulheres[x] dizerem que o mal uso da palavra “nós” em círculos lésbicos e feministas é danoso para elas também.

Mas muito antes do feminismo, eu estava com raiva dos esforços – por vezes bem sucedidos – de me controlar. Minha experiência prematura foi de ser controlada como a filha única de uma mãe que, com dedicação sincera, tentou me obrigar a carregar os valores de seu marido. Eu também fui controlada e, em certos aspectos, continuo sendo por instituições delineadas por homens poderosos para manter outras pessoas na linha: a igreja católica, a heterossexualidade, a academia, o capitalismo, etc.

Em conjunto com o trabalho deste artigo, é importante entender que estas e outras instituições similares participam na indústria da verdade – ciência heteropatriarcal, religião, cultura, educação, mídia – que é usada por homens como meios de exercer poder. Na cultura dominante “verdades” são apresentadas como declarações que as pessoas devem aceitar como base para seu pensamento e ação e, consequentemente, identidades, independentemente de como elas se sentem sobre tais “verdades”, independentemente de suas experiências relevantes. Por meio dos aparatos da “verdade”, “conhecimento”, “ciência”, “revelação”, “fé”, etc – não importa se a metodologia é científica ou religiosa -, homens são capazes não apenas de projetar suas personalidades e realidade, mas também de exigir que outras pessoas participem dessas realidades e as aceitem como as suas próprias. Dos recipientes da “verdade” – ou seja, todos os que não são autorizados a criá-la – é esperado que se alinhem a essa verdade, que a respeitem, curvem-se a ela, e especialmente, que honrem – e obedeçam – aqueles que são autoridades nela. O sistema é totalmente corrupto; me machuca, me dá raiva e, quando me dou conta, me parece idiota. Quão ridículo é, por exemplo, para homens ir a uma escavação arqueológica e reportar que aquilo que acharam é o que estava lá, quando eu poderia voltar com uma história bem diferente se fosse eu a cavar, e outras mulheres[x] voltariam ainda com outras histórias. Assim como eu me comprometo a escrever filosofia sem excluir ou distorcer quaisquer mulheres[x], estou também comprometida a encontrar formas de trabalhar sem impor minhas “verdades” – as descrições, definições, explicações, ideais que são importantes para mim – a outras mulheres[x]. Os três princípios que expliquei aqui me ajudam nesse processo.

Onde os princípios são aplicados. Minha vida é como um lago lamacento com algumas piscinas limpas e ribeiros – espaços exclusivos de mulheres[x] – mas muitas áreas densas, de um grau para outro, com a lama e os venenos do patriarcado. Os princípios que articulei aqui pertencem a essas águas limpas, ou relativamente limpas.

Os princípios não intentam ser usados em situações que são predominantemente patriarcais, isto é, quando pegar algo dos homens está em questão, assim como quando uma está trabalhado no patriarcado por dinheiro, negociando com homens e mulheres [y] identificadas-com-homens, etc. Nesses contextos, creio que seja mais efetivo – isto é, de ajuda ao invés de danoso para as mulheres – operar de acordo com ideias patriarcais de conhecimento e verdade.

Quando tanto elementos patriarcais quanto feministas tem uma parte significativa na situação, os princípios se aplicam, embora limitados de alguma forma pelo poder patriarcal. Aulas de estudos de mulheres podem ter esse caráter; às vezes, por exemplo, para que uma classe funcione, tanto em relação à instituição quando em relação aos estudantes, a professora deve operar parcialmente com princípios patriarcais e em parte como uma co-descobridora/criadora de espaços de mulheres[x].

Em situações que são predominantemente mulheres[x]-identificadas, em contraste, eu tento jogar fora hábitos e valores mainstream em prol de padrões mais diretos e diversos de mulheres[x]. Eu acrescentaria que, para mim, o patriarcado está sempre presente: não há um espaço de mulheres[x] “puro”. – Apesar de que, em compensação, quando mulheres[x] estão presentes no espaço também não há patriarcado puro; estaremos sempre o violando e sabotando.

Os Princípios

Primeiro princípio: Eu falo apenas por mim mesma. Eu falo “apenas por mim” não no sentido de que pretendo ser minha única audiência mas, em vez disso, no sentido de que eu intenciono minhas palavras para expressar apenas o meu entendimento do mundo. Eu espero que algumas mulheres[x] achem o que digo mais ou menos verdade para elas e que outras julgarão falso, distorcido ou irrelevante. No último caso posso me ferir pois geralmente quero que aquilo que digo seja aceito por mulheres[x] que eu respeito e amo. Mas é mais importante para mim reconhecer uma abundância de espaços para as diferenças.

Deixe-me exemplificar como a ideia de que eu falo apenas por mim mesma funciona. Suponha que estou propensa a escrever “Todas nós precisamos de amor”. Pelo fato de que eu desejo falar apenas por mim e assim reconhecer a possibilidade de haver mulheres[x] que não acreditem que elas precisam de amor, eu evito o plural “nós”. Há diversas alternativas. Primeiro, ao invés de “Nós precisamos de amor”, posso escrever “eu preciso de amor e algumas outras mulheres[x] também afirmam que precisam”. Essa abordagem do tipo ciência social pressupões dados – escritos ou confessos de outras mulheres[x]. Para tanto eu teria que ter grande sabedoria, as mulheres[x] relatadas teriam elas mesmas autorizado o uso de suas palavras no contexto em questão; elas participam, por assim dizer, como co-autoras no trabalho. Com essa abordagem para cumprir o princípio que eu escrevo apenas para mim, o pensamento feminista avança em direção a tornar-se uma formação coletiva, um resultado previsível.

Outra maneira de reagir à tendência a escrever “Nós todas precisamos de amor” de forma consistente e falando apenas por si é escrever, ao invés, algo como “Eu preciso de amor e parece que algumas outras mulheres[x] também precisam de amor”; ou, talvez melhor, “Minha impressão das mulheres[x] é a de que todas nós precisamos de amor”. Em formulações como essa lembro a mim e a minha audiência que estou falando apenas as minhas próprias convicções, conceitos, definições e impressões – e que eu respeitosamente deixo espaço para a consideração das mulheres[x] que descrevo, sendo essas considerações significativamente diferentes das minhas ou não. Com essa abordagem eu recordo à leitora que quando estou escrevendo sobre outras mulheres[x], a distinção entre a minha opinião e a delas – até mesmo quando são idênticas – é metodologicamente significativa.

A terceira e talvez melhor alternativa é, no lugar de “Nós todas precisamos de amor”, eu escrever simplesmente “Eu preciso de amor”. Se eu escolher essa abordagem, eu claramente falo apenas por mim, e conecto minhas teorizações – isto é, quaisquer explicações, explanações, predições ou exortações que eu possa conectar com a declaração de que eu preciso de amor – de forma clara e objetiva a mim mesma, de acordo com a crença feminista de que o pessoal está essencialmente envolvido tanto com o conhecimento (bem como teoria) quanto com a libertação.

Eu disse que tenho a intenção de usar minhas palavras para expressar apenas meu próprio entendimento. Mas meu entendimento é formado em parte por homens. Por isso, falando por mim, às vezes – para o meu horror, quando eu o percebo – eu estou também falando por homens, pelo patriarcado. Por exemplo, quando eu, uma mulher[y] branca, falo em termos racistas, eu expresso o racismo dos homens brancos assim como o meu. De forma a falar apenas por meu eu sapatão escolhido e não por homens também, eu trabalho para reconhecer e eliminar formas opressoras de pensamento e de discurso, e as forças que as criam.

Segundo princípio: Eu não tento fazer com que outras mulheres[x] aceitem minhas convicções no lugar de suas próprias. O primeiro princípio, o de que eu falo apenas por mim, sugere o segundo que é, ao falar sobre minhas convicções eu rejeito a proposta de tentar fazer com que as mulheres[x] aceitem o que penso em detrimento do que elas pensam. Por vezes eu chamo esse princípio de não-persuasão. Nesse contexto, o termo “persuasão” deve ser construído amplamente para que inclua não apenas argumentos e discussões mas também outras formas de deliberadamente influenciar as crenças das pessoas, bem como manipulação emocional de vários tipos.

É evidente que o princípio de não-persuasão não me impossibilita de contar a outras mulheres[x] quais são minhas crenças e valores, e eu certamente posso dar-lhes informação, seja particular ou até mesmo trivial (como “eu estarei lá às dez e meia”) ou, por exemplo, informação que eu possa relatar a uma classe sobre herstória e teoria feminista. O princípio de não-persuasão pressupõe que eu não devo tentar moldar as mentes das mulheres[x], não que eu não posso dar-lhes informações e ideias que elas possam usar, se escolherem fazê-lo, para tirar suas próprias conclusões, transformar sua própria realidade.

Não tentar fazer com que outras mulheres[x] aceitem minhas ideias no lugar de suas próprias é antes um princípio sobre intenção do que sobre comportamento. Se um tipo particular de comportamento conta como persuasão varia de situação para situação entre culturas, então não há um tipo de comportamento que seja sempre excluído do princípio. De fato, creio que aplicar o princípio não requer muita mudança em como eu ajo – eu ainda posso falar sobre minhas convicções e minhas razões para tê-las (como eu faço aqui, por exemplo). Mas minha atitude muda – não mais inclui a intenção de persuadir, uma intenção à qual eu me habituei no patriarcado.

Apesar de minha renúncia à persuasão, mulheres[x] podem, é claro, ser influenciadas por mim a adotar como suas próprias certas opiniões minhas, mesmo que elas não sejam autênticas para elas; isso é especialmente comum em situações nas quais eu sou percebida como tendo uma posição ou status elevado. O princípio de não-persuasão não pode impedir que eu atinja outras mulheres[x] de forma que tenham certas convicções, mas apenas eu posso evitar de fazê-lo.

Esse princípio, então, leva a sério o clichê que todas devem pensar por si próprias. Na formação patriarcal, essa noção é geralmente apresentada sobre um background de “mercado das ideias” onde muitos produtores apresentam suas mercadorias, vendendo-as com argumentos, competindo uns com os outros por atenção e aliança, e consumidores compram algumas ideias ao invés de outras. O princípio declarar que eu não tento fazer com que outros aceitem uma ideia sugere não tal imagem de mercado mas uma de self-service³: cada uma contribui com alguma coisa e enfim criamos todo um jantar juntas. Compreende-se que nossas contribuições podem ser diversas e parecer, em alguns padrões, não combinarem entre si, mas nós não nos incomodamos com isso, pois tais padrões não são nossos. Cada uma de nós come de seu próprio prato e do de outras. O prato que eu trago é algo sobre mim, mas também algo que eu quero compartilhar – eu espero que, ao menos, algumas outras também gostem.

Escrevendo filosofia sapatão é essencial para mim que alguém mais pense que pelo menos algo de meu trabalho vale a pena. Mas eu quero que meu trabalho seja usado por outras mulheres[x] porque elas o acham útil nos termos de suas próprias experiências, não porque eu as persuadi, mesmo que gentilmente, para acreditarem que o que eu digo é a verdade. Desejo aprender a apresentar meu trabalho não como ideias à venda num mercado competitivo mas como uma fruta a ser dividida com aquelas que estão dispostas a tanto.

Terceiro princípio: Não há determinação. Esse princípio, como o segundo, é sugerido pelo primeiro. Não apenas eu falo exclusivamente por mim mas, última e principalmente, apenas eu falo por mim. Isto é, a tarefa de descobrir/criar a realidade requer a longo prazo a exploração de toda faceta da existência através de minha consciência lésbico-feminista. A princípio, eu preciso reescrever para mim mesma o mundo inteiro que o patriarcado me apresentou. Na prática, um tempo de vida finito e o chamado para outras diversões o tornam impossível. Além disso, outras mulheres[x] com consciência sapatão estão fazendo parte do trabalho, e em muitos casos posso integrar suas análises para as minhas próprias. Ainda assim, o princípio de que não há determinação me lembra que a cada passo eu preciso considerar como as premissas patriarcais podem estar distorcendo quem eu sou e o que eu penso, guiando-me de volta ao serviço dos homens.

A declaração de que não há determinação não significa que não há opressão, que o bebê não está realmente chorando no quarto ao lado, e por aí vai. Eu compreendo que a vida diária pode ser plenamente gastada com o que está dado, com fenômenos impostos de fora; eu não nego essa experiência, da qual partilho. Falando que não há determinação eu quero dizer, ao invés, que toda premissa patriarcal, cada axioma da realidade recebida, é finalmente questionado pelo propósito de decidir aceitar isso como é, mudá-lo ou rejeitá-lo inteiramente; tudo o que é alegado imutável pela natureza, da condição humana, de realidade final, deve ser identificado e avaliado.

Considere o quão controladoras e penetrantes as determinações do patriarcado são. Por exemplo, ao escrever sobre as vidas das mulheres[x], parte do background de minha discussão são as várias premissas compartilhadas por mim e minhas leitoras a respeito das condições necessárias da vida humana – por exemplo, humanos e consequentemente mulheres[x] devem ter comida, água e ar para sobreviver; que nossas vidas geralmente duram menos de cem anos; que somos sujeitas a dor; etc. Quando esses tópicos não são eles mesmos os assuntos de meu discurso, eu provavelmente, por motivos de hábitos e conveniência, aceito tais premissas não meramente como verdade mas como dados no sentido de que eu os tomo como imutáveis, para serem escritos na natureza das coisas. E, de fato, eles são escritos na natureza das coisas – mas não por mim e nem, sequer, por nenhuma mulher[x]. Então são determinações apenas na vivência: temporariamente e, ainda assim, suspeitas.

A ideia de que não há determinação não significa apenas que cada uma delas necessita ser reexaminada na consciência sapatão, mas também que tal consciência pode definir a realidade de tal forma que não mais exista designação, ou seja, não exista “natureza” – ou divindade -, fatos naturais imutáveis – ou metafísica – nas quais as mulheres[x] são forçadas a se apoiar e se construir. Ao desenvolver ideias em uma área pode ser útil e até necessário assumir um background fixo de condições imutáveis, por assim dizer, mas que devem ser entendidas como premissas favoráveis à discussão e posterior criação/descoberta ao invés de fatos da natureza. O princípio de que não há determinação não apenas chama atenção à necessidade de questionar as premissas e pressupostos de um foco particular, ele também é um lembrete de que muitos esquemas conceituais familiares que requerem designações são delineados por homens privilegiados em seus próprios interesses.

Questões e Respostas

Nesta seção eu enfatizo o que me parecem ser as mais importantes objeções e desafios inspirados pelos três princípios. São organizadas em três questões: a questão sobre a persuasão, a questão sobre a comunidade e a questão o sobre tesouro do arco-íris 5.

Questão da persuasão. Joyce – indago-me -, provavelmente a preocupação mais séria que tenho a respeito do que escrevi até então é fazê-lo com o segundo princípio, que é o de que eu não tento fazer com que outras mulheres[x] aceitem minhas convicções como as suas próprias. Tenho duas inquietações sobre esta declaração. Primeiramente, ela não é verdadeira: às vezes eu tento persuadir outras. Segundo, e mais importante, eu penso se é obrigatório que seja verdadeira: certamente há situações nas quais eu deveria tentar fazer com que outras concordem comigo.

Resposta para a primeira parte. Sim, às vezes eu tento persuadir outras a aceitar e concordar com o que eu digo. Por vezes eu faço isso pelo prazer de argumentar e, por outras, eu faço isso fora de convicções morais e políticas. Em algumas das situações em que tento persuadir outras a adotar minhas visões, resistir à tentação de experimentar a persuasão seria apropriado mas, ao invés de resistir, eu deixo os velhos hábitos agirem. Todos os três princípios são ideais, e eu não quero viver sempre para eles. Noutras ocasiões, embora, o princípio de não-persuasão não se aplica porque a situação é patriarcal; esses princípios, como eu já mencionei, são designados para espaços de mulheres[x].

Mas parte do que constitui tais espaços é o exercício desses princípios. Isto é, espaços de mulheres[x] são definidos em parte pelas formas como as mulheres[x] tratam umas às outras; a ausência de hegemonia conceitual/intelectual ou, além disso, um respeito sério pelas diferenças entre mulheres[x], que é o ponto do princípio de não-persuasão, são características desses espaços exclusivos. Portanto, há uma estreita relação entre agir de acordo com o segundo princípio – e, de fato, com todos os três princípios que articulei aqui, bem como com outros – e a natureza do espaço em si. Eu defino se o espaço ou situação é parcial com as mulheres[x] em termos de se os princípios que discuto são aplicados ou não; reciprocamente, se os princípios se aplicam dependem de se o espaço é de mulheres[x].

Considere um caso no qual sou uma professora numa classe de estudos de mulheres[y] numa universidade mainstream. Se a situação da classe é muito patriarcal – uma sala grande de alunos novos de cinquenta ou sessenta estudantes, diria, com algumas alunas feministas – é provável que eu defina minha tarefa em grande parte como de recrutamento e então vejo a persuasão – por exemplo, convencendo as alunas de que as mulheres[y] são oprimidas – como uma ferramenta essencial. Eu não sigo o princípio contra a persuasão, que não se aplica aqui. Em contraste, numa sala mais avançada e menor, eu posso começar o momento de exploração das visões de uma estudante nos pontos em que são inconsistentes com as minhas, não com o propósito de mudá-las mas sim com a intenção de participar na articulação dessas convicções. Agindo de acordo com o princípio da não-persuasão, eu contribuo com a criação de um espaço de mulheres[x] nessa classe.

Resposta à segunda parte. A segunda parte da questão alerta que nos espaços de mulheres[x] há situações nas quais eu deveria tentar persuadir outras a aceitar minhas referências como as suas próprias. Essa ideia é baseada na convicção de que alguns valores são tão danosos que mudá-los ou tentar fazê-lo é mais importante do que evitar a imposição dos valores de uma sobre outras.

Meu entendimento de situações como essa é de que elas são definidas por valores patriarcais e não se trata, portanto, de espaços de mulheres[x]. Imagine, por exemplo, um grupo de mulheres no qual uma mulher branca diz algo racista. Eu quero que ela fique quieta, retire o que disse, não fale de tal maneira e eu o comunico a ela e explico o porquê. Até aí, agi consistentemente com o segundo princípio. Eu a disse como me sinto e o que penso sobre suas palavras, mas eu não peço para que ela cesse com seu discurso racista e nem discuto que ela deve fazê-lo.

De fato, é claro, dizer a ela minha reação às suas palavras pode funcionar como uma sanção, para que ela possa mudar seu comportamento e até suas convicções para me satisfazer – mas essa resposta é patriarcal, parte do papel feminino tradicional de agir de acordo com os desejos de outrem. Por outro lado, ela pode considerar o que eu digo por conta própria, sem precisar considerá-lo de acordo com seu relacionamento comigo, e decidir, à luz do que ouviu, que ela quer mudar. No primeiro caso, eu persuado apesar da minha intenção de não fazê-lo; no último, eu não persuado, mas a outra muda de qualquer forma.

Mas suponha que a mulher[y] que faz o comentário racista continue num discurso racista independente de ter sido pontuado a ela que suas palavras são ouvidas como racistas. Agora está evidente que o espaço que dividimos não é de mulheres[x], pois em espaços de mulheres[x], o patriarcado, incluindo o racismo, é rejeitado assim que reconhecido. A esta altura, eu devo decidir se tento persuadir essa mulher[y] a rejeitar o racismo, mas essa decisão não anula o segundo princípio, afinal ele só se aplica a espaços de mulheres[x]. Portanto, há situações nas quais a persuasão é apropriada, mas a própria existência de tal situação significa, para mim, que o espaço em questão não é de mulheres[x].

Questão da comunidade. Num tom de desafio eu digo a mim mesma que o feminismo, especialmente o feminismo lésbico, é essencialmente baseado em “nós”, em comunidades de mulheres[x] conscientes de nossa coletividade como mulheres[x]. Mas em minha ênfase na diferença, eu suprimo a comunidade; e em minha enfase na maioria para usar termos da filosofia patriarcal como lembrete da origem desta objeção, eu perco de vista o indivíduo.

Outra maneira de formular essa ideia é perguntar se não existe uma coisa ou outra com a qual todas as feministas, ou todas as sapatonas, concordam, pela/s qual/ais todas nós somos chamadas de “feminista” ou “sapatão”. Certamente ser uma sapatão, enquanto é parcialmente uma questão de atitude e estilo, é também parcialmente uma questão de ter certas convicções. E, de fato, isso deve ser discutido, é essencial para as mulheres[x] que tenham suas premissas compartilhadas como uma base para a solidariedade, para que nós possamos permanecer unidas e fortalecidas contra o patriarcado. A questão que emerge dessas considerações é, então, se os princípios aqui articulados protegem as diferenças entre mulheres[x] mas sacrificam nosso ser coletivo.

Resposta. Comunidades de mulheres[x] são mulheres[x] agindo, cantando, falando, pensando, tocando, sentindo, não necessariamente o mesmo mas em grupo, juntas. Esses três princípios implicam que eu não tentarei trazer isso a outras mulheres[x] persuadindo-as a aceitar uma série de crenças, mas eles não impedem minha participação e encorajamento da comunidade. Os princípios limitam minha imposição de um “nós” sobre outras, mas não significam que as mulheres[x] não podem compartilhar valores e pontos de vista e autodefinições; não significam que as mulheres[x] não podem se movimentar juntas, por conseguinte criando um “nós”.

Mais explicitamente, enquanto ser sapatão é em parte ter certas crenças – por exemplo, acreditar no poder criativo das mulheres[x] – é ainda mais sapatão, eu acho, chegar a essas convicções por si mesma, não internalizá-los em reação à intenção de alguém que tinha a intenção de fazê-lo. É claro, mulheres[x] geralmente aprendem os valores sapatão parcialmente de outras – de fato, a comunidade consiste parcialmente nessa interação. Mas aprender umas com as outras não requer a intenção de persuadir. Nem a partilha de pontos de vista pressupõe persuasão. Comunidades sapatão onde mulheres[x] compartilham de alguns valores e premissas centrais, podem chegar a tal ponto sem persuasão, através das definições e redefinições feitas por nós sobre nós mesmas em interação umas com as outras.

Eu quero acrescentar que apesar de eu tentar evitar agir de forma a fazer com que outras mulheres[x] adotem os princípios que articulo aqui, eu gostaria que outras mulheres[x] os adotassem. Eu gosto de estar com mulheres[x] onde ninguém está imponto suas visões e não há competição sobre quem detém a verdade. Quando mulheres[x] que partilham de meus valores anti-hierárquicos, anti-competitivos se reúnem, nós tentamos não discutir ou tentar persuadir, mas contar nossas histórias – a passada, a presente e a futura, realistas e fantasísticas- e fazer planos. Nessas situações parece que as histórias são compreendidas e aproveitadas e os planos realizados tão bem ou melhor do que quando alguma mulher[x] está tentando convencer-nos a aceitar suas ideias. Às vezes uma ideia para uma ação ou projeto em que todas participamos provoca discordância e portanto, é deixada para trás. Mas em outros casos, nós concordamos e agimos em conjunto. Por conta dessas experiências, eu não penso que abandonar o propósito de fazer com que outras adotem minhas visões precariza a comunidade; pelo contrário, parece-me que esse freio pode fortalecer o senso de partilha de convicções e comprometimentos entre mulheres[x].

Finalmente, eu deveria pontuar que assumindo esses princípios como um método sapatão, não quero dizer que eles implicam que outras mulheres[x] não devam agir como líderes e persuadir outras a aceitar suas convicções e valores. Eu não universalizo os princípios. Meu propósito é anunciar minha própria adoção (talvez temporária) desses princípios, não tentar persuadir outras a adotá-los também.

Questão sobre o tesouro ao final do arco-íris. Assumindo uma voz um tanto repreensiva e definitivamente pragmática, eu digo a mim mesma: Joyce, lá vai você novamente, totalmente sozinha, para algum paraíso sapatão imaginário onde a mulher[x] fala apenas por si, onde amamos as diferenças umas das outras, e nem mesmo a natureza nos limita. Eu entendo que essa tendência vem de seu coração separatista, mas você está desperdiçando suas energias. Espaços de mulheres[x] puros não podem existir – nós somos contaminadas em todos os lugares pelo patriarcado – e, de qualquer forma, nós precisamos lidar com a realidade patriarcal agora, porque ele está realmente aí contra nós.

Resposta. Primeiramente, um ponto semântico: espaços de mulheres[x] puros não podem existir pois quando o fazem, a palavra “mulher[x]” por si não será parte dele, porque apesar da grafia, essa palavra faz referência novamente ao patriarcado; em espaços puros de mulheres[x], o patriarcado é inconcebível. (não procede, entretanto, que “espaços puros de mulheres[x]” – entre aspas – não podem existir).

Quanto à preocupação central da questão, a necessidade de confrontar o patriarcado: a origem da raiva que origina a teorização desse artigo é como uma cobra de duas cabeças, uma atacando o patriarcado diretamente (e algumas vezes com os métodos deste), a outra se atravessando seu caminho pelo patriarcado, fazendo seus próprios espaços, barrando os homens e seus produtos, eliminando o patriarcado de seu caminho. Deste modo, os princípios para a descoberta/criação de espaços de mulheres[x] não impedem de atacar o patriarcado em sua própria arena. De fato, o comprometimento com espaços de mulheres[x] é associado ao de defender e apoiar mulheres que estão sendo prejudicadas pelo patriarcado. Em particular, algumas separatistas são organizadoras regulares ou participantes de ações que envolvem lidar com homens tanto para confronto quanto para coalizão. Além do mais, o desenvolvimento de espaços de mulheres[x] pode por si levar mulheres[x] a decidirem em ação política direta como, por exemplo, no caso de uma acadêmica, despedida por conta de sua pesquisa sobre separatismo, que decide então confrontar a universidade diretamente numa campanha para pegar seu emprego de volta. A resposta central que quero fazer a essa questão aqui, contudo, é a de que é um erro supor que a devoção a espaços de mulheres[x] significa que uma mulher[x] não pode se engajar em ações politicas envolvendo o confronto com homens.

Os métodos discutidos aqui são sapatão porque ser sapatão, como entendido aqui, é uma rejeição/separação do patriarcado, um movimento ao qual esses princípios contribuem. Quem conscientemente e em território político os adota participa, desse modo, no processo sapatão. (São os homens, é claro, quem fazem do sexo uma questão central do lesbianismo, assim como fazem do sexo o centro de toda identidade feminina).

Assim como o que já mencionei indica, meu motivo principal (até onde sei) para desenvolver esses métodos sapatão é um que sempre foi o centro de minha vida: os outros não me controlam. Minha lógica aqui é em parte como aquela do pacifista que responde ao tratamento violento com uma recusa de ser violento de volta. Eu respondo à dominação com um comprometimento a descobrir/criar espaços nos quais a dominação não pode existir. Mas diferente do pacifista, que renuncia a qualquer violência, eu não renuncio a todas as tentativas de persuadir: ao invés disso, às vezes eu uso os métodos do senhor contra sua morada pelo bem das mulheres; em espaços de mulheres[x], contudo, eu renuncio a esses métodos. Os princípios discutidos aqui podem parecer uma renúncia inaceitável do poder para algumas mulheres[x]. Para mim, porém, sinto-os como empoderadores; eles incorporam meus valores mais profundos 2.

Notas da autora

¹Neste artigo eu uso dois conjuntos ortográficos de palavras para fêmeas humanas: o convencional “women” (plural) e “woman” (singular) e o menos familiar “wimmin” (plural) e “womon” (singular). A diferença entre essas duas ortografias é a de que uma mulher woman é definida pelos homens, enquanto que em “womon”, geralmente em interação com outras mulheres wimmin, a mulher define a si própria. Mas a maioria das mulheres às vezes, em alguns casos, se conformam às definições impostas pelos homens e então são (nessas ocasiões e nesses casos) “women; similarmente, grande parte das mulheres às vezes, em alguns casos, agem independentemente dos homens e são portanto (nessas ocasiões e nesses casos) “wimmin”. Consequentemente, os dois conjuntos ortográficos não distinguem dois tipos de fêmeas. Geralmente é um erro tentar adivinhar se uma mulher em particular é uma “womon” ou uma “woman”, embora seja por vezes útil pensar sobre quais ideias e comportamentos em particular são mais harmoniosos com os valores contidos em “wimmin” ou com aqueles em “women”.

²Eu estimo as contribuições ao conteúdo deste artigo feitas por Anne Waters, Claudia Card, Jacquelyn N. Zita, Janneka van der Ros, Jeanette Silveira, Jeffner Allen, Julia Penelope, Kim Hall, María Lugones, Marilyn Frye, Ryn Edwards, and Sarah Lucia Hoagland. Também, o texto de Liz Stanley e Sue Wise em sua obra Breaking Out: Feminis Consciousness and Feminist Research Londres: Routledge e Kegan Paul, 1983 que me deram tanto conteúdo quanto coragem.
Para discussão adicional à essas ideias, veja a versão ampla de “Dyke Methods” em Hypatia vol. 3, no.2 Summer 1988 e os comentários incluídos, “Lesbian Angels and Other Matters”, por Jacquelyn N. Zita juntamente com minha resposta em Hypatia vol. 4, no.3. “Dyke Methods” também aparece no periódico lésbico-feminista de Wisconsin, Hag Rag, em duas partes no vol. 3, nos. 4 e 5.
Depois de apresentar um pouco deste material numa sessão da Midwest Society para a Women in Philosophy no outono de 1986, Sarah Lucia Hoagland me enviou uma cópia de um ensaio anterior por Sally Miller Gearhart no qual Gearhart desenvolve uma ideia estreitamente relacionada a parte do que digo aqui. A tese de Gearhart é a de que “qualquer intenção de persuadir é um ato de violência”. Seu artigo é “The Womanization of Rhetoric”, em Women’s Studies International Quarterly, 1979, Vol. 2, p. 195-2o1

Notas da tradutora

1 O título original deste ensaio é Dyke Methods, o qual traduzi para Métodos Sapatão. Dyke é uma expressão designada às lésbicas, especialmente visíveis, similar a “sapatão” aqui no Brasil. Ele está contido no livro Lesbian Philosophies and Cultures, editado por Jeffner Allen.

2 Criei um esquema de sinais para diferenciar os dois conjuntos ortográficos que a autora utiliza para designar grupos diferentes de mulheres quando alterna woman/women com womon/wimmin:

“mulher[y]/mulheres[y]”: para a definição dada pelo patriarcado e para mulheres que adotam essa categoria women;
“mulher[x]/mulheres[x]” para as que definem a si próprias, independem dos homens e para o caso dos espaços de mulheres wimmin.
“mulher/mulheres” quando ambos os casos acima estão incluídos pela autora.

3 Male-identified woman, em inglês. Essa expressão é usada para descrever mulheres que se identificam com os valores e premissas determinados pelo patriarcado, e que dedicam sua energia afetiva/intelectual/sexual/entre outras a homens.

4 Manking é traduzido como “humanidade”, embora seja equivalente a quando se fala “o Homem” para designar toda a espécie humana. É uma expressão que pretende “incluir” as mulheres, porém apagando sua existência.

5 O termo utilizado pela autora é “pie-in-the-sky”, um termo em inglês que forma rima e, ao pé-da-letra, significa “torta-no-céu”. É uma expressão usada para falar sobre um grande prêmio impossível de se atingir. Adaptei para o conceito imaginário da lenda infantil do tesouro ao final do arco-íris, conhecida no Brasil.

 

A pedidos carreguei uma wiki do texto para que possam ler online. A versão para download está disponível aqui: we.riseup.net/radfem/m%C3%A9todos-sapat...

 
   

eu acho q é mais facil de entender o rolê dos x e y se vc explicar no começo e não no final o que significa. ficou bem confuso. Até pq uma hora eu achava que y era womyn porque é escrito com y rs.