Silvia Federici, Calibã e a bruxa (texto corrido)

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tradução do coletivo Sycorax
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Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva

Silvia Federici

Sumário

Nota de edição e tradução brasileira

Prefácio

Introdução

Capítulo I – O mundo inteiro precisa de uma sacudida. Os movimentos sociais e a crise política na Europa medieval

Introdução
A servidão como relação de classe
A luta pelo comum
Liberdade e divisão social
Os movimentos milenaristas e heréticos
A politização da sexualidade
As mulheres e a heresia
Lutas urbanas
A peste negra e a crise do trabalho
A política sexual, o surgimento do Estado e a contrarrevolução

Capítulo II – A acumulação de trabalho e a degradação das mulheres. Construindo a “diferença” na “transição para o capitalismo”

Introdução
A acumulação capitalista e a acumulação de trabalho
A privatização da terra na Europa, produção de escassez e separação entre produção e reprodução
A Revolução dos Preços e a pauperização da classe trabalhadora europeia
A intervenção estatal na reprodução do trabalho: a assistência aos pobres e a criminalização dos trabalhadores
Diminuição da população, crise econômica e disciplinamento das mulheres
A desvalorização do trabalho feminino
As mulheres como novos bens comuns e como substituto das terras perdidas
O patriarcado do salário
A domesticação das mulheres e a redefinição da feminilidade e da masculinidade: as mulheres como os selvagens da Europa
A colonização, a globalização e as mulheres
Sexo, raça e classe nas colônias
O capitalismo e a divisão sexual do trabalho

Capítulo III – O grande Calibã

A luta contra o corpo rebelde

Capítulo IV – A grande caça às bruxas na Europa

Introdução
As épocas de queima de bruxas e a iniciativa estatal
Crenças diabólicas e mudanças no modo de produção
Caça às bruxas e sublevação de classes
A caça às bruxas, a caça de mulheres e a acumulação do trabalho
A caça às bruxas e a supremacia masculina: a domesticação das mulheres
A caça às bruxas e a racionalização capitalista da sexualidade
A caça às bruxas e o Novo Mundo
A bruxa, a curandeira e o nascimento da ciência moderna

Capítulo V – Colonização e cristianização. Calibã e as bruxas no Novo Mundo

Introdução
O nascimento dos canibais
Exploração, resistência e demonização
Mulheres e bruxas na América
As bruxas europeias e os “índios”
A caça de bruxas na América

Bibliografia

Índice de imagens

Nota de edição e tradução brasileira

Antes de mais nada, agradecemos a generosidade e confiança de Silvia Federici, que respondeu afetiva e afirmativamente à nossa consulta sobre a possibilidade de editar o livro no Brasil. O diálogo com a editora Traficantes de Sueños que, através de Beatriz García, nos facilitou o contato com a autora, também foi fundamental.

A tradução para o português de Calibã e a bruxa foi realizada a partir do original escrito em inglês por Silvia Federici em 2004, tomando como referência adicional a tradução para o espanhol realizada por Verónica Hendel e Leopoldo Sebastián Touza para a editora Traficantes de Sueños.

Na medida do possível, foram oferecidas referências das obras citadas por Silvia Federici em sua versão na língua portuguesa. Quando encontramos as obras citadas em português, indicamos ao final de cada referência bibliográfica. As traduções das citações foram nossas, exceto quando pudemos nos referir a citações já reconhecidas, creditadas nas notas de tradução.

Quanto às ilustrações, foram reproduzidas da edição original.

O livro foi editado também no México, Argentina e recentemente no Equador e na França. Essas outras publicações revelam a importância da sua repercussão e estão vinculadas a editoras e projetos que insistem na necessidade de ter ferramentas para o ciclo de lutas em curso, formando assim uma espécie de círculo conspiratório, que sem dúvida abre uma série de novas possibilidades.

Aqui, pretendemos não somente justificar e comentar a tradução, mas também apresentar outras formas de mediar e implicar a publicação, tanto no movimento feminista quanto nas discussões realizadas pelas esquerdas. Esta obra se projeta, assim, com bastante pertinência após as ondas de levantes em todo o mundo. Vem em um interessante momento para o movimento feminista na América Latina, no qual a contribuição dos afrodescendentes e indígenas recolocou conceitos e afirmou posicionamentos que provocaram mudanças no movimento feminista, além de suscitar uma certa inquietude sobre as bases e fontes do conhecimento no Ocidente.

Para o coletivo sycorax, a importância de realizar a edição deste livro reside na possibilidade de difundir amplamente a obra no Brasil, e também contribui para ampliar a compreensão das consequências do processo de acumulação primitiva do capital nas Américas, da falta de reconhecimento de direitos de alguns grupos oprimidos e na perda de direitos comuns, arduamente conquistados, a técnicas de controle social e extermínio, como é o caso da caça às bruxas. Assim, convidamos diferentes coletivos para debater o tema da atual caça às bruxas no Brasil, as estratégias que são relançadas pelo capitalismo a cada grande crise e também as possibilidades de resistência. Para além de pensar o tema apenas no caso da atuação da Inquisição no Brasil e da caça às bruxas no período colonial, entendemos que esse fenômeno está presente nas mulheres vítimas da violência do Estado, o que se explicita no encarceramento massivo de mulheres negras, na laqueadura forçada de mulheres negras no Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro, nos corpos das vítimas de violência policial nas periferias do Brasil, entre tantos paralelos essenciais.

A publicação em português é uma iniciativa independente e coletiva, ligada ainda a diversas iniciativas de ampliar a circulação e compreensão de produções feministas críticas e interseccionais a partir da proposição de debates. Nesse sentido, a gestação do projeto em meio à equipe da Revista Geni e os caminhos específicos que o coletivo Sycórax trilha contam com a oportunidade única de inaugurar a ala das traduções de livros completos com essa obra de fôlego de Silvia Federici.

Encerramos recomendando a leitura de Revolução em punto cero. Trabajo doméstico, reproducción y luchas feministas Revolução no ponto zero. Trabalho doméstico, reprodução e lutas feministas, uma compilação de textos escritos por Federici que nos ofereceu mais um entendimento da forma de narrar e articular as fontes históricas e referências que fundamentam a argumentação da autora.

Acrescentamos algumas notas, e as identificamos da seguinte maneira: N.T.E. e N.E.E para, respectivamente, nota de tradução do espanhol e nota de edição em espanhol, e N.T.P. para nota da tradução em português. Notas sem identificação são as notas da autora.

Prefácio

Calibã e a bruxa apresenta as principais linhas de um projeto de pesquisa sobre as mulheres na “transição” do feudalismo para o capitalismo que iniciei em meados dos anos 1970, em colaboração com uma feminista italiana, Leopoldina Fortunati. Seus primeiros resultados apareceram em um livro que publicamos na Itália em 1984: Il Grande Calibano. Storia del corpo social ribelle nella prima fase del capitale O grande Calibã: história do corpo social rebelde na primeira fase do capital (Milão, Franco Agneli).

Meu interesse nessa pesquisa foi motivado, originalmente, pelos debates que acompanharam o desenvolvimento do movimento feminista nos Estados Unidos em relação às raízes da “opressão” das mulheres e das estratégias políticas que o próprio movimento deveria adotar na luta por libertação. Naquele momento, as principais perspectivas teóricas e políticas a partir das quais se analisava a realidade da discriminação sexual vinham sendo propostas, principalmente, por dois ramos do movimento de mulheres: as feministas radicais e as feministas socialistas. Do meu ponto de vista, no entanto, nenhum deles oferecia uma explicação satisfatória sobre as raízes da exploração social e econômica das mulheres. Na época, eu questionava as feministas radicais pela sua tendência a explicar a discriminação sexual e o domínio patriarcal a partir de estruturas trans-históricas, que presumivelmente operavam com independência das relações de produção e de classe. As feministas socialistas, por outro lado, reconheciam que a história das mulheres não podia ser separada da história dos sistemas específicos de exploração e, na sua análise, davam prioridade às mulheres como trabalhadoras na sociedade capitalista. Porém, o limite de seu ponto de vista (segundo o que eu entendia naquele momento) estava na incapacidade de reconhecer a esfera da reprodução como fonte de criação de valor e exploração, o que as levava a localizar as raízes da diferença de poder entre mulheres e homens na exclusão das mulheres do desenvolvimento capitalista – uma posição que, mais uma vez, nos obrigava a depender de esquemas culturais para dar conta da sobrevivência do sexismo dentro do universo das relações capitalistas.

Foi nesse contexto que a ideia de esboçar a história das mulheres na transição do feudalismo para o capitalismo tomou forma. A tese que inspirou essa pesquisa foi articulada por Mariarosa Dalla Costa e Selma James, bem como por outras ativistas do Wages for Housework Movement Movimento por um Salário para o Trabalho Doméstico, em uma série de textos muito controversos durante os anos 1960, mas que terminaram por reconfigurar o discurso sobre as mulheres, a reprodução e o capitalismo. Os mais influentes foram The Power of Women and the Subversion of the Community (1971) O poder das mulheres e a subversão da comunidade, de Mariarosa Dalla Costa, e Sex, Race and Class (1975) Sexo, raça e classe, de Selma James.

Contra a ortodoxia marxista, que explicava a “opressão” das mulheres e a subordinação aos homens como um resíduo das relações feudais, Dalla Costa e James defendiam que a exploração das mulheres havia tido uma função central no processo de acumulação capitalista, na medida em que as mulheres foram as produtoras e reprodutoras da mercadoria capitalista mais essencial: a força de trabalho. Como dizia Dalla Costa, o trabalho não remunerado das mulheres no lar foi o pilar sobre o qual se construiu a exploração dos trabalhadores assalariados, a “escravidão do salário”, assim como foi o segredo de sua produtividade (1972, p. 31). Desse modo, a assimetria de poder entre mulheres e homens na sociedade capitalista não podia ser atribuída à irrelevância do trabalho doméstico para a acumulação capitalista – o que vinha sendo desmentido pelas regras estritas que governavam as vidas das mulheres – nem à sobrevivência de esquemas culturais atemporais. Pelo contrário, devia ser interpretada como o efeito de um sistema social de produção que não reconhece a produção e a reprodução do trabalho como uma fonte de acumulação do capital e, por outro lado, as mistifica como um recurso natural ou um serviço pessoal, enquanto tira proveito da condição não assalariada do trabalho envolvido.

Ao apontarem a divisão sexual do trabalho e o trabalho não remunerado realizado pelas mulheres como sendo a raiz da exploração feminina na sociedade capitalista, Dalla Costa e James demonstraram que era possível transcender a dicotomia entre o patriarcado e a classe, e deram ao patriarcado um conteúdo histórico específico. Também abriram o caminho para uma reinterpretação da história do capitalismo e da luta de classes por um ponto de vista feminista.

Foi com esse espírito que Leopoldina Fortunati e eu começamos a estudar aquilo que, apenas eufemisticamente, pode ser descrito como a “transição para o capitalismo”, e a procurar por uma história que não nos fora ensinada na escola, mas que se mostrou decisiva para nossa educação. Essa história não apenas oferecia uma explicação teórica da gênese do trabalho doméstico em seus principais componentes estruturais (a separação entre produção e reprodução, o uso especificamente capitalista do salário para comandar o trabalho dos não assalariados e a desvalorização da posição social das mulheres com o advento do capitalismo); mas também fornecia uma genealogia dos conceitos modernos de feminilidade e masculinidade que questionava o pressuposto pós-moderno da existência, na “cultura ocidental”, de uma predisposição quase ontológica para enfocar o gênero a partir de oposições binárias. Descobrimos que as hierarquias sexuais quase sempre estão a serviço de um projeto de dominação que só pode se sustentar por meio da divisão, constantemente renovada, daqueles a quem se procura governar.

O livro que resultou dessa investigação, O grande Calibã: história do corpo social rebelde na primeira fase do capital (1984), foi uma tentativa de repensar a análise da acumulação primitiva de Marx a partir de um ponto de vista feminista. Porém, nesse processo, as categorias marxianas amplamente aceitas se demonstraram inadequadas. Dentre as “baixas”, podemos mencionar a identificação marxiana do capitalismo com o advento do trabalhador “livre”, que contribui para a ocultação e naturalização da esfera da reprodução. O grande Calibã também fazia uma crítica à teoria do corpo de Michel Foucault. Como destacamos, a análise de Foucault sobre as técnicas de poder e as disciplinas a que o corpo se sujeitou ignora o processo de reprodução, funde as histórias feminina e masculina num todo indiferenciado e se desinteressa pelo “disciplinamento” das mulheres, a tal ponto que nunca menciona um dos ataques mais monstruosos perpetrado na era moderna contra o corpo: a caça às bruxas.

A tese principal de O grande Calibã sustentava que, para poder compreender a história das mulheres na transição do feudalismo para o capitalismo, devemos analisar as mudanças que o capitalismo introduziu no processo de reprodução social e, especialmente, da reprodução da força de trabalho. Esse livro examina, assim, a reorganização do trabalho doméstico, da vida familiar, da criação dos filhos, da sexualidade, das relações entre homens e mulheres e da relação entre produção e reprodução na Europa dos séculos XVI e XVII. Essa análise é reproduzida aqui em Calibã e a bruxa; e, no entanto, o alcance do presente volume difere do de O grande Calibã na medida em que responde a um contexto social diferente e a um conhecimento cada vez maior sobre a história das mulheres.

Pouco tempo depois da publicação de O grande Calibã, saí dos Estados Unidos e aceitei um trabalho como professora na Nigéria, onde permaneci durante quase três anos. Antes de ir embora, guardei meus papéis num sótão, acreditando que não precisaria deles por um tempo. Porém, as circunstâncias de minha temporada na Nigéria não me permitiram esquecê-los. Os anos compreendidos entre 1984 e 1986 constituíram um ponto de inflexão para a Nigéria, bem como para a maioria dos países africanos. Foram os anos em que, em resposta à crise da dívida, o governo nigeriano entrou em negociações com o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial; negociações que finalmente implicaram na adoção de um programa de ajuste estrutural, a receita universal do Banco Mundial para a recuperação econômica em todo o planeta.

O propósito declarado do programa consistia em fazer com que a Nigéria chegasse a ser competitiva no mercado internacional. Mas logo se percebeu que isso pressupunha um novo ciclo de acumulação primitiva e uma racionalização da reprodução social orientada para destruir os últimos vestígios de propriedade comunitária e de relações comunitárias, impondo desse modo formas mais intensas de exploração. Foi assim que assisti, diante de meus olhos, ao desenvolvimento de processos muito similares aos que havia estudado na preparação de O grande Calibã. Entre eles, o ataque às terras comunitárias e uma intervenção decisiva do Estado (instigada pelo Banco Mundial) na reprodução da força de trabalho, com o objetivo de regular as taxas de procriação e, no caso nigeriano, reduzir o tamanho de uma população, que era considerada muito exigente e indisciplinada do ponto de vista de sua inserção proposta na economia global. Junto a essas políticas, chamadas adequadamente de “Guerra contra a Indisciplina”, também testemunhei a instigação de uma campanha misógina que denunciava a vaidade e as excessivas demandas das mulheres e o desenvolvimento de um debate acalorado, semelhante, em muitos sentidos, às querelles des femmes do século XVII. Um debate que tocava em todos os aspectos da reprodução da força de trabalho: a família (opondo poligamia e monogamia; família nuclear e família estendida), a criação das crianças, o trabalho das mulheres, as identidades masculinas e femininas e as relações entre homens e mulheres.

Nesse contexto, meu trabalho sobre a transição adquiriu um novo sentido. Na Nigéria, compreendi que a luta contra o ajuste estrutural fazia parte de uma grande luta — contra a privatização da terra e o cercamento, não só das terras comunitárias, mas também de relações sociais — que data das origens do capitalismo na Europa e na América no século XVI. Também compreendi como era limitada a vitória que a disciplina do trabalho capitalista havia obtido neste planeta, e quanta gente ainda via sua vida de uma forma radicalmente antagônica aos requisitos da produção capitalista. Para os fomentadores do desenvolvimento, as agências multinacionais e os investidores estrangeiros, esse era e continua sendo o problema de lugares como a Nigéria. Mas para mim foi uma grande fonte de força, na medida em que demonstrava que, em esfera mundial, ainda existem forças extraordinárias que enfrentam a imposição de uma forma de vida concebida exclusivamente em termos capitalistas. A força que obtive também esteve ligada ao meu encontro com a Women in Nigeria Mulheres na Nigéria, a primeira organização feminista do país, que me permitiu entender melhor as lutas que as mulheres nigerianas travaram para defender seus recursos e rechaçar o novo modelo patriarcal que lhes era imposto, agora promovido pelo Banco Mundial.

No final de 1986, a crise da dívida alcançou as instituições acadêmicas e, como já não podia me sustentar, abandonei a Nigéria em corpo, embora não em espírito. A preocupação com os ataques efetuados contra o povo nigeriano nunca me abandonou. Desse modo, o desejo de voltar a estudar “a transição ao capitalismo” me acompanhou desde meu retorno. A princípio, havia lido os processos nigerianos por um prisma da Europa do século XVI. Nos Estados Unidos, foi o proletariado nigeriano que me fez retornar às lutas pelo comum e contra a submissão capitalista das mulheres, dentro e fora da Europa. Ao regressar, também comecei a lecionar num programa interdisciplinar em que devia fazer frente a um tipo distinto de cercamento: o cercamento do saber, isto é, a crescente perda, entre as novas gerações, do sentido histórico de nosso passado comum. É por isso que em Calibã e a bruxa reconstruo as lutas antifeudais da Idade Média e as lutas com as quais o proletariado europeu resistiu à chegada do capitalismo. Meu objetivo não é apenas colocar à disposição dos não especialistas as provas em que se sustentam as minhas análises, mas reviver entre as gerações mais jovens a memória de uma longa história de resistência que hoje corre o risco de ser apagada. Preservar essa memória é crucial se quisermos encontrar uma alternativa ao capitalismo. Pois essa possibilidade dependerá de nossa capacidade de ouvir as vozes daqueles que percorreram caminhos semelhantes.

Introdução

Desde Marx, estudar a gênese do capitalismo é um passo obrigatório para ativistas e acadêmicos convencidos de que a primeira tarefa da agenda da humanidade é a construção de uma alternativa à sociedade capitalista. Não surpreende que cada novo movimento revolucionário tenha retornado à “transição para o capitalismo”, trazendo ao tema as perspectivas de novos sujeitos sociais e descobrindo novos terrenos de exploração e resistência.1 Embora este livro tenha sido concebido dentro dessa tradição, há duas considerações em particular que também o motivaram.

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Gravura de bruxas conjurando um aguaceiro. In En Ulrich Molitor, De Lamiies et Pythonicis Mulieribus (Sobre mujeres hechiceras y adivinas) (1489).

Em primeiro lugar, havia um desejo de repensar o desenvolvimento do capitalismo a partir de um ponto de vista feminista, ao mesmo tempo evitando as limitações de uma “história das mulheres” separada do setor masculino da classe trabalhadora. O título, Calibã e a Bruxa, inspirado na peça A tempestade, de Shakespeare, reflete esse esforço. Na minha interpretação, no entanto, Calibã não apenas representa o rebelde anticolonial cuja luta ressoa na literatura caribenha contemporânea, mas também é um símbolo para o proletariado mundial e, mais especificamente, para o corpo proletário como terreno e instrumento de resistência à lógica do capitalismo. Mais importante ainda, a figura da bruxa, que em A tempestade fica relegada a segundo plano, neste livro situa-se no centro da cena, enquanto encarnação de um mundo de sujeitos femininos que o capitalismo precisou destruir: a herege, a curandeira, a esposa desobediente, a mulher que ousa viver só, a mulher obeah que envenenava a comida do senhor e incitava os escravos a se rebelarem.

A segunda motivação deste livro foi, com a nova expansão das relações capitalistas, o retorno em escala mundial de um conjunto de fenômenos que normalmente vinham associados à gênese do capitalismo. Entre eles se encontra uma nova série de cercamentos que expropriou milhões de produtores agrários de suas terras, além da pauperização massiva e da criminalização dos trabalhadores por meio de políticas de encarceramento que nos remetem ao “Grande Confinamento” descrito por Michel Foucault em seu estudo sobre a história da loucura. Também fomos testemunhas do desenvolvimento mundial de novos movimentos de diáspora acompanhados pela perseguição dos trabalhadores migrantes. Algo que nos remete, mais uma vez mais, às Leis Sangrentas introduzidas na Europa dos séculos XVI e XVII, com o objetivo de colocar os “vagabundos” à disposição da exploração local. Ainda mais importante para este livro foi a intensificação da violência contra as mulheres, inclusive o retorno da caça às bruxas em alguns países (como, por exemplo, África do Sul e Brasil).

Por que depois de quinhentos anos de domínio do capital, no início do terceiro milênio, os trabalhadores em massa ainda são definidos como pobres, bruxas e bandoleiros? De que maneira se relacionam a expropriação e a pauperização com o permanente ataque contra as mulheres? O que podemos aprender sobre o desdobramento capitalista, passado e presente, quando examinado de uma perspectiva feminista?

Com essas perguntas em mente, volto a analisar a “transição” do feudalismo para o capitalismo a partir do ponto de vista das mulheres, do corpo e da acumulação primitiva. Cada um desses conceitos faz referência a um marco conceitual que serve como ponto de referência para este trabalho: o feminista, o foucaultiano e o marxista. Por isso, vou começar esta introdução com algumas observações sobre a relação entre minha própria perspectiva de análise e cada um desses marcos de referência.

A acumulação primitiva é o termo usado por Marx no tomo I de O capital com a finalidade de caracterizar o processo político no qual se sustenta o desenvolvimento das relações capitalistas. Trata-se de um termo útil na medida em que proporciona um denominador comum que permite conceituar as mudanças produzidas pelo advento do capitalismo nas relações econômicas e sociais. Sua importância está, especialmente, no fato de Marx tratar a acumulação primitiva como um processo fundacional, o que revela as condições estruturais que tornaram possível a sociedade capitalista. Isso nos permite ler o passado como algo que sobrevive no presente, uma consideração essencial para o uso do termo neste trabalho.

Porém, minha análise se afasta da de Marx por duas vias distintas. Enquanto Marx examina a acumulação primitiva do ponto de vista do proletariado assalariado de sexo masculino e do desenvolvimento da produção de mercadorias, eu a examino do ponto de vista das mudanças que introduz na posição social das mulheres na produção da força de trabalho.2 Daí que a minha descrição da acumulação primitiva inclui uma série de fenômenos que estão ausentes em Marx e que, no entanto, são extremamente importantes para a acumulação capitalista. Entre esses fenômenos estão: i) o desenvolvimento de uma nova divisão sexual do trabalho; ii) a construção de uma nova ordem patriarcal, baseada na exclusão das mulheres do trabalho assalariado e em sua subordinação aos homens; iii) a mecanização do corpo proletário e sua transformação, no caso das mulheres, em uma máquina de produção de novos trabalhadores. E, o que é mais importante, coloquei no centro da análise da acumulação primitiva a caça às bruxas dos séculos XVI e XVII; sustento aqui que a perseguição às bruxas, tanto na Europa quanto no Novo Mundo, foi tão importante para o desenvolvimento do capitalismo quanto a colonização e a expropriação do campesinato europeu de suas terras.

Essa análise se diferencia também da marxiana em sua avaliação do legado e da função da acumulação primitiva. Embora Marx fosse profundamente consciente do caráter criminoso do desenvolvimento capitalista – sua história, declarou, “está escrita nos anais da humanidade com letras de fogo e sangue” –, não cabe dúvida de que considerava isso como um passo necessário no processo de libertação humana. Marx acreditava que o desenvolvimento capitalista acabava com a propriedade em pequena escala e incrementava (até um grau não alcançado por nenhum outro sistema econômico) a capacidade produtiva do trabalho, criando as condições materiais para liberar a humanidade da escassez e da necessidade. Também supunha que a violência que havia dominado as primeiras fases da expansão capitalista retrocederia com a maturação das relações capitalistas; a partir desse momento, a exploração e o disciplinamento do trabalho seriam alcançados fundamentalmente por meio do funcionamento das leis econômicas (Marx, 1987 1909, t. I). Nisso, estava profundamente equivocado. Cada fase da globalização capitalista, incluindo a atual, vem acompanhada de um retorno aos aspectos mais violentos da acumulação primitiva, o que mostra que a contínua expulsão dos camponeses da terra, a guerra e o saque em escala global e a degradação das mulheres são condições necessárias para a existência do capitalismo em qualquer época.

Devo acrescentar que Marx nunca poderia ter suposto que o capitalismo preparava o caminho para a libertação humana se tivesse olhado sua história do ponto de vista das mulheres. Essa história ensina que, mesmo quando os homens alcançaram certo grau de liberdade formal, as mulheres sempre foram tratadas como seres socialmente inferiores, exploradas de modo similar às formas de escravidão. “Mulheres”, então, no contexto deste livro, significa não somente uma história oculta que necessita se fazer visível, mas também uma forma particular de exploração e, portanto, uma perspectiva especial a partir da qual se deve reconsiderar a história das relações capitalistas.

Esse projeto não é novo. Desde o começo do movimento feminista as mulheres se voltaram vez ou outra para a transição para o capitalismo, ainda que nem sempre o tenham reconhecido. Durante certo tempo, o marco principal que configurava a história das mulheres foi de caráter cronológico. A designação mais comum que as historiadoras feministas utilizaram para descrever o período de transição foi Early Modern Times (princípio da Idade Moderna) – que, dependendo da autora, podia designar o século XIII ou XVII.

Nos anos 1980, no entanto, apareceu uma série de trabalhos que assumiram uma perspectiva mais crítica. Entre eles, estavam os ensaios de Joan Kelly sobre o Renascimento e as Querelles des Femmes Querelas das Mulheres; The Death of Nature A morte da natureza (1981), de Carolyn Merchant; L’Arcano della Riproduzione (1981) O arcano da reprodução, de Leopoldina Fortunati; Working Women in Renaissance Germany (1986) Mulheres trabalhadoras no Renascimento alemão e Patriarchy and Accumulation on a World Scale (1986) Patriarcado e acumulação em escala global, de Maria Mies. A esses trabalhos, devemos acrescentar uma grande quantidade de monografias que, ao longo das últimas duas décadas, reconstruíram a presença das mulheres nas economias rural e urbana da Europa medieval, assim como a vasta literatura e o trabalho de documentação que se realizou sobre a caça às bruxas e as vidas das mulheres na América pré-colonial e nas ilhas do Caribe. Entre estas últimas, quero recordar especialmente The Moon, The Sun and the Witches (1987) A lua, o sol e as bruxas, de Irene Silverblatt, o primeiro informe sobre a caça às bruxas no Peru colonial, e Natural Rebels: A Social History of Barbados (1995) Rebeldes naturais: uma história social de Barbados, de Hilary Beckles, que, junto com Slave Women in Caribbean Society: 1650-1838 (1990) Mulheres escravas na sociedade caribenha: 1650-1838, de Barbara Bush, se encontra entre os textos mais importantes sobre a história das mulheres escravizadas nas plantações do Caribe.

Essa produção acadêmica confirmou que a reconstrução da história das mulheres, ou o olhar sobre a história por um ponto de vista feminino, implica uma redefinição fundamental das categorias históricas aceitas e na visibilização das estruturas ocultas de dominação e exploração. Desse modo, o ensaio de Joan Kelly, Did Women Have a Renaissance? (1984) As mulheres tiveram um Renascimento?, debilitou a periodização histórica clássica que celebra o Renascimento como um exemplo excepcional de façanha cultural. The Death of Nature, de Carolyn Merchant, questionou a crença no caráter socialmente progressista da revolução científica, ao defender que o advento do racionalismo científico produziu um deslocamento cultural de um paradigma orgânico para um mecânico que legitimou a exploração das mulheres e da natureza.

De especial importância foi Patriarchy and Accumulation on a World Scale (1986), de Maria Mies, um trabalho já clássico que reexamina a acumulação capitalista de um ponto de vista não eurocêntrico e que, ao conectar o destino das mulheres na Europa ao dos súditos coloniais desse continente, proporciona uma nova compreensão do lugar das mulheres no capitalismo e no processo de globalização.

Calibã e a bruxa se baseia nesses trabalhos e nos estudos contemporâneos contidos em O grande Calibã (analisado no prefácio). Porém, seu alcance histórico é mais amplo, tendo em vista que o livro conecta o desenvolvimento do capitalismo com a crise de reprodução e as lutas sociais do período feudal tardio, por um lado, e com o que Marx define como a “formação do proletariado”, por outro. Nesse processo, o livro aborda uma série de questões históricas e metodológicas que estiveram no centro do debate sobre a história das mulheres e da teoria feminista.

A questão histórica mais importante que este livro aborda é como explicar a execução de centenas de milhares de “bruxas” no começo da era moderna e por que o surgimento do capitalismo coincide com essa guerra contra as mulheres. As acadêmicas feministas desenvolveram um esquema que lança bastante luz sobre a questão. Existe um acordo generalizado sobre o fato de que a caça às bruxas buscou destruir o controle que as mulheres haviam exercido sobre sua função reprodutiva e serviu para preparar o terreno para o desenvolvimento de um regime patriarcal mais opressor. Defende-se também que a caça às bruxas tinha raízes nas transformações sociais que acompanharam o surgimento do capitalismo. No entanto, as circunstâncias históricas específicas em que a perseguição de bruxas se desenvolveu e as razões pelas quais o surgimento do capitalismo exigiu um ataque genocida contra as mulheres ainda não foram investigadas. Essa é a tarefa que empreendo em Calibã e a bruxa, começando pela análise da caça às bruxas no contexto da crise demográfica e econômica dos séculos XVI e XVII e das políticas de terra e trabalho da era mercantilista. Meu trabalho aqui é apenas um esboço da pesquisa que seria necessária para esclarecer as conexões mencionadas e, especialmente, a relação entre a caça às bruxas e o desenvolvimento contemporâneo de uma nova divisão sexual do trabalho que confina as mulheres ao trabalho reprodutivo. No entanto, convém demonstrar que a perseguição a bruxas (assim como o tráfico de escravos e os cercamentos) constituiu um aspecto central da acumulação e da formação do proletariado moderno, tanto na Europa como no Novo Mundo.

Há outros caminhos através dos quais Calibã e a bruxa dialoga com a história das mulheres e a teoria feminista. Em primeiro lugar, confirma que a transição para o capitalismo é uma questão primordial para a teoria feminista, já que a redefinição das tarefas produtivas e reprodutivas e as relações homem-mulher nesse período, ambas realizadas com a máxima violência e intervenção estatal, não deixam dúvidas quanto ao caráter construído dos papéis sexuais na sociedade capitalista. A análise que aqui se propõe também nos permite transcender a dicotomia entre gênero e classe. Se é verdade que na sociedade capitalista a identidade sexual se transformou no suporte específico das funções do trabalho, o gênero não deveria ser tratado como uma realidade puramente cultural, mas como uma especificação das relações de classe. Desse ponto de vista, os debates que tiveram lugar entre as feministas pós-modernas acerca da necessidade de desfazer-se do termo “mulher” como categoria de análise e definir o feminismo em termos puramente oposicional foram mal orientados. Para reformular o o argumento que apresentei: se na sociedade capitalista a “feminilidade” foi construída como uma função-trabalho que oculta a produção da força de trabalho sob o disfarce de um destino biológico, a história das mulheres é a história das classes, e a pergunta que devemos nos fazer é se foi transcendida a divisão sexual do trabalho que produziu esse conceito em particular. Se a resposta for negativa (tal como ocorre quando consideramos a organização atual do trabalho reprodutivo), então “mulher” é uma categoria de análise legítima, e as atividades associadas à reprodução seguem sendo um terreno de luta fundamental para as mulheres – como eram para o movimento feminista dos anos 1970 – e um nexo de união com a história das bruxas.

Outra pergunta que Calibã e a bruxa analisa é aquela proposta pelas perspectivas opostas que oferecem as análises feministas e foucaultianas sobre o corpo, tal como são aplicadas na interpretação da história do desenvolvimento capitalista. Desde o início do movimento de mulheres, as ativistas e teóricas feministas viram o conceito de “corpo” como uma chave para compreender as raízes do domínio masculino e da construção da identidade social feminina. Para além das diferenças ideológicas, chegaram à conclusão de que a categorização hierárquica das faculdades humanas e a identificação das mulheres com uma concepção degradada da realidade corporal foi historicamente instrumental para a consolidação do poder patriarcal e para a exploração masculina do trabalho feminino. Desse modo, a análise da sexualidade, da procriação e da maternidade foi colocada no centro da teoria feminista e da história das mulheres. Em particular, as feministas colocaram em evidência e denunciaram as estratégias e a violência por meio das quais os sistemas de exploração, centrados nos homens, tentaram disciplinar e apropriar-se do corpo feminino, destacando que os corpos das mulheres constituíram os principais objetivos – lugares privilegiados – para a implementação das técnicas de poder e das relações de poder. De fato, a enorme quantidade de estudos feministas que foram produzidos desde princípios dos anos 1970 a respeito do controle exercido sobre a função reprodutiva das mulheres, os efeitos dos estupros e dos maus-tratos e a imposição da beleza como uma condição de aceitação social, constituem uma enorme contribuição ao discurso sobre o corpo em nossos tempos e assinalam a errônea percepção, tão frequente entre os acadêmicos, que atribui seu descobrimento a Michel Foucault.

Partindo de uma análise da “política do corpo”, as feministas não somente revolucionaram o discurso filosófico e político, mas também passaram a revalorizar o corpo. Esse foi um passo necessário tanto para confrontar a negatividade que acarreta a identificação de feminilidade com corporalidade, como para criar uma visão mais holística do que significa ser um ser humano.3

“Jovens, diria que […] vocês nunca realizaram um descobrimento de certa importância. Nunca fizeram tremer um império ou conduziram um exército à batalha. As obras de Shakespeare não são suas […] Que desculpa vocês têm? Vocês podem muito bem dizer, apontando para as ruas e praças e para as selvas do mundo infestadas de habitantes negros e brancos e de cor de café […] que estivemos fazendo outro trabalho. Sem ele, esses mares não seriam navegados e essas terras férteis seriam um deserto. Temos erguido e criado e ensinado, talvez até a idade de seis ou sete, aos mil seiscentos e vinte e três milhões de seres humanos que, de acordo com as estatísticas, existem, algo que mesmo quando algumas tenham tido ajuda, requer tempo” (Woolf, 1929, p. 112).

Essa capacidade de subverter a imagem degradada da feminilidade, que foi construída por meio da identificação das mulheres com a natureza, a matéria, o corporal, é a potência do “discurso feminista sobre o corpo” que trata de desenterrar o que o controle masculino de nossa realidade corporal sufocou. No entanto, é uma ilusão conceber a libertação feminina como um “retorno ao corpo”. Se o corpo feminino – como discuto neste trabalho – é um significante para o campo de atividades reprodutivas que foi apropriado pelos homens e pelo Estado e convertido num instrumento de produção de força de trabalho (com tudo aquilo que isso pressupõe em termos de regras e regulações sexuais, cânones estéticos e castigos), então o corpo é o lugar de uma alienação fundamental que só pode ser superada com o fim da disciplina-trabalho que o define.
Essa tese se verifica também para os homens. A descrição de um trabalhador que se sente à vontade apenas em suas funções corporais feita por Marx já intuía tal fato. Marx, porém, nunca expôs a magnitude do ataque a que o corpo masculino estava submetido com o advento do capitalismo. Ironicamente, assim como Michel Foucault, Marx enfatizou também a produtividade do trabalho a que os trabalhadores estão subordinados – uma produtividade que, para ele, é a condição para o futuro domínio da sociedade pelos trabalhadores. Marx não observou que o desenvolvimento das potências industriais dos trabalhadores se deu à custa do subdesenvolvimento de seus poderes enquanto indivíduos sociais, ainda que reconhecesse que os trabalhadores na sociedade capitalista estão tão alienados de seu trabalho, de suas relações com os outros e dos produtos de seu trabalho como se estivessem dominados por estes, parecendo tratar-se de uma força alheia. Essa valorização ganhou várias formas, desde a busca de formas de saber não dualistas até a tentativa (com feministas que veem a “diferença” sexual como um valor positivo) de desenvolver um novo tipo de linguagem e de “repensar as raízes corporais da inteligência humana”.4 Tal como destacou Rosi Braidotti, o corpo retomado não há de entender-se nunca como algo biologicamente dado. No entanto, slogans como “recuperar a posse do corpo” ou “fazer o corpo falar”5 foram criticados por teóricos pós-estruturalistas e foucaultianos que rejeitam como ilusório qualquer chamamento à liberação dos instintos. De sua parte, as feministas acusaram o discurso de Foucault sobre a sexualidade de omitir a diferenciação sexual, ao mesmo tempo que se apropriava de muitos saberes desenvolvidos pelo movimento feminista. Essa crítica é bastante acertada. Além disso, Foucault fica tão intrigado pelo caráter “produtivo” das técnicas de poder de que o corpo foi investido, que sua análise praticamente descarta qualquer crítica das relações de poder. O caráter quase defensivo da teoria de Foucault sobre o corpo se vê acentuado pelo fato de que considera o corpo como algo constituído puramente por práticas discursivas e de que está mais interessado em descrever como se desdobra o poder do que em identificar sua fonte. Assim, o Poder que produz o corpo aparece como uma entidade autossuficiente, metafísica, ubíqua, desconectada das relações sociais e econômicas, e tão misteriosa em suas variações quanto uma força motriz divina.

Uma análise da acumulação primitiva e da transição para o capitalismo é capaz de nos ajudar a ir além dessas alternativas? Acredito que sim. No que diz respeito ao enfoque feminista, nosso primeiro passo deve ser documentar as condições sociais e históricas nas quais o corpo se tornou elemento central e esfera de atividade definitiva para a constituição da feminilidade. Nessa linha, Calibã e a bruxa mostra que, na sociedade capitalista, o corpo é para as mulheres o que a fábrica é para os homens trabalhadores assalariados: o principal terreno de sua exploração e resistência, na mesma medida em que o corpo feminino foi apropriado pelo Estado e pelos homens, forçado a funcionar como um meio para a reprodução e a acumulação de trabalho. Neste sentido, é bem merecida a importância que adquiriu o corpo, em todos os seus aspectos – maternidade, parto, sexualidade –, tanto dentro da teoria feminista quanto na história das mulheres. Calibã e a bruxa também corrobora o saber feminista que se nega a identificar o corpo com a esfera do privado e, nessa linha, fala de uma “política do corpo”. Além disso, explica como para as mulheres o corpo pode ser tanto uma fonte de identidade quanto uma prisão e porque ele tem tanta importância para as feministas, ao mesmo tempo que é tão problemática a sua valoração.

Quanto à teoria de Foucault, a história da acumulação primitiva oferece muitos contraexemplos, demonstrando que a teoria foucaultiana só pode ser defendida à custa de omissões históricas extraordinárias. A mais óbvia é a omissão da caça às bruxas e do discurso sobre a demonologia na sua análise sobre o disciplinamento do corpo. Sem dúvida, se essas questões tivessem sido incluídas, teriam inspirado outras conclusões, já que ambas demonstram o caráter repressivo do poder aplicado contra as mulheres e o inverossímil da cumplicidade e da inversão de papéis que Foucault, em sua descrição da dinâmica dos micropoderes, imagina que existem entre as vítimas e seus perseguidores.

O estudo da caça às bruxas também desafia a teoria de Foucault relativa ao desenvolvimento do “biopoder”, despojando-a do mistério com que cobre a emergência desse regime. Foucault registra a virada – alegadamente na Europa do século XVIII – de um tipo de poder constituído sobre o direito de matar, para um poder diferente, que se exerce por meio da administração e promoção das forças vitais, como o crescimento da população. Porém, ele não oferece pistas sobre suas motivações. No entanto, se situamos essa mutação no contexto do surgimento do capitalismo, o enigma desaparece: a promoção das forças da vida se revela como nada mais que o resultado de uma nova preocupação pela acumulação e pela reprodução da força de trabalho. Também podemos observar que a promoção do crescimento populacional por parte do Estado pode andar de mãos dadas com uma destruição massiva de vidas; pois em muitas circunstâncias históricas – como, por exemplo, a história do tráfico de escravos – uma é condição para a outra. Efetivamente, num sistema em que a vida está subordinada à produção de lucro, a acumulação de força de trabalho só pode ser alcançada com o máximo de violência para que, nas palavras de Maria Mies, a própria violência se transforme na força mais produtiva.

Para concluir, o que Foucault teria aprendido, caso tivesse estudado em sua História da sexualidade (1978) a caça às bruxas, em vez de ter se concentrado na confissão pastoral, é que essa história não pode ser escrita do ponto de vista de um sujeito universal, abstrato, assexuado. Além disso, teria reconhecido que a tortura e a morte podem se colocar a serviço da “vida”, ou melhor, a serviço da produção da força de trabalho, dado que o objetivo da sociedade capitalista é transformar a vida em capacidade para trabalhar e em “trabalho morto”.6

Desse ponto de vista, a acumulação primitiva foi um processo universal em cada fase do desenvolvimento capitalista. Não é por acaso que seu exemplo histórico originário tenha sedimentado estratégias que, diante de cada grande crise capitalista, foram relançadas, de diferentes maneiras, com a finalidade de baratear o custo do trabalho e esconder a exploração das mulheres e dos sujeitos coloniais.

Isso é o que ocorreu no século XIX, quando as respostas ao surgimento do socialismo, a Comuna de Paris e a crise de acumulação de 1873 foram a “Partilha da África” e a invenção da família nuclear na Europa, centrada na dependência econômica das mulheres aos homens – seguida da expulsão das mulheres dos postos de trabalho remunerados. Isso é também o que ocorre na atualidade, quando uma nova expansão do mercado de trabalho busca colocar-nos em retrocesso no que tange à luta anticolonial e às lutas de outros sujeitos rebeldes – estudantes, feministas, trabalhadores industriais – que nos anos 1960 e 1970 debilitaram a divisão sexual e internacional do trabalho.

Não é de surpreender, portanto, que a violência em grande escala e a escravidão tenham estado na ordem do dia, do mesmo modo que estavam no período de “transição”, com a diferença de que hoje os conquistadores são os oficiais do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, que ainda pregam sobre o valor de um centavo às mesmas populações que as potências mundiais dominantes roubaram e pauperizaram durante séculos. Uma vez mais, muito da violência empregada é dirigida contra as mulheres, porque, na era do computador, a conquista do corpo feminino continua sendo uma precondição para a acumulação de trabalho e riqueza, tal como demonstra o investimento institucional no desenvolvimento de novas tecnologias reprodutivas que, mais do que nunca, reduzem as mulheres a meros ventres.

Ademais, a “feminização da pobreza” que acompanhou a difusão da globalização adquire um novo significado quando recordamos que foi o primeiro efeito do desenvolvimento do capitalismo sobre as vidas das mulheres.

Com efeito, a lição política que podemos extrair de Calibã e a bruxa é que o capitalismo, enquanto sistema econômico-social, está necessariamente ligado ao racismo e ao sexismo. O capitalismo precisa justificar e mistificar as contradições incrustadas em suas relações sociais – a promessa de liberdade frente à realidade da coação generalizada e a promessa de prosperidade frente à realidade de penúria generalizada – difamando a “natureza” daqueles a quem explora: mulheres, súditos coloniais, descendentes de escravos africanos, imigrantes deslocados pela globalização.

No cerne do capitalismo, encontramos não apenas uma relação simbiótica entre o trabalho assalariado contratual e a escravidão, mas também, e junto com ela, a dialética que existe entre acumulação e destruição da força de trabalho, tensão pelas quais as mulheres pagaram o preço mais alto, com seus corpos, seu trabalho e suas vidas.

É, portanto, impossível associar o capitalismo com qualquer forma de libertação ou atribuir a longevidade do sistema a sua capacidade de satisfazer necessidades humanas. Se o capitalismo foi capaz de reproduzir-se, isso se deve somente à rede de desigualdades que foi construída no corpo do proletariado mundial e à sua capacidade de globalizar a exploração. Esse processo segue desenvolvendo-se diante de nossos olhos, tal como se deu ao longo dos últimos quinhentos anos.

A diferença é que, hoje, a resistência ao capitalismo também atingiu uma dimensão global.

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Mulher carregando uma cesta de espinafre. Na Idade Média, as mulheres frequentemente cultivavam hortas onde plantavam ervas medicinais. Seu conhecimento das propriedades das ervas é um dos segredos transmitidos de geração em geração. Italiano, c. 1385.

Notas
1. ↑ O estudo da transição para o capitalismo tem uma longa história que, não por acaso, coincide com a dos principais movimentos políticos deste século. Historiadores marxistas como Maurice Dobb, Rodney Hilton e Christopher Hill (1953) revisitaram a “transição” nos anos quarenta e cinquenta, depois dos debates gerados pela consolidação da União Soviética, a emergência dos Estados socialistas na Europa e na Ásia e o que nesse momento aparecia como uma iminente crise capitalista. A “transição” foi, mais uma vez, revisitada em 1960 pelos teóricos terceiro-mundistas (Samir Amin, André Gunder Frank), no contexto dos debates do momento sobre o neocolonialismo, o “subdesenvolvimento” e o “intercâmbio desigual” entre o “Primeiro” e o “Terceiro” mundo.
2. ↑ Essas duas realidades estão estreitamente conectadas nesta análise, pois no capitalismo a reprodução geracional dos trabalhadores e a regeneração cotidiana de sua capacidade de trabalho se converteram em um “trabalho de mulheres”, embora mistificado, pela sua condição de não assalariado, como serviço pessoal e até mesmo como recurso natural.
3. ↑ Não surpreende que a valorização do corpo tenha estado presente em quase toda a literatura da “segunda onda” do feminismo do século XX, tal como foi caracterizada a literatura produzida pela revolta anticolonial e pelos descendentes de escravos africanos. Nesse terreno, cruzando grandes fronteiras geográficas e culturais, A Room of One’s Own Um teto todo seu (1929), de Virgina Woolf, antecipou Cahier d’un retour au pays natal Diário de um retorno ao país natal (1938), de Aimé Cesaire, quando repreende seu público feminino e, por detrás disso, o mundo feminino, por não ter conseguido produzir outra coisa além de filhos.

“Jovens, diria que […] vocês nunca realizaram um descobrimento de certa importância. Nunca fizeram tremer um império ou conduziram um exército à batalha. As obras de Shakespeare não são suas […] Que desculpa vocês têm? Vocês podem muito bem dizer, apontando para as ruas e praças e para as selvas do mundo infestadas de habitantes negros e brancos e de cor de café […] que estivemos fazendo outro trabalho. Sem ele, esses mares não seriam navegados e essas terras férteis seriam um deserto. Temos erguido e criado e ensinado, talvez até a idade de seis ou sete, aos mil seiscentos e vinte e três milhões de seres humanos que, de acordo com as estatísticas, existem, algo que mesmo quando algumas tenham tido ajuda, requer tempo” (Woolf, 1929, p. 112).

Essa capacidade de subverter a imagem degradada da feminilidade, que foi construída por meio da identificação das mulheres com a natureza, a matéria, o corporal, é a potência do “discurso feminista sobre o corpo” que trata de desenterrar o que o controle masculino de nossa realidade corporal sufocou. No entanto, é uma ilusão conceber a libertação feminina como um “retorno ao corpo”. Se o corpo feminino – como discuto neste trabalho – é um significante para o campo de atividades reprodutivas que foi apropriado pelos homens e pelo Estado e convertido num instrumento de produção de força de trabalho (com tudo aquilo que isso pressupõe em termos de regras e regulações sexuais, cânones estéticos e castigos), então o corpo é o lugar de uma alienação fundamental que só pode ser superada com o fim da disciplina-trabalho que o define.
Essa tese se verifica também para os homens. A descrição de um trabalhador que se sente à vontade apenas em suas funções corporais feita por Marx já intuía tal fato. Marx, porém, nunca expôs a magnitude do ataque a que o corpo masculino estava submetido com o advento do capitalismo. Ironicamente, assim como Michel Foucault, Marx enfatizou também a produtividade do trabalho a que os trabalhadores estão subordinados – uma produtividade que, para ele, é a condição para o futuro domínio da sociedade pelos trabalhadores. Marx não observou que o desenvolvimento das potências industriais dos trabalhadores se deu à custa do subdesenvolvimento de seus poderes enquanto indivíduos sociais, ainda que reconhecesse que os trabalhadores na sociedade capitalista estão tão alienados de seu trabalho, de suas relações com os outros e dos produtos de seu trabalho como se estivessem dominados por estes, parecendo tratar-se de uma força alheia.
4. ↑ Braidotti (1991, p. 219). Para uma discussão do pensamento feminista sobre o corpo, ver EcoFeminism as Politics O ecofeminismo como política (1997), de Ariel Salleh, especialmente os capítulos 3, 4, e 5; e Patterns of Dissonance Padrões de dissonância (1991), de Rosi Braidotti, especialmente a seção intitulada “Repossessing the Body: A Timely Project” (p. 219-24).
5. ↑ Estou me referindo aqui ao projeto de écriture féminine, uma teoria e movimento literários que se desenvolveram na França, na década de 1970, entre as feministas estudiosas da psicanálise lacaniana, que buscavam criar uma linguagem que expressasse a especificidade do corpo feminino e da subjetividade feminina (Braidotti, ibidem).
6. ↑ O “trabalho morto” é o trabalho já realizado, que fica objetivado nos meios de produção. Segundo Marx, o “trabalho morto” depende da capacidade humana presente (“trabalho vivo”), mas o capital é “trabalho morto” que subordina e explora essa capacidade (Marx, 2006, T. I). N.E.E.

Capítulo I
O mundo precisa de uma sacudida

Os movimentos sociais e a crise política na Europa medieval

O mundo deverá sofrer uma grande sacudida. Acontecerá uma situação tal que os ímpios serão expulsos de seus lugares e os oprimidos se levantarão.

Thomas Müntzer, Open Denial of the False Belief of the Godless World on the Testimony of the Gospel of Luke, Presented to Miserable and Pitiful Christendom in Memory of its Error, 1524.

Não se pode negar que, depois de séculos de luta, a exploração continua existindo. Somente sua forma mudou. O “mais-trabalho” extraído aqui e ali pelos atuais senhores do mundo não é menor, em proporção, à quantidade total de trabalho que o mais-trabalho que se extraía há muito tempo. Porém, a mudança nas condições de exploração não é insignificante […] O que importa é a história, a luta por libertação […]

Pierre Dockes, Medieval Slavery and Liberation, 1982.

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1 Introdução 2 A servidão como relação de classe 3 A luta pelo comum 4 Liberdade e divisão social 5 Os movimentos milenaristas e heréticos 6 A politização da sexualidade 7 As mulheres e a heresia 8 Lutas urbanas 9 A Peste Negra e a crise do trabalho 10 A política sexual, o surgimento do Estado e a contrarrevolução

Introdução

Uma história das mulheres e da reprodução na “transição para o capitalismo” deve começar com as lutas que o proletariado medieval – pequenos agricultores, artesãos, trabalhadores – travou contra o poder feudal em todas as suas formas. Apenas se invocarmos estas lutas, com sua rica carga de demandas, aspirações sociais e políticas e práticas antagônicas, podemos compreender o papel que tiveram as mulheres na crise do feudalismo e os motivos pelos quais seu poder devia ser destruído a fim de que se desenvolvesse o capitalismo, tal como ocorreu com a perseguição às bruxas durante três séculos. Da perspectiva estratégica dessa luta, é possível observar que o capitalismo não foi o produto do desenvolvimento evolutivo que dava à luz forças que estavam amadurecendo no ventre da antiga ordem. O capitalismo foi uma resposta dos senhores feudais, dos mercadores patrícios, dos bispos e papas a um conflito social centenário que chegou a fazer tremer seu poder e que realmente produziu “uma grande sacudida mundial”. O capitalismo foi a contrarrevolução que destruiu as possibilidades que haviam emergido da luta antifeudal – possibilidades que, se tivessem sido realizadas, teriam evitado a imensa destruição de vidas e de espaço natural que marcou o avanço das relações capitalistas no mundo. Devemos enfatizar este aspecto, pois a crença de que o capitalismo “evoluiu” a partir do feudalismo e de que representa uma forma mais elevada de vida social ainda não se desfez.

No entanto, o modo como a história das mulheres se entrecruza com a história do desenvolvimento capitalista não pode ser compreendida se nos preocuparmos apenas com os terrenos clássicos da luta de classes – serviços laborais, índices salariais, rendas e dízimos – e ignorarmos as novas visões da vida social e da transformação das relações de gênero que estes conflitos produziram. Elas não foram insignificantes. É na luta antifeudal que encontramos o primeiro indício na história europeia da existência das raízes de um movimento de mulheres que se opunha à ordem estabelecida e contribuía para a construção de modelos alternativos de vida comunal. A luta contra o poder feudal produziu também as primeiras tentativas organizadas de desafiar as normas sexuais dominantes e de estabelecer relações mais igualitárias entre mulheres e homens. Combinadas à recusa do trabalho servil e das relações comerciais, estas formas conscientes de transgressão social construíram uma poderosa alternativa não só ao feudalismo, mas também à ordem capitalista que estava substituindo o feudalismo, demonstrando que outro mundo era possível, o que nos encoraja a perguntar por que ele não se desenvolveu. Este capítulo procura respostas para essa pergunta, ao mesmo tempo em que examina os modos como se redefiniram as relações entre as mulheres e os homens e a reprodução da força de trabalho, em oposição ao regime feudal.

As lutas sociais da Idade Média também devem ser lembradas porque escreveram um novo capítulo na história da libertação. Em seu melhor momento, exigiram uma ordem social igualitária baseada na riqueza compartilhada e na recusa às hierarquias e ao autoritarismo. Estas reivindicações continuariam sendo utopias. No lugar do reino dos céus, cujo advento foi profetizado na pregação dos movimentos heréticos e milenaristas, o que resultou do final do feudalismo foram as enfermidades, a guerra, a fome e a morte – os quatro cavaleiros do Apocalipse, tal como estão representados na famosa gravura de Albrecht Dürer – verdadeiros presságios da nova era capitalista. No entanto, as tentativas do proletariado medieval de “colocar o mundo de cabeça para baixo” devem ser levadas em conta: apesar de sua derrota, conseguiram pôr em crise o sistema feudal e, em sua época, foram “genuinamente revolucionários”, já que não poderiam ter triunfado sem “uma reconfiguração radical da ordem social” (Hilton, 1973, p. 223-24). Realizar uma leitura da “transição” a partir do ponto de vista da luta antifeudal da Idade Média nos ajuda também a reconstruir as dinâmicas sociais que subjaziam no fundo dos cercamentos ingleses e da conquista da América; nos ajudam, sobretudo, a desenterrar algumas das razões pelas quais, nos séculos XVI e XVII, o extermínio de “bruxas” e a extensão do controle estatal a qualquer aspecto da reprodução se converteram nas pedras angulares da acumulação primitiva.

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Camponeses preparando a terra para semear. O acesso à terra era a base do poder dos servos. Miniatura inglesa, c. 1340.

A servidão como relação de classe

Embora as lutas antifeudais da Idade Média lancem um pouco de luz sobre o desenvolvimento das relações capitalistas, seu significado político permanece oculto, a menos que as enquadremos no contexto mais amplo da história da servidão, isto é, da relação de classe dominante na sociedade feudal e, até o século XIV, foco da luta antifeudal.

A servidão se desenvolveu na Europa entre os séculos V e VII, em resposta ao desmoronamento do sistema escravagista sobre o qual se havia edificado a economia da Roma Imperial. Foi o resultado de dois fenômenos relacionados entre si. Por volta do século IV, nos territórios romanos e nos novos Estados germânicos, os senhores de terra se viram obrigados a conceder aos escravos o direito a possuir uma parcela de terra e uma família própria, com a finalidade de conter, assim, suas rebeliões e evitar sua fuga ao “monte”, onde as comunidades de bárbaros começavam a organizar-se às margens do Império.1 Ao mesmo tempo, os senhores de terra começaram a subjugar os camponeses livres que, arruinados pela expansão do trabalho escravo e depois pelas invasões germânicas, buscaram a proteção dos senhores, ainda que a custo de sua independência. Assim, uma vez que a escravidão nunca foi completamente abolida, desenvolveu-se uma nova relação de classe que homogeneizou as condições dos antigos escravos e dos trabalhadores agrícolas livres (Dockes, 1982, p. 151), relegando todo o campesinato a uma relação de subordinação. Deste modo, durante três séculos (do século IX ao XI), “camponês” (rusticus, villanus) seria sinônimo de “servo” (servo) (Pirenne, 1956, p. 63).

Enquanto relação de trabalho e estatuto jurídico, a servidão era uma carga pesada. Os servos estavam atados aos senhores de terra; suas pessoas e posses eram propriedades de seus senhores e suas vidas estavam reguladas em todos os aspectos pela lei do feudo. Entretanto, a servidão redefiniu a relação de classe em termos mais favoráveis para os trabalhadores. A servidão marcou o fim do trabalho com grilhões e da vida no ergástulo2 e uma diminuição dos castigos atrozes (as coleiras de ferro, as queimaduras, as crucificações) de que a escravidão havia dependido. Nos feudos, os servos estavam submetidos à lei do senhor, porém, suas transgressões eram julgadas a partir de acordos consuetudinários (“de usos e costumes”) e, com o tempo, até mesmo por um sistema de júri constituído por seus pares.

Do ponto de vista das mudanças introduzidas na relação senhor-servo, o aspecto mais importante da servidão foi a concessão aos servos do acesso direto aos meios de sua reprodução. Em troca do trabalho que estavam obrigados a realizar na terra do senhor (a demesne), os servos recebiam uma parcela de terra (mansus ou hide)3 que podiam utilizar para manter-se e deixar a seus filhos “como uma verdadeira herança, simplesmente pagando uma dívida de sucessão” (Boissonnade, 1927, p. 1934). Como assinala Pierre Dockes, em Medieval Slavery and Liberation (1982) A escravidão medieval e a libertação, este acordo aumentou a autonomia dos servos e melhorou suas condições de vida, já que agora podiam dedicar mais tempo à sua reprodução e negociar o alcance de suas obrigações, em vez de serem tratados como bens móveis sujeitos a uma autoridade ilimitada. O que é mais importante, por terem o uso e a posse efetiva de uma parcela de terra, os servos sempre dispunham de recursos; inclusive, no ponto máximo de seus enfrentamentos com os senhores, não era fácil forçá-los a obedecer pela ameaça de passar fome. É verdade que o senhor podia expulsar da terra os servos rebeldes, mas isso raramente ocorria, dadas as dificuldades para recrutar novos trabalhadores em uma economia bastante fechada e devido à natureza coletiva das lutas camponesas. É por isso que – como apontou Marx –, no feudo, a exploração do trabalho sempre dependia do uso direto da força.4

A experiência de autonomia adquirida pelos camponeses a partir do acesso à terra teve também um potencial político e ideológico. Com o tempo, os servos começaram a sentir como própria a terra que ocupavam e a considerar intoleráveis as restrições de liberdade que a aristocracia lhes impunha. “A terra é de quem a trabalha” – a mesma demanda que ressoou ao longo do século XX, das revoluções mexicana e russa até as lutas de nossos dias contra a privatização da terra – é um grito de batalha que os servos medievais certamente reconheceriam como deles. No entanto, a força dos “servos” provinha do fato de que o acesso à terra era para eles uma realidade.

Com o uso da terra também apareceu o uso dos “espaços comunais” – pradarias, bosques, lagos, pastos – que proporcionavam recursos imprescindíveis para a economia camponesa (lenha para combustível, madeira para construção, tanques de peixes, terras de pastoreio), ao mesmo tempo em que fomentavam a coesão e cooperação comunitárias (Birrell, 1987, p. 23). No norte da Itália, o controle sobre estes recursos serviu de base para o desenvolvimento de administrações autônomas comunais (Hilton, 1973, p. 76). Os “espaços comunais”5 eram tão importantes na economia política e nas lutas da população rural medieval que sua memória ainda aviva nossa imaginação, projetando a visão de um mundo em que os bens podem ser compartilhados e a solidariedade, em vez do autoengrandecimento, pode ser o fundamento das relações sociais.6

A comunidade servil medieval não alcançou esses objetivos e não deve ser idealizada como um exemplo de comunalismo. Na verdade, seu exemplo nos recorda que nem o “comunalismo” nem o “localismo” podem garantir relações igualitárias, a menos que a comunidade controle seus meios de subsistência e todos seus membros tenham igual acesso a estes. Não era o caso dos servos e dos feudos. Apesar de terem prevalecido formas coletivas de trabalho e contratos “coletivos” com os senhores feudais e, apesar do caráter local da economia campesina, a aldeia medieval não era uma comunidade de iguais. Tal como se deduz de uma vasta documentação proveniente de todos os países da Europa ocidental, existiam muitas diferenças sociais entre os camponeses livres e os camponeses com um estatuto servil, entre camponeses ricos e pobres, entre aqueles que tinham assegurada posse da terra e os trabalhadores sem terra que trabalhavam por um salário na demesne do senhor, assim como também entre mulheres e homens.7

Geralmente, a terra era entregue aos homens e transmitida pela linhagem masculina, embora tenha havido muitos casos de mulheres que a herdavam e administravam em seu nome.8 As mulheres também foram excluídas dos cargos para os quais se designavam camponeses mais abastados e, para todos os efeitos, tinham um status de segunda classe (Bennett,1988, p. 18-29; Shahar, 1983). Talvez seja este o motivo pelo qual seus nomes raramente são mencionados nas crônicas dos feudos, com exceção dos arquivos das cortes nos quais se registravam infrações dos servos. No entanto, as servas eram menos dependentes de seus parentes de sexo masculino, se diferenciavam menos deles física, social e psicologicamente e estavam menos subordinadas a suas necessidades do que logo estariam as mulheres “livres” na sociedade capitalista.

A dependência das mulheres em relação aos homens na comunidade servil estava limitada pelo fato de que, sobre a autoridade de seus maridos e de seus pais, prevalecia a autoridade dos senhores, que se declaravam em posse das pessoas e da propriedade dos servos e tentavam controlar cada aspecto de suas vidas, desde o trabalho até o casamento e a conduta sexual.

Era o senhor que mandava no trabalho e nas relações sociais das mulheres, e decidia, por exemplo, se uma viúva deveria se casar novamente e quem deveria ser seu esposo. Em algumas regiões reivindicavam, inclusive, o direito de ius primae noctis – o direito de deitar-se com a esposa do servo na noite de núpcias. A autoridade dos servos homens sobre suas parentas também estava limitada pelo fato de que a terra era entregue geralmente à unidade familiar e as mulheres não somente trabalhavam nela, mas também podiam dispor dos produtos de seu trabalho e não precisavam depender de seus maridos para se manter. A participação da esposa na posse da terra era tão aceita na Inglaterra que “quando um casal aldeão se casava era comum que o homem fosse devolver a terra ao senhor, retomando-a tanto em seu nome quanto no de sua esposa” (Hanawalt, 1986b, p. 155).9 Além disso, dado que o trabalho no feudo estava organizado com base na subsistência, a divisão sexual do trabalho era menos pronunciada e exigente que nos estabelecimentos agrícolas capitalistas. Na aldeia feudal não existia uma separação social entre a produção de bens e a reprodução da força de trabalho; todo o trabalho contribuía para o sustento familiar. As mulheres trabalhavam nos campos, além de criar os filhos, cozinhar, lavar, fiar e manter a horta; suas atividades domésticas não eram desvalorizadas e não supunham relações sociais diferentes das dos homens, tal como ocorreria em breve na economia monetária, quando o trabalho doméstico deixou de ser visto como um verdadeiro trabalho.

Se também levarmos em consideração que, na sociedade medieval, as relações coletivas prevaleciam sobre as familiares e que a maioria das tarefas realizadas pelas servas (lavar, fiar, fazer a colheita e cuidar dos animais nos campos comunais) era realizada em cooperação com outras mulheres, nos damos conta de que a divisão sexual do trabalho, longe de ser uma fonte de isolamento, constituía uma fonte de poder e de proteção para as mulheres. Era a base de uma intensa sociabilidade e solidariedade feminina que permitia às mulheres enfrentarem os homens, ainda que a Igreja pregasse pela submissão e a Lei Canônica santificasse o direito do marido a bater em sua esposa.

No entanto, a posição das mulheres nos feudos não pode ser tratada como se fosse uma realidade estática.10 O poder das mulheres e suas relações com os homens estavam determinados, a todo momento, pelas lutas de suas comunidades contra os senhores feudais e pelas mudanças que essas lutas produziam nas relações entre senhores e servos.

A luta pelo comum

Por volta do fim do século XIV, a revolta do campesinato contra os senhores feudais havia se tornado constante, massiva e, frequentemente, armada. No entanto, a força organizativa que os camponeses demonstraram nesse período foi resultado de um longo conflito que, de um modo mais ou menos manifesto, atravessou toda a Idade Média.

Contrariamente à descrição da sociedade feudal como um mundo estático no qual cada estamento aceitava o lugar que lhe era designado na ordem social – descrição que costumamos encontrar nos livros escolares – o retrato que emerge do estudo sobre o feudo é, na verdade, de uma luta de classes incansável.

Como indicam os arquivos das cortes senhoriais inglesas, a aldeia medieval era o cenário de uma luta cotidiana (Hilton, 1966, p. 154; Hilton, 1985, p. 158-59). Em alguns casos, alcançavam-se momentos de grande tensão, como quando os aldeões matavam o administrador ou atacavam o castelo de seu senhor. Com mais frequência, entretanto, consistia num permanente litígio, pelo qual os servos tratavam de limitar os abusos dos senhores, fixar seus “fardos” e reduzir os muitos tributos que lhes deviam em troca do uso da terra (Bennett, 1967; Coulton, 1955, p. 35-91; Hanawalt, 1986a, p. 32-5).

O objetivo principal dos servos era preservar seu excedente de trabalho e seus produtos, ao mesmo tempo que ampliavam a esfera de direitos econômicos e jurídicos. Esses dois aspectos da luta servil estavam estreitamente ligados, já que muitas obrigações decorriam do estatuto legal dos servos. Assim, na Inglaterra do século XIII, tanto nos feudos laicos quanto nos religiosos, os camponeses homens eram frequentemente multados por declarar que não eram servos, mas homens livres, um desafio que podia acabar num desagradável litígio, seguido, inclusive, por apelação à corte real (Hanawalt, 1986a, p. 31). Os camponeses também eram multados por se recusarem a assar seu pão no forno dos senhores ou a moer seus grãos ou azeitonas em seus moinhos, o que lhes permitia evitar os onerosos impostos que lhes impunham pelo uso destas instalações (Bennett, 1967, p. 130-31; Dockes, 1982, p. 176-79). No entanto, a questão mais importante da luta dos servos tratava de trabalho que, em certos dias da semana, eles deviam executar nas terras dos senhores. Esses “serviços laborais” eram as cargas que afetavam mais diretamente as vidas dos servos e, ao longo do século XIII, foram o tema central na luta por liberdade.11)

A atitude dos servos ante a corveé corveia, outra das denominações dos serviços laborais, se faz visível por meio das anotações nos livros das cortes senhoriais onde se registravam os castigos impostos aos arrendatários. Em meados do século XIII, há provas de uma “deserção massiva” dos serviços laborais (Hilton, 1985, p. 130-1). Os arrendatários não iam nem enviavam seus filhos para trabalhar na terra dos senhores quando eram convocados para a colheita,12) ou iam tarde demais para os campos, de forma que a colheita estragava, ou trabalhavam de má vontade, demorando-se em descansos, mantendo, em geral, uma atitude insubordinada. Daqui a necessidade dos senhores exercerem uma vigilância constante e estreita, como demonstra a seguinte recomendação:

Deixem que o administrador e o assistente estejam o tempo todo com os lavradores, para que se assegurem de que estes façam bem e conscientemente seu trabalho e que, no final do dia, vejam quanto fizeram […] E dado que, costumeiramente os servos se descuidam de seu trabalho, é necessário que sejam vigiados com frequência; e o administrador deve supervisioná-los bem de perto, para que trabalhem bem e, se não fizerem de forma adequada seu trabalho, que os repreenda. (Bennett, 1967, p. 113)

Uma situação similar é ilustrada em Piers the Plowman Pedro, o lavrador (c. 1362-70), o poema alegórico de William Langland em que, numa cena, os peões, que haviam estado ocupados durante a manhã, passam a tarde sentados e cantando e, em outra, se fala de folgazões que na época de colheita se reúnem em massa sem buscar nada “para fazer além de beber e dormir” (Coulton, 1955, p. 87).

A obrigação de prestar serviços militares em tempos de guerra também era objeto de forte resistência. Tal como relata H. S. Bennett, nas aldeias inglesas sempre era necessário recorrer à força para o recrutamento e os comandantes medievais raramente conseguiam reter seus homens na guerra, pois os alistados, depois de assegurarem seu pagamento, desertavam assim que aparecesse a primeira oportunidade. Exemplo disso são os registros de pagamento da campanha escocesa do ano 1300, que indicam que, enquanto em junho havia sido ordenado o alistamento de 16 mil recrutas, na metade de julho só conseguiram reunir 7.600, e essa “foi a crista da onda […]; em agosto, restaram pouco mais de 3 mil”. Como consequência, o rei dependia cada vez mais de criminosos indultados e foragidos para reforçar seu exército (Bennett, 1967, p. 123-25).

Outra fonte de conflito vinha do uso das terras não cultivadas, incluindo os bosques, lagos e montanhas que os servos consideravam propriedade coletiva. “Podemos ir aos bosques […]” – declaravam os servos numa crônica inglesa de meados do século XII – “e tomar o que quisermos, pescar peixes do tanque e caçar nos bosques; faremos o que for nossa vontade nos bosques, nas águas e nas pradarias” (Hilton, 1973, p. 71).

Ainda assim, as lutas mais duras foram aquelas contra os impostos e encargos que surgiam do poder jurisdicional da nobreza. Elas incluíam a mão-morta (um imposto que o senhor angariava quando um servo morria), a mercheta mulierum (um imposto sobre o casamento que aumentava quando um servo se casava com alguém de outro feudo), o heriot (um imposto sobre herança que era pago pelo herdeiro de um servo falecido pelo direito de obter acesso à sua propriedade, que geralmente consistia no melhor animal do falecido) e, o pior de todos, a talha, uma quantia de dinheiro decidida arbitrariamente, que os senhores podiam exigir à vontade. Finalmente, embora não menos significativo, o dízimo era um décimo do ingresso do camponês que ia para o clero, geralmente recolhido pelos senhores em nome deles.

Esses impostos “contra a natureza e a liberdade” eram, junto com o serviço laboral, os impostos feudais mais odiados, pois, como não eram compensados com nenhuma adjudicação de terra ou outros benefícios, revelavam a arbitrariedade do poder feudal. Em consequência, eram energicamente rechaçados. Um caso típico foi a atitude dos servos dos monges de Dunstable, que, em 1299, declararam que “preferiam ir ao inferno a serem derrotados pela talha” e, “depois de muita controvérsia”, compraram sua liberdade (Bennett, 1967, p. 139). De maneira similar, em 1280, os servos de Hedon, uma aldeia de Yorkshire, deixaram claro que, se a talha não fosse abolida, preferiam ir viver nas cidades vizinhas, Revensered e Hull, “que dispõem de bons portos crescendo diariamente e não têm talha” (ibidem, p. 141). Não eram ameaças vãs. A fuga para a cidade ou vilarejo13 era um elemento permanente da luta dos servos, de tal maneira que, em alguns feudos ingleses, se dizia uma vez ou outra “que havia homens fugitivos que viviam nas cidades vizinhas; e apesar de que se dessem ordens para que fossem trazidos de volta, o vilarejo continua dando-lhes refúgio […]” (ibidem, p. 295-96).

A estas formas de enfrentamento aberto devemos acrescentar as múltiplas e invisíveis formas de resistência pelas quais os camponeses subjugados se tornaram famosos em todas as épocas e lugares: “Má-vontade, dissimulação, falsa docilidade, ignorância fingida, deserção, furtos, contrabando, tráfico de animais…” (Scott 1989, p. 5). Essas “formas cotidianas de resistência”, tenazmente continuadas durante anos, sem as quais não é possível qualquer descrição adequada das relações de classe, eram abundantes na aldeia medieval.

Isto pode explicar a meticulosidade com que as cargas servis eram especificadas nos registros dos feudos:

Por exemplo, com frequência as crônicas feudais não dizem simplesmente que um homem deve arar, semear e rastelar um acre da terra do senhor. Dizem que deve lavrá-lo com tantos bois quanto houver em seu arado, rastelá-lo com seu próprio cavalo e sacos […] Os serviços (também) eram registrados nos mínimos detalhes […] Devemos recordar aos camponeses de Elton, que admitiram que eram obrigados a empilhar o feno do senhor em seu campo e também em seu estábulo, mas sustentavam que o costume não os obrigava a carregá-los em carros para serem levados de um lugar a outro. (Homans, 1960, p. 272)

Em alguns lugares da Alemanha, onde as obrigações incluíam doações anuais de ovos e aves domésticas, foram designados exames de saúde para evitar que os servos entregassem aos senhores os piores frangos:

A galinha é colocada (então) em frente à cerca ou portão; se, quando é assustada, tem força suficiente para voar ou se movimentar rapidamente, o administrador deve aceitá-la, pois goza de boa saúde. De novo, um gansinho deve ser aceito se está maduro o suficiente para arrancar pasto sem perder o equilíbrio e cair sentado vergonhosamente. (Coulton, 1955, p. 74-5)

Regulações tão minuciosas dão testemunho da dificuldade de fazer-se cumprir o “contrato social” medieval e a variedade de campos de batalha disponíveis para uma aldeia ou um arrendatário combativos. Os direitos e obrigações dos servos estavam regulados por “costumes”, mas sua interpretação também era objeto de muitas disputas. A “invenção de tradições” era uma prática comum na confrontação entre senhores feudais e camponeses, já que ambos tratavam de redefini-las ou esquecê-las, até que chegou um momento, no final do século XIII, em que os senhores as estabeleceram de forma escrita.

Liberdade e divisão social

Em termos políticos, a primeira consequência das lutas servis foi a concessão de “privilégios” e “cartas de foral” que fixavam as cargas e asseguravam “um elemento de autonomia na administração da comunidade aldeã”, garantindo, em certos momentos, para muitas aldeias (particularmente no norte da Itália e na França) verdadeiras formas de autogoverno local. Estes forais estipulavam as multas que as cortes feudais deviam impor e estabeleciam regras para os procedimentos judiciais, eliminando ou reduzindo a possibilidade de prisões arbitrárias e outros abusos (Hilton, 1973, p. 75). Também aliviavam a obrigação dos servos de alistarem-se como soldados e aboliam ou fixavam a talha. Com frequência, outorgavam a “liberdade” de “ter um posto”, isso é, de vender bens no mercado local e, menos frequentemente, o direito de alienar a terra. Entre 1177 e 1350, somente em Lorena, foram concedidos 280 forais (ibidem, p. 83).

No entanto, a resolução mais importante do conflito entre senhores e servos foi a substituição dos serviços laborais por um pagamento em dinheiro (arrendamentos em dinheiro, impostos em dinheiro) que colocava a relação feudal sobre uma base mais contratual. Com esse desenvolvimento de importância fundamental, a servidão praticamente acabou, mas assim como acontece com muitas “vitórias” dos trabalhadores que apenas satisfazem parcialmente as demandas originais, a substituição também cooptou os objetivos da luta; funcionou como um meio de divisão social e contribuiu para a desintegração da aldeia feudal.

Para os camponeses abastados que, por possuir grandes extensões de terra, podiam ganhar dinheiro suficiente para, por exemplo, “comprar seu sangue” e empregar outros trabalhadores, a substituição deve ser ter sido um grande passo no caminho até a independência econômica e pessoal, na mesma medida em que os senhores diminuíam seu controle sobre os arrendatários quando eles já não dependiam diretamente de seu trabalho. Entretanto, a maioria dos camponeses mais pobres – que possuíam somente uns poucos acres de terra, apenas o suficiente para a sua sobrevivência – perderam até o pouco que tinham. Obrigados a pagar suas obrigações em dinheiro, contraíram dívidas crônicas, pegando emprestado da conta de colheitas futuras, um processo que terminou fazendo com que muitos perdessem suas terras. Em consequência, no final do século XIII, quando as substituições se difundiram por toda a Europa ocidental, as divisões sociais nas áreas rurais se aprofundaram, e parte do campesinato sofreu um processo de proletarização. Como escreve Bronislaw Geremek (1994, p. 56):

Os documentos do século XIII contêm grandes quantidades de informação sobre os camponeses “sem terra” que, a duras penas, se ajeitam para viver às margens da vida aldeã, ocupando-se dos rebanhos […] Encontram-se crescentes quantidades de “jardineiros”, camponeses sem terra ou quase sem terra que ganhavam a vida oferecendo seus serviços […] No sul da França, os brassiers viviam inteiramente da “venda” da força de seus braços bras, oferecendo-se a camponeses mais ricos ou à aristocracia proprietária. Desde o começo do século XIV, os registros de impostos mostram um aumento marcante do número de camponeses pobres, que aparecem nesses documentos como “indigentes”, “pobres” ou até “mendigos”.

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A substituição por dinheiro-aluguel teve outras duas consequências negativas. Primeiro, tornou mais difícil para os produtores medirem sua exploração: na medida em que os serviços laborais eram substituídos por pagamentos em dinheiro, os camponeses deixavam de diferenciar entre o trabalho que faziam para si mesmos e aquele que faziam para os senhores. A substituição também possibilitou que os arrendatários, agora livres, empregassem e explorassem outros trabalhadores, de tal maneira que, “em um desenvolvimento posterior”, promoveu “o crescimento independente da propriedade camponesa”, transformando “os antigos possuidores camponeses” em arrendatários capitalistas” (Marx, 1909, vol. III, p. 924 e segs.).

A monetização da vida econômica não beneficiou, portanto, a todos, contrariamente do que é afirmado pelos partidários da economia de mercado, que lhe dão as boas-vindas como se tivesse sido a criação de um novo “bem comum” que substitui a sujeição à terra e que introduz na vida social critérios de objetividade, racionalidade e, inclusive, de liberdade pessoal (Simmel, 1978). Com a difusão das relações monetárias, os valores certamente mudaram, mesmo dentro do clero, que passou a repensar a doutrina aristotélica da “esterilidade do dinheiro” (Kaye, 1998) e, não por acaso, a rever sua visão do caráter redentor da caridade aos pobres. Porém, seus efeitos foram destrutivos e excludentes. O dinheiro e o mercado começaram a dividir o campesinato ao transformar as diferenças de rendimentos em diferenças de classe e ao produzir uma massa de pobres que só conseguiam sobreviver graças a doações periódicas (Geremek, 1994, p. 56-62). O ataque sistemático a que os judeus foram submetidos a partir do século XII e a constante deterioração de seu estatuto legal e social nesse mesmo período, também devem ser atribuídos à crescente influência do dinheiro. De fato, existe uma correlação reveladora entre, por um lado, o deslocamento de judeus por concorrentes cristãos, como financiadores de reis, papas e o alto clero e, por outro, as novas regras de discriminação (por exemplo, o uso de roupa distintiva) que foram adotadas pelo clero contra eles, assim como sua expulsão da Inglaterra e da França. Degradados pela Igreja, diferenciados pela população cristã e forçados a confinar seus empréstimos ao nível da aldeia (uma das poucas ocupações que podiam exercer), os judeus se transformaram em alvo fácil para os camponeses endividados, que descarregavam neles seu enfrentamento contra os ricos (Barber, 1992, p. 76).

As mulheres, em todas as classes, também se viram afetadas de um modo muito negativo. A crescente comercialização da vida reduziu ainda mais seu acesso à propriedade e à renda. Nas cidades comerciais italianas, as mulheres perderam o direito a herdar um terço da propriedade de seu marido (a tertia). Nas áreas rurais, foram excluídas da posse da terra, especialmente quando eram solteiras ou viúvas. Consequentemente, no final do século XIII, encabeçaram o movimento de êxodo do campo, sendo as mais numerosas entre os imigrantes rurais nas cidades (Hilton, 1985, p. 212) e, no século XV, constituíam uma alta porcentagem da população das cidades. Aqui, a maioria vivia em condições de pobreza, fazendo trabalhos mal pagos como servas, vendedoras ambulantes, comerciantes (com frequência multadas por não terem licença), fiandeiras, membros de guildas menores e prostitutas.15) No entanto, a vida nos centros urbanos, entre a parte mais combativa da população medieval, dava-lhes uma nova autonomia social. As leis das cidades não libertavam as mulheres; poucas podiam arcar com os custos da “liberdade citadina”, como eram chamados os privilégios ligados à vida na cidade. Porém, na cidade, a subordinação das mulheres à tutela masculina era menor, pois agora podiam viver sozinhas ou como chefes de família com seus filhos ou podiam formar novas comunidades, frequentemente compartilhando a moradia com outras mulheres. Embora geralmente fossem os membros mais pobres da sociedade urbana, com o tempo as mulheres ganharam acesso a muitas ocupações que posteriormente seriam consideradas trabalhos masculinos. Nas cidades medievais, as mulheres trabalhavam como ferreiras, açougueiras, padeiras, candeleiras, chapeleiras, cervejeiras, cardadeiras de lã e comerciantes (Shahar, 1983, p. 189-200; King, 1991, p. 64-7). “Em Frankfurt, havia aproximadamente duzentas ocupações nas quais participavam entre 1300 e 1500 mulheres” (Williams e Echols, 2000, p. 53). Na Inglaterra, 72 das 85 guildas incluíam mulheres entre seus membros. Algumas guildas, incluindo a da indústria da seda, eram controladas por elas; em outras, a porcentagem de trabalho feminino era tão alto quanto dos homens.16 No século XIV, as mulheres também estavam tornando-se professoras escolares, bem como médicas e cirurgiãs e começavam a competir com homens formados em universidades, obtendo em certas ocasiões uma alta reputação. Dezesseis médicas – dentre elas várias mulheres judias especializadas em cirurgia ou terapia ocular – foram contratadas no século XVI pela prefeitura de Frankfurt que, como outras administrações urbanas, oferecia à sua população um sistema de saúde pública. Médicas, assim como parteiras e sage-femmes, predominavam na obstetrícia, tanto contratadas por governos urbanos quanto se mantendo por meio da compensação paga por seus pacientes. Após a introdução da cesariana, no século XIII, as obstetras eram as únicas que a praticavam (Optiz, 1996, p. 370-71).

À medida que as mulheres ganhavam mais autonomia, sua presença na vida social passou a ser mais constante: nos sermões dos padres que repreendiam sua indisciplina (Casagrande, 1978); nos arquivos dos tribunais aonde iam denunciar quem abusava delas (S. Cohn, 1981); nas ordenações das cidades que regulavam a prostituição (Henriques, 1966); entre as centenas de não-combatentes que seguiam os exércitos (Hacker 1981) e, sobretudo, nos movimentos populares, especialmente nos heréticos.

Logo veremos o papel que desempenharam nos movimentos heréticos. Por ora, basta dizer que, em resposta à nova independência feminina, vemos o começo de uma reação misógina, mais evidente nas sátiras dos fabliaux, onde encontramos os primeiros indícios do que os historiadores definiram como “a luta pelas calças”.

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Mulheres pedreiras construindo o muro de uma cidade, século XV.

Os movimentos milenaristas e heréticos

O crescente proletariado sem-terra que surgiu destas mudanças foi o protagonista dos movimentos milenaristas dos séculos XII e XIII; nestes podemos encontrar, além de camponeses empobrecidos, todos os párias da sociedade feudal: prostitutas, padres afastados do sacerdócio, trabalhadores urbanos e rurais (N. Cohn, 1970). Os vestígios da breve aparição dos milenaristas na cena histórica são escassos e nos contam uma história de revoltas passageiras e de um campesinato brutalizado pela pobreza e pela pregação inflamada do clero que acompanhou o lançamento das Cruzadas. A importância de sua rebelião, todavia, está no fato de ter inaugurado um novo tipo de luta, que já se projetava para além dos confins do feudo e que foi impulsionada por aspirações de mudança total. Não é por acaso que o surgimento do milenarismo foi acompanhado pela difusão de profecias e visões apocalípticas que anunciavam o fim do mundo e a iminência do Juízo Final, “não como visões de um futuro mais ou menos distante a ser esperado, mas como acontecimentos iminentes nos quais muitos dos que estavam vivos naquele momento podiam ser participantes ativos” (Hilton, 1973, p. 223).

O movimento que desencadeou a aparição, em Flandres, do Pseudo-Balduíno, em 1224 e 1225, constitui um exemplo típico de milenarismo. O homem, um ermitão, dizia ser o popular Balduíno IX, que havia sido assassinado em Constantinopla em 1204. Embora não fosse possível provar isso, sua promessa de um mundo novo provocou uma guerra civil na qual os trabalhadores têxteis flamencos se transformaram em seus mais fervorosos seguidores (Nicholas, 1992, p. 155). Essa gente pobre (tecelões, feltreiros) entrava para suas fileiras, aparentemente convencidos de que lhes daria prata ou ouro e que realizaria uma reforma social total (Volpe, 1922, p. 298-99). O movimento dos Pastoreaux pastores – camponeses e trabalhadores urbanos que arrasaram o norte da França por volta de 1251, incendiando e saqueando as casas dos ricos, exigindo uma melhoria de sua condição –17 e o movimento dos “flagelantes” – que começou em Úmbria (Itália) e se espalhou por vários países em 1260, momento em que, de acordo com a profecia do abade Joachim da Flora, o mundo estaria fadado a acabar (Russell, 1972a, p. 137) – compartilhavam semelhanças com o movimento do Pseudo-Balduíno.

No entanto, não foi o movimento milenarista, mas a heresia popular a que melhor expressou a busca por uma alternativa concreta às relações feudais por parte do proletariado medieval e sua resistência à crescente economia monetária.

A heresia e o milenarismo são frequentemente tratados como se fossem a mesma coisa, mas, embora não seja possível fazer uma distinção precisa, é necessário ressaltar que existem diferenças significativas entre ambos.

Os movimentos milenaristas eram espontâneos, sem uma estrutura ou programa organizativo. Geralmente, eram incitados por um acontecimento específico ou por um líder carismático, mas assim que eram enfrentados com violência, colapsavam. Em contraste, os movimentos heréticos foram uma tentativa consciente de criar uma sociedade nova. As principais seitas hereges tinham um programa social que reinterpretava a tradição religiosa e, ao mesmo tempo, eram bem organizadas do ponto de vista de sua disseminação, a difusão de suas ideias e até mesmo de sua autodefesa. Não foi por acaso que, apesar da perseguição extrema que sofreram, persistiram durante muito tempo e tiveram um papel fundamental na luta antifeudal.
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Procissão de flagelantes durante a Peste Negra.

Atualmente, pouco se sabe sobre as diversas seitas hereges (cátaros, valdenses, os “pobres de Lyon”, espirituais franciscanos ou fraticelli, apostólicos), que durante mais de três séculos floresceram entre as “classes baixas” da Itália, França, Flandres e Alemanha, no que sem dúvida foi o movimento de oposição mais importante da Idade Média (Werner, 1974; Lambert, 1977). Isto se deve, fundamentalmente, à ferocidade com que foram perseguidos pela Igreja, que não poupou esforços para apagar todo rastro de suas doutrinas. Foram convocadas as Cruzadas – tal como a dirigida contra os albigenses18 – contra os hereges, da mesma maneira que se convocaram Cruzadas para libertar a Terra Santa dos “infiéis”. Os hereges eram queimados aos milhares na fogueira e, para erradicar sua presença, o Papa criou uma das instituições mais perversas jamais conhecidas na história da repressão estatal: a Santa Inquisição (Vauchez, 1990, p. 162-70).19

No entanto, tal como Charles H. Lea, entre outros, demonstrou em sua monumental história da perseguição da heresia, apesar das poucas crônicas disponíveis, é possível criar uma imagem imponente de suas atividades e credos, assim como do papel da resistência herege nas lutas antifeudais (Lea, 1888).

Apesar de ter influência das religiões orientais que mercadores e cruzados traziam à Europa, a heresia popular era menos um desvio da doutrina ortodoxa do que um movimento de protesto que aspirava a uma democratização radical da vida social.20 A heresia era o equivalente à “teologia da libertação” para o proletariado medieval. Selou um marco às demandas populares de renovação espiritual e justiça social, desafiando, em seu apelo a uma verdade superior, tanto a Igreja quanto a autoridade secular. A heresia denunciou as hierarquias sociais, a propriedade privada e a acumulação de riquezas e difundiu entre o povo uma concepção nova e revolucionária da sociedade que, pela primeira vez na Idade Média, redefinia todos os aspectos da vida cotidiana (o trabalho, a propriedade, a reprodução sexual e a situação das mulheres), colocando a questão da emancipação em termos verdadeiramente universais.

O movimento herético proporcionou também uma estrutura comunitária alternativa de dimensão internacional, permitindo aos membros das seitas que vivessem suas vidas com maior autonomia, ao mesmo tempo em que se beneficiavam da rede de apoio constituída por contatos, escolas e refúgios com os quais podiam contar como ajuda e inspiração nos momentos de necessidade. Efetivamente, não é exagero dizer que o movimento herético foi a primeira “internacional proletária” – esse era o alcance das seitas (particularmente dos cátaros e dos valdenses) e as conexões que estabeleceram entre si por meio das feiras comerciais, das peregrinações e dos permanentes cruzamentos de fronteiras dos refugiados gerados pelas perseguições.

Na raiz da heresia popular estava a crença de que Deus já não falava por meio do clero, devido à sua ganância, corrupção e seu comportamento escandaloso. As duas seitas principais apresentavam-se como as “igrejas autênticas”. Porém, o desafio dos hereges era principalmente político, já que desafiar a Igreja pressupunha enfrentar ao mesmo tempo o pilar ideológico do poder feudal, o principal senhor de terras da Europa e uma das instituições que maior responsabilidade tinha na exploração cotidiana do campesinato. Até o século XI, a Igreja havia se transformado num poder despótico que usava sua pretensa investidura divina para governar com mão de ferro e encher os cofres com o uso de incontáveis meios de extorsão. Vender absolvições, indulgências e ofício religiosos, chamar os fieis à Igreja só para pregar a santidade do dízimo e fazer de todos os sacramentos um mercado eram práticas comuns que iam desde o Papa até o padre da aldeia, de forma que a corrupção do clero tornou-se notória em todo o mundo cristão. As coisas degeneraram até tal ponto que o clero não enterrava os mortos, nem batizava ou dava absolvição dos pecados se não recebesse alguma compensação em troca. Até mesmo a comunhão se tornou uma ocasião para negociar e, “se alguém resistia a uma demanda injusta, o recalcitrante era excomungado e depois precisava pagar pela reconciliação uma soma maior do que a original” (Lea, 1961, p. 11).

Nesse contexto, a propagação das doutrinas heréticas não apenas canalizavam o desdém que as pessoas sentiam pelo clero, mas também dava a elas confiança em suas opiniões e instigava sua resistência à exploração clerical. Sob a égide do Novo Testamento, os hereges ensinavam que Cristo não possuía propriedade e que, se a Igreja queria recuperar seu poder espiritual, deveria desprender-se de todas as suas posses. Também ensinavam que os sacramentos não eram válidos quando ministrados por padres pecaminosos, que as formas exteriores de adoração – edifício, imagens, símbolos – deviam ser descartadas, porque só importava a crença interior. Além disso, exortavam as pessoas a não pagarem os dízimos e negavam a existência do Purgatório, cuja invenção havia servido ao clero como fonte de lucro, por meio das missas pagas e da venda de indulgências.
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Camponeses enforcam um monge que vendeu indugências. Niklaus Manuel Deutsch, 1525.

A Igreja, por sua vez, usava a acusação de heresia para atacar toda forma de insubordinação social e política. Em 1377, quando os trabalhadores têxteis de Ypres (Flandres) se levantaram empunhando armas contra seus empregadores, não apenas foram enforcados como rebeldes, como também foram queimados pela Inquisição como hereges (N. Cohn, 1970, p. 105). Também há documentos que mostram que algumas tecelãs foram ameaçadas de excomunhão por não terem entregado a tempo o produto de seu trabalho aos mercadores ou por não terem feito adequadamente seu trabalho (Volpe, 1971, p. 31). Em 1234, para castigar os arrendatários que se negavam a pagar os dízimos, o Bispo de Bremen convocou uma cruzada contra eles “como se fossem hereges” (Lambert, 1992, p. 98). Entretanto, os hereges também eram perseguidos pelas autoridades seculares, desde o Imperador até os patrícios urbanos, que percebiam de que o apelo herético à “verdadeira religião” tinha implicações subversivas e questionava os fundamentos de seu poder.

A heresia constituía tanto uma crítica às hierarquias sociais e à exploração econômica quanto uma denúncia da corrupção clerical. Como destaca Gioacchino Volpe, a rejeição a todas as formas de autoridade e um forte sentimento anticlerical eram elementos comuns a todas as seitas. Muitos hereges compartilhavam do ideal da pobreza apostólica21 e o desejo de regressar à simples vida comunal que havia caracterizado a igreja primitiva. Alguns, como os Pobres de Lyon e a Irmandade do Espírito Livre, viviam de esmolas doadas. Outros sustentavam-se com trabalho manual.22 Outros ainda faziam experiências com o “comunismo”, como os primeiros taboritas na Boêmia, para quem o estabelecimento da igualdade e a propriedade comunal eram tão importantes quanto a reforma religiosa.23 Sobre os valdenses, um inquisidor relatou também que “eles evitam todas as formas de comércio para se esquivar das mentiras, fraudes e blasfêmias” e os descreveu caminhando descalços, vestidos com roupas de lã, sem nada que lhes pertencesse e, assim como os apóstolos, possuindo tudo comunitariamente (Lambert, 1992, p. 64). O conteúdo social da heresia encontra-se, entretanto, mais bem expresso nas palavras de John Ball, o líder intelectual da Revolta Camponesa de 1381, na Inglaterra, que denunciou que “fomos feitos à imagem de Deus, mas nos tratam como animais” e acrescentou “nada estará bem na Inglaterra […] enquanto houver cavaleiros e servos” (Dobson, 1983, p.371).24

Os cátaros, a mais influente das seitas hereges, destacam-se na história dos movimentos sociais europeus pela sua singular aversão à guerra, inclusive às Cruzadas, pela oposição à pena de morte (que provocou o primeiro pronunciamento explícito da Igreja a favor da pena capital)25 e sua tolerância com outras religiões. A França meridional, seu bastião antes da cruzada albigense, “era um refúgio seguro para os judeus quando o antissemitismo crescia na Europa; aqui uma fusão do pensamento cátaro e do pensamento judaico produziu a Cabala, a tradição do misticismo judaico” (Spencer, 1995b, p. 171). Os cátaros também repudiavam o matrimônio e a procriação e eram estritamente vegetarianos, tanto porque recusavam matar animais quanto porque desejavam evitar qualquer comida, como ovos e carnes, que fossem gerados sexualmente.

Esta atitude negativa contra a natalidade foi atribuída à influência exercida por seitas orientais dualistas sobre os cátaros, como os paulicianos – uma seita de iconoclastas que repudiava a procriação por considerar que é o ato pelo qual a alma fica presa ao mundo material (Erbstosser, 1984, p. 13-4) – e, sobretudo, os bogomilos, que, no século X, faziam proselitismo entre os camponeses dos Bálcãs. Os bogomilos, movimento popular “nascido entre camponeses cuja miséria física os tornou conscientes da perversidade das coisas” (Spencer, 1995b, p. 15), pregavam que o mundo visível era obra do diabo (pois, no mundo de Deus, os bons seriam os primeiros) e se negavam a ter filhos para não trazer novos escravos a esta “terra de atribulações”, tal como definiam a vida na terra em um de seus panfletos (Wakefield e Evans, 1991, p. 457).

A influência dos bogomilos sobre os cátaros está comprovada26 e é possível que o repúdio ao matrimônio e à procriação por parte dos cátaros provenha de uma recusa similar a uma vida “degradada à mera sobrevivência” (Vaneigem, 1998, p. 72), mais do que uma “pulsão de morte” ou um desprezo pela vida. Isto é o que sugere o fato de que o antinatalismo dos cátaros não estava associado a uma concepção degradante da mulher e de sua sexualidade, como é frequente no caso das filosofias que desprezam a vida e o corpo. As mulheres ocupavam um lugar importante nas seitas. Quanto à atitude dos cátaros acerca da sexualidade, parece que, enquanto os “perfeitos” se abstinham do coito, não era esperado dos outros membros a prática da abstinência sexual. Alguns desdenhavam da importância da que a Igreja designava à castidade, argumentando que implicava uma sobrevaloração do corpo. Outros hereges atribuíam um valor místico ao ato sexual, tratando-o inclusive como um sacramento (Christeria) e pregando que praticar sexo, em vez de abster-se, era a melhor forma de alcançar um estado de inocência. Assim, ironicamente, os hereges eram perseguidos tanto por serem libertinos quanto por serem ascetas extremos.

As crenças sexuais dos cátaros eram, obviamente, uma elaboração sofisticada de questões desenvolvidas por meio do encontro com religiões orientais, mas a popularidade de que gozaram e a influência que exerceram sobre outras heresias ressalta também uma realidade experimental mais ampla, arraigada nas condições do matrimônio e da reprodução na Idade Média.

Sabemos que, na sociedade medieval, devido à escassa disponibilidade de terra e às restrições protecionistas impostas pelas guildas para a entrada nos ofícios, tanto para os camponeses quanto para os artesãos não era possível ou desejável ter muitos filhos e, com efeito, as comunidades de camponeses e artesãos esforçavam-se para controlar a quantidade de crianças que nasciam entre eles. O método mais comumente usado para esta finalidade era a postergação do matrimônio, um acontecimento que, até mesmo entre os cristãos ortodoxos, ocorria em idade madura (se ocorria), sob a regra de “se não há terra, não há casamento” (Homans, 1960, p.37-9). Consequentemente, uma grande quantidade de jovens tinha que praticar a abstinência sexual ou desafiar a proibição eclesiástica relativa ao sexo fora do casamento. É possível imaginar que o repúdio herege à procriação deve ter encontrado ressonância entre eles. Em outras palavras, é concebível que nos códigos sexuais e reprodutivos dos hereges possamos ver realmente resquícios de uma tentativa de controle medieval da natalidade. Isso explicaria o motivo pelo qual, quando o crescimento populacional se tornou uma preocupação social fundamental durante a profunda crise demográfica e com a escassez de trabalhadores no final do século XIV, a heresia passou a ser associada aos crimes reprodutivos, especialmente à “sodomia”, o infanticídio e o aborto. Isso não quer dizer que as doutrinas reprodutivas dos hereges tiveram um impacto demográfico decisivo, mas que, pelo menos durante dois séculos, na Itália, na França e na Alemanha, criou-se um clima político em que qualquer forma de anticoncepção (incluindo a “sodomia”, isto é, o sexo anal) passou a ser associada à heresia. A ameaça que as doutrinas sexuais dos hereges representavam para a ortodoxia também deve ser levada em conta no contexto dos esforços realizados pela Igreja para estabelecer um controle sobre o matrimônio e a sexualidade que lhe permitia colocar a todos – do Imperador até o mais pobre camponês – sob seu escrutínio disciplinar.

A politização da sexualidade

Como assinalou Mary Condren em The Serpent and the Goddess (1989) A serpente e a deusa, um estudo sobre a entrada do cristianismo na Irlanda céltica, a tentativa eclesiástica de regular o comportamento sexual tem uma longa história na Europa. Desde tempos muito antigos (depois de que o cristianismo se tornou a religião estatal no século IV), o clero reconheceu o poder que o desejo sexual conferia às mulheres sobre os homens e tentou persistentemente exorcizá-lo, identificando o sagrado com a prática de evitar as mulheres e o sexo. Expulsar as mulheres de qualquer momento da liturgia e do ministério dos sacramentos; tentar roubar os poderes mágicos das mulheres de dar vida ao adotar trajes femininos; e fazer da sexualidade um objeto de vergonha – esses foram os meios pelos quais uma casta patriarcal tentou quebrar o poder das mulheres e de sua atração erótica. Neste processo, “a sexualidade foi investida de um novo significado […] Transformou-se num tema de confissão, no qual os mais ínfimos detalhes das funções corporais mais íntimas se transformaram em tema de discussão” e “os diferentes aspectos do sexo foram divididos no pensamento, na palavra, na intenção, nas vontades involuntárias e nos fatos reais do sexo para conformar uma ciência da sexualidade” (Condren, 1989, p.86-7). Os penitenciais Paenitentiali, manuais que começaram a ser distribuídos a partir do século VII como guias práticos para os confessores, são um dos lugares privilegiados para a reconstrução dos cânones sexuais eclesiásticos. No primeiro volume da História da Sexualidade (1978), Foucault enfatizou o papel que tiveram estes manuais na produção do sexo como discurso e de uma concepção mais polimorfa da sexualidade no século XVII. Mas os penitenciais já exerciam um papel decisivo na produção de um novo discurso sexual na Idade Média. Esses trabalhos demonstram que a Igreja tentou impor um verdadeiro catecismo sexual, prescrevendo detalhadamente as posições permitidas durante o ato sexual (na verdade, só uma era permitida), os dias em que se podia fazer sexo, com quem era permitido e com quem era proibido.

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Castigo por adultério. Os amantes são dirigidos pelas ruas, amarrados um ao outro. De um manuscrito de 1296, Toulouse, França.

Essa supervisão sexual aumentou no século XII quando os Concílios de Latrão de 1123 e 1139 lançaram uma nova cruzada contra a prática corrente do casamento e do concubinato27 entre os clérigos, e declararam que o matrimônio como um sacramento cujos votos não podiam ser dissolvidos por nenhum poder temporal. Nesse momento, foram reiteradas também as limitações impostas pelos penitenciais sobre o ato sexual.28 Quarenta anos mais tarde, com o Terceiro Concílio de Latrão de 1179, a Igreja intensificou seus ataques contra a “sodomia”, dirigindo-os, simultaneamente, contra os homossexuais e contra o sexo não procriador (Boswell, 1981, p. 277-86) e pela primeira vez, condenou a homossexualidade, “a incontinência que vai contra a natureza” (Spencer, 1995a, p. 114).

Com a adoção desta legislação repressiva, a sexualidade foi completamente politizada. Todavia, não vemos ainda a obsessão mórbida com que a Igreja Católica abordaria depois as questões sexuais. Porém, já no século XII, podemos ver a Igreja não somente espiando os dormitórios de seu rebanho, como também fazendo da sexualidade uma questão de Estado. As escolhas sexuais não ortodoxas dos hereges também devem ser vistas, portanto, como uma postura antiautoritária, uma tentativa de arrancar seus corpos das garras do clero. Um claro exemplo desta rebelião anticlerical foi o surgimento, no século XIII, das novas seitas panteístas, como os amalricanos e a Irmandade do Espírito Livre que, contra os esforços da Igreja para controlar sua conduta sexual, pregavam que Deus está em todos nós e que, portanto, é impossível pecar.

As mulheres e a heresia

Um dos aspectos mais significativos do movimento herético é a elevada posição social que este designou às mulheres. Como destaca Gioacchino Volpe, na Igreja, as mulheres não eram nada, mas aqui eram consideradas como iguais; as mulheres tinham os mesmos direitos que os homens e desfrutavam de uma vida social e de uma mobilidade (perambulando, pregando) que durante a Idade Média não se encontravam em nenhum outro lugar (Volpe, 1971, p. 20; Koch, 1983, p. 247). Nas seitas hereges, principalmente entre os cátaros e os valdenses, as mulheres tinham direito de ministrar os sacramentos, de pregar, de batizar e até mesmo de alcançar ordens sacerdotais. Está documentado que Valdo se afastou da ortodoxia, porque seu bispo se recusou a permitir que as mulheres pudessem pregar. E dos cátaros se diz que adoravam uma figura feminina, a Senhora do Pensamento, que influenciou o modo como Dante concebeu Beatriz (Taylor, 1954, p. 100). Os hereges também permitiam que as mulheres e os homens compartilhassem a mesma moradia, mesmo sem estar casados, já que não temiam que isso instigasse a comportamentos promíscuos. Frequentemente, as mulheres e os homens hereges viviam juntos livremente, como irmãos e irmãs, da mesma forma que nas comunidades ágapes da Igreja primitiva. As mulheres também formavam suas próprias comunidades. Um caso típico foi o das beguinas, mulheres laicas das classes médias urbanas que viviam juntas (especialmente na Alemanha e Flandres) e mantinham seu trabalho fora do controle masculino e sem subordinação ao controle monástico (McDonnell, 1954; Neel, 1989).29

Não é de se surpreender que as mulheres estivessem mais presentes na história da heresia que em qualquer outro aspecto da vida medieval (Volpe, 1971, p. 20). De acordo com Gottfried Koch, já no século X, compunham uma parte importante dos bogomilos. No século XI, foram mais uma vez as mulheres que deram vida aos movimentos hereges na França e na Itália. Nessa ocasião, as hereges provinham dos setores mais pobres dos servos e constituíram um verdadeiro movimento de mulheres que se desenvolveu dentro do marco dos diferentes grupos hereges (Koch, 1983, p. 246-7). As hereges também estão presentes nas crônicas da Inquisição; sabemos que algumas delas foram queimadas na fogueira, outras foram “emparedadas” para o resto de suas vidas.
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Mulher herege condenada à fogueira. As mulheres tiveram uma presença muito grande no movimento herético em todos os países.

É possível dizer que esta importante presença das mulheres nas seitas hereges foi responsável pela “revolução sexual” nesses movimentos? Ou devemos assumir que o chamado ao “amor livre” foi uma manobra masculina para ganhar fácil acesso aos favores sexuais das mulheres? Estas perguntas não podem ser respondidas facilmente. Sabemos, entretanto, que as mulheres tentavam controlar sua função reprodutiva, já que são numerosas as referências ao aborto e ao uso feminino de contraceptivos nos Penitenciais. De forma significativa – em vista da futura criminalização dessas práticas durante a caça às bruxas –, designavam os métodos contraceptivos como “poções para a esterilidade” ou maleficia (Noonan, 1965, p. 155-61) e se pressupunha que eram as mulheres quem os usavam.

Na Alta Idade Média, a Igreja ainda via essas práticas com certa indulgência, impulsionada pelo reconhecimento de que as mulheres podiam estabelecer um limite para suas gestações por razões econômicas. Assim, no Decretum, escrito por Burcardo, Bispo de Worms (até 1010), depois da pergunta ritual:

Fizeste o que algumas mulheres estão acostumadas a fazer quando fornicam e desejam matar suas crias, agir com suas maleficia e suas ervas para matar ou cortar o embrião ou, se ainda não o tiverem concebido, conspirar para que não o concebam?

Era estipulado que as culpadas fizessem penitência durante dez anos; mas também se observava que “haveria diferença entre a ação de uma pobre mulherzinha motivada pela dificuldade de prover a sua própria alimentação e a de uma mulher que busca esconder um crime de fornicação” (ibidem).

As coisas, no entanto, mudaram drasticamente logo que o controle das mulheres sobre a reprodução começou a ser percebido como uma ameaça à estabilidade econômica e social, tal como ocorreu no período subsequente à catástrofe demográfica produzida pela “peste negra”, a praga apocalíptica que, entre 1347 e 1352, destruiu mais de um terço da população europeia (Ziegler, 1969, p. 230).

Mais adiante, veremos qual foi o papel deste desastre demográfico na “crise do trabalho” da Baixa Idade Média. Aqui, podemos ressaltar que, depois da disseminação da praga, os aspectos sexuais da heresia adquiriram maior importância em sua perseguição. Estes foram grotescamente distorcidos segundo formas que anteciparam as posteriores representações dos sabás de bruxas. Em meados do século XIV, não bastava aos inquisidores acusar os hereges de sodomia e de licenciosidade sexual em seus informes. Agora eles também eram acusados de cultuar animais, incluindo o infame bacium sub cauda (beijo sob o rabo) e de regozijarem-se em rituais orgiásticos, voos noturnos e sacrifícios de crianças (Russell, 1972). Os inquisidores relatavam também a existência de uma seita de adoradores do diabo, conhecidos como luciferianos. Coincidindo com este processo, que marcou a transição da perseguição à heresia para a caça às bruxas, a figura do herege se tornou, cada vez mais, a de uma mulher, de forma que, no início do século XV, a bruxa se transformou no principal alvo da perseguição aos hereges.

No entanto, o movimento herege não parou por aqui. Seu epílogo se deu em 1533, com a tentativa dos anabatistas de estabelecer uma Nova Jerusalém na cidade alemã de Münster. Esta tentativa foi sufocada com um banho de sangue, seguido por uma onda de represálias impiedosas que afetaram as lutas proletárias em toda a Europa (Po-Chia Hsia, 1988a, p.51-69).

Até então, nem a perseguição feroz, nem a demonização da heresia tinham sido capazes de evitar a difusão das crenças hereges. Como escreve Antonino di Stefano, nem a excomunhão, nem o confisco de propriedades, nem a tortura, nem a morte na fogueira, nem as cruzadas contra os hereges puderam debilitar a “imensa vitalidade e popularidade” da heretica pravitatis (o mal herege) (di Stefano, 1950, p.769). “Não existe nenhuma comuna”, escrevia Jacques de Vitry em princípios do século XIII, “em que a heresia não tenha seus seguidores, seus defensores e seus crentes”. Até mesmo depois da cruzada contra os cátaros de 1215, que destruiu seus bastiões, a heresia (junto com o Islã) continuou sendo o inimigo e a ameaça principal que a Igreja teve que enfrentar. Novos seguidores apareciam em todas as profissões e camadas sociais: o campesinato, os setores mais pobres do clero (que se identificavam com os pobres e levaram às suas lutas a linguagem do Evangelho), os burgueses urbanos e até mesmo a nobreza menor. Mas a heresia popular era, sobretudo, um fenômeno das classes baixas. O ambiente e no qual ela floresceu foi o dos proletários rurais e urbanos: camponeses, sapateiros e trabalhadores têxteis “aos quais se pregava a igualdade, fomentando seu espírito de revolta com predições proféticas e apocalípticas” (ibidem, p.776).

Podemos vislumbrar a popularidade dos hereges a partir dos julgamentos que a Inquisição ainda levava adiante, em 1330, na região de Trento (norte da Itália), contra aqueles que haviam oferecido hospitalidade aos apostólicos quando seu líder, Frei Dolcino, havia passado pela região trinta anos antes (Orioli, 1993, p. 217-37). No momento de sua chegada, muitas portas se abriram para dar refúgio a Dolcino e a seus seguidores. Mais uma vez, em 1304, quando, junto ao anúncio da chegada de um reino sagrado de pobreza e amor, Frei Dolcino fundou uma comunidade entre as montanhas de Vercellese (Piemonte), os camponeses da região, que já haviam se levantado contra o Bispo de Vercelli, lhe ofereceram seu apoio (Mornese y Buratti, 2000). Durante três anos, os dulcinianos resistiram às cruzadas e ao bloqueio que o Bispo organizou contra eles – houve mulheres vestidas como homens lutando junto aos combatentes. No fim das contas, foram derrotados apenas pela fome e pela esmagadora superioridade das forças que a Igreja havia mobilizado (Lea, 1961, p.615-20; Milton, 1973, p. 108). No mesmo dia em que as tropas reunidas pelo Bispo de Vercelli finalmente venceram, “mais de mil hereges morreram em meio às chamas ou no rio ou pela força da espada, dos modos mais cruéis”. Margherita, a companheira de Dolcino, foi queimada lentamente até morrer diante de seus olhos, porque se negou a retratar-se. Dolcino foi arrastado e pouco a pouco foi sendo despedaçado pelos caminhos da montanha, a fim de dar um exemplo conveniente à população local (Lea, 1961, p.620).

Lutas urbanas

Não apenas as mulheres e os homens, mas também os camponeses e os trabalhadores urbanos descobriram nos movimentos heréticos uma causa comum. Essa comunhão de interesses entre pessoas que, de outra forma, poderíamos supor que teriam preocupações e aspirações distintas, pode ser observada em diferentes situações. Em primeiro lugar, na Idade Média existia uma relação estreita entre a cidade e o campo. Muitos burgueses eram ex-servos que haviam se mudado ou fugido para a cidade com a esperança de uma vida melhor e, enquanto exerciam seus ofícios, continuavam trabalhando a terra, particularmente em épocas de colheita. Seus pensamentos e desejos ainda estavam profundamente configurados pela vida na aldeia e por sua permanente relação com a terra. Camponeses e trabalhadores também eram unidos pelo fato de estarem subordinados aos mesmos governantes. No século XIII (especialmente no norte e no centro da Itália), a nobreza proprietária de terras e os mercadores patrícios da cidade estavam começando a se integrar, funcionando como uma estrutura única de poder. Esta situação promoveu solidariedade e preocupação mútua entre os trabalhadores. Assim, quando os camponeses se rebelavam, encontravam os artesãos e os trabalhadores a seu lado, além de uma massa de pobres urbanos cada vez mais importante. Foi isso que aconteceu durante a revolta camponesa no Flandres marítimo, que se iniciou em 1323 e terminou em junho de 1328, depois que o rei da França e a nobreza flamenca derrotaram os rebeldes, em Cassel, em 1327. Como escreve David Nicholas, “a habilidade dos rebeldes para continuar o conflito durante cinco anos só pôde ser concebida a partir da participação de toda a cidade” (Nicholas, 1992, p. 213-4). Nicholas acrescenta que, no final de 1324, os artesãos de Ypres e Bruxelas somaram-se aos camponeses rebeldes:

Bruxelas, agora sob o controle de um partido de tecelões e feltreiros, seguiu o rumo da revolta camponesa […] Iniciou-se uma guerra de propaganda, na qual os monges e pregadores disseram às massas que havia chegado uma nova era e que eles eram iguais aos aristocratas. (Ibidem, p. 213-4)

Outra aliança entre camponeses e trabalhadores urbanos foi a dos tuchins, um movimento de “bandidos” que operava nas montanhas do centro da França, na qual os artesãos se uniram a uma organização típica das populações rurais (Milton, 1963, p. 128).

O que unia camponeses e artesãos era uma aspiração comum de nivelar as diferenças sociais. Como escreve Norman Cohn, esse fato é evidenciado em vários tipos de documentos:

Desde os provérbios dos pobres nos quais lamentam que “o homem pobre sempre trabalha, sempre preocupado, trabalha e chora, não ri nunca de coração, enquanto que o rico ri e canta […]”.

Desde peças de mistério onde se diz que “cada homem deve ter tantas propriedades quanto qualquer outro e não temos nada que podemos chamar de nosso. Os grandes senhores possuem tudo e os pobres só contam com o sofrimento e a adversidade […]”.

Desde as sátiras mais lidas que denunciavam que “os magistrados, reitores, sacristãos e prefeitos vivem todos do roubo. Todos engordando pelo trabalho dos pobres, todos querem saqueá-los […] O forte rouba o fraco […]”. Ou também: “Os bons trabalhadores fazem pão do trigo, mas nunca o mastigam; não, só recebem os resíduos do grão, do bom vinho só recebem os fundos e da boa roupa apenas a palha. Tudo o que é saboroso e bom vai para a nobreza e para o clero”. (N. Cohn 1970, p.99-100)

Essas queixas demonstram o quão profundo era o ressentimento popular contra as desigualdades que existiam entre “peixes grandes” e os “peixes pequenos”, os “gordos” e os “magros”, como ricos e pobres eram chamados na gíria política florentina do século XIV. “Nada ficará bem na Inglaterra até que todos tenhamos a mesma condição”, proclamava John Ball durante sua campanha para organizar a Revolta Camponesa de 1381 (ibidem, p. 199).

Como vimos, as principais expressões dessa aspiração a uma sociedade mais igualitária eram a exaltação da pobreza e o comunismo dos bens. Entretanto, a afirmação de uma perspectiva igualitária também se refletiu em uma nova atitude diante do trabalho, mais evidente entre as seitas hereges. De um lado, temos uma estratégia de “recusa ao trabalho”, como a adotada pelos valdenses franceses (os Pobres de Lyon) e os membros de algumas ordens conventuais (franciscanos, espirituais), que, com o desejo de se libertar das preocupações mundanas, dependiam das esmolas e do apoio da comunidade para sobreviver. Por outro lado, temos uma nova valorização do trabalho, particularmente do trabalho manual, que alcançou sua forma mais consciente na propaganda dos lolardos ingleses, que lembravam seus seguidores de que: “os nobres têm casa bonitas, nós temos apenas trabalho e penúrias, mas tudo vem do nosso trabalho” (ibidem; Christie-Murray, 1976, p. 114-5).

Sem dúvida, recorrer ao “valor do trabalho” – uma novidade numa sociedade dominada pela classe militar – funcionava principalmente como um lembrete da arbitrariedade do poder feudal. Porém, esta nova consciência demonstra também a emergência de novas forças sociais que tiveram um papel crucial no desmantelamento do sistema feudal.

A valorização do trabalho refletia a formação de um proletariado urbano, constituído em parte por oficiais e aprendizes – que trabalhavam para mestres artesãos e produziam para o mercado local – mas fundamentalmente por trabalhadores assalariados, empregados por mercadores ricos em indústrias que produziam para exportação. Na virada do século XIV, em Florença, Siena e Flandres, era possível encontrar concentrações de até quatro mil trabalhadores (tecelões, feltreiros, tintureiros) na indústria têxtil. Para eles, a vida na cidade era apenas um novo tipo de servidão, neste caso sob o domínio dos mercadores de tecido que exerciam o mais estrito controle sobre suas atividades e a dominação de classe mais despótica. Os assalariados urbanos não podiam formar associações e eram proibidos até mesmo de se reunir em qualquer lugar, fosse qual fosse o objetivo; não podiam portar armas nem as ferramentas de seu ofício; e não podiam fazer greve, sob pena de morte (Pirenne, 1956, p. 1932). Em Florença, não tinham direitos civis; diferentemente dos artífices, não eram parte de nenhum ofício ou guilda e estavam expostos aos abusos mais cruéis nas mãos dos mercadores. Estes, além de controlar o governo da cidade, dirigiam um tribunal próprio e, com total impunidade, os espiavam, prendiam, torturavam e enforcavam ao menor sinal de problemas (Rodolico, 1971).

É entre esses trabalhadores que encontramos as formas mais radicais de protesto social e uma maior aceitação das ideias heréticas (ibidem, p. 56-9). Durante o século XIV, particularmente em Flandres, os trabalhadores têxteis estiveram envolvidos em constantes rebeliões contra o bispo, a nobreza, os mercadores e até mesmo contra as principais corporações de ofício. Em Bruxelas, quando, em 1378, os ofícios mais importantes se tornaram poderosos, os trabalhadores da lã continuaram a se rebelar contra eles. Em Ghent, em 1335, uma revolta da burguesia local foi superada por uma rebelião de tecelões que tentavam estabelecer “uma democracia operária” baseada na supressão de todas as autoridades, exceto das que viviam do trabalho manual (Boissonnade, 1927, p.310-11). Derrotados por uma coalizão imponente de forças (que incluía o príncipe, a nobreza, o clero e a burguesia), os tecelões tentaram novamente em 1378, e desta vez obtiveram êxito, instituindo algo que (talvez com certo exagero) foi chamado de primeira “ditadura do proletariado” conhecida na história. Segundo Peter Boissonnade, seu objetivo era “impulsionar os trabalhadores qualificados contra seus patrões, os assalariados contra os grandes empresários, os camponeses contra os senhores e o clero. Dizia-se que eles pensavam em exterminar toda a classe burguesa, com exceção das crianças de seis anos, e que planejavam fazer o mesmo com a nobreza” (ibidem, p. 311). Só foram derrotados por uma batalha em campo aberto, ocorrida em Roosebecque, em 1382, na qual 26 mil deles perderam a vida (ibidem).

Os acontecimentos em Bruxelas e Gante não foram casos isolados. Na Alemanha e na Itália, os artesãos e os trabalhadores também se rebelavam a cada ocasião que se apresentava, forçando a burguesia local a viver em um estado de terror constante. Em Florença, os trabalhadores tomaram o poder em 1379, liderados pelos Ciompi, os trabalhadores da indústria têxtil florentina.30 Eles também estabeleceram um governo de trabalhadores que durou apenas uns poucos meses antes de serem completamente derrotados em 1382 (Rodolico, 1971). Os trabalhadores de Liège, nos Países Baixos, obtiveram maior êxito. Em 1384, a nobreza e os ricos (chamados de “grandes”), incapazes de continuar uma resistência que havia persistido durante mais de um século, renderam-se. Dali para frente, “as corporações de ofício dominaram completamente a cidade”, tornando-se os árbitros do governo municipal (Pirenne, 1937, p. 201). No Flandres marítimo, os artesãos também haviam dado seu apoio à revolta camponesa em uma luta que durou de 1323 até 1328, naquilo que Pirenne descreve como “uma genuína tentativa de revolução social” (ibidem, p. 195). Aqui – como destaca um contemporâneo oriundo de Flandres, cuja filiação de classe é evidente – “a praga da insurreição era tal que os homens se revoltaram com a vida” (ibidem, p. 196). Assim, desde 1320 até 1332, a “gente de bem” de Ypres implorou ao rei que não permitisse que os bastiões internos do povoado em que eles viviam fossem demolidos, dado que os protegiam da “gente comum” (ibidem, p. 202-03).

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Jacquerie. Os camponeses pegaram em armas em Flandres em 1323, na França em 1358, na Inglaterra em 1381, em Florença, Gante e Paris em 1370 e 1380.

A Peste Negra e a crise do trabalho

A Peste Negra, que matou, em média, entre 30% e 40% da população europeia, constituiu um dos momentos decisivos no decorrer das lutas medievais (Ziegler, 1969, p. 230). Esse colapso demográfico sem precedentes ocorreu depois que a Grande Fome de 1315-1322 havia debilitado a resistência das pessoas contra as doenças (Jordan, 1996) e mudou profundamente a vida social e política da Europa, praticamente inaugurando uma nova era. As hierarquias sociais foram viradas de cabeça para baixo, devido ao efeito nivelador da mortandade generalizada. A familiaridade com a morte também debilitou a disciplina social. Diante da possibilidade de uma morte repentina, as pessoas já não se preocupavam em trabalhar ou em acatar as regulações sociais e sexuais, mas tentavam ao máximo se divertir, festejando o quanto podiam, sem pensar no futuro.

A consequência mais importante da peste foi, entretanto, a intensificação da crise do trabalho gerada pelo conflito de classes: ao dizimar a mão de obra, os trabalhadores tornaram-se extremamente escassos, seu custo aumentou de forma crítica e a determinação das pessoas em romper os laços do domínio feudal foi fortalecida.

Como ressalta Christopher Dyer, a escassez de mão de obra causada pela epidemia modificou as relações de poder em benefício das classes baixas. Em épocas em que a terra era escassa, era possível controlar os camponeses por meio da ameaça de expulsão. Porém, uma vez que a população foi dizimada e havia abundância de terra, as ameaças dos senhores deixaram de ter um efeito significativo, pois os camponeses podiam mudar-se livremente e achar novas terras para cultivar (Dyer, 1968, p. 26). Assim, enquanto os cultivos estavam apodrecendo e o gado caminhava sem rumo pelos campos, os camponeses e artesãos repentinamente tomaram conta da situação. Um sintoma deste novo processo foi o aumento das greves de inquilinos, reforçadas pelas ameaças de êxodo em massa para outras terras ou para a cidade. Tal como mostram laconicamente as crônicas feudais, os camponeses “negavam-se a pagar” (negant solvere). Também declaravam que “não seguiriam mais os costumes” (negant consuetudines) e que ignorariam as ordens dos senhores de consertar suas casas, limpar as valas ou capturar os servos fugitivos (ibidem, p. 24).

Até o final do século XIV, a recusa A pagar o aluguel e realizar serviços havia se transformado em um fenômeno coletivo. Aldeias inteiras organizaram-se conjuntamente para deixar de pagar as multas, os impostos e a talha, deixando de reconhecer a troca de serviços e as determinações dos tribunais senhoriais que eram os principais instrumentos do poder feudal. Nesse contexto, a quantidade de aluguéis e de serviços retidos era menos importante do que o fato de que a relação de classe em que se baseava a ordem feudal fosse subvertida. Foi assim que um escritor do começo do século XVI, cujas palavras refletiam o ponto de vista da nobreza, resumiu a situação:

Os camponeses são ricos demais […] e não sabem o que significa a obediência; não levam a lei em consideração, desejariam que não houvesse nobres […] e gostariam de decidir qual renda deveríamos obter por nossas terras. (ibidem, p. 33)
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A Peste Negra dizimou um terço da população da Europa. Foi um momento social e politicamente decisivo na história europeia.

Como resposta ao aumento do custo da mão de obra e do desmoronamento da renda feudal, ocorreram várias tentativas de aumentar a exploração do trabalho a partir do restabelecimento da prestação de serviços laborais compulsórios ou, em alguns casos, da escravidão. Em Florença, a importação de escravos foi autorizada em 1366.31 Porém, essas medidas só aprofundaram o conflito de classes. Na Inglaterra, uma tentativa da nobreza para conter os custos do trabalho por meio de um Estatuto Laboral que impunha limite ao salário máximo provocou a Revolta Camponesa de 1381. Esta se estendeu de uma região a outra e terminou com milhares de camponeses marchando de Kent a Londres “para falar com o rei” (Milton, 1973; Dobson, 1983). Também na França, entre 1379 e 1382, houve um “turbilhão revolucionário” (Boissonnade, 1927, p.314). As insurreições proletárias eclodiram em Bezier, onde quarenta tecelões e sapateiros foram enforcados. Em Montpellier, os trabalhadores insurgentes proclamaram que “para o Natal, venderemos carne cristã a seis pence a libra”. Estouraram revoltas em Carcassone, Orleans, Amiens, Tournai, Rouen e, finalmente, em Paris, onde em 1413 se estabeleceu uma “democracia dos trabalhadores”.32 Na Itália, a revolta mais importante foi a dos Ciompi. Teve início em julho de 1382, quando os trabalhadores têxteis de Florença forçaram a burguesia, durante um tempo, a compartilhar o governo e a declarar uma moratória sobre todas as dívidas nas quais haviam incorrido os assalariados; mais tarde, proclamaram que, essencialmente, se tratava de uma ditadura do proletariado (“o povo de Deus”), embora fosse rapidamente esmagada pelas forças conjuntas da nobreza e da burguesia (Rodolico, 1971).

“Agora é o momento” – frase que se repete nas cartas de John Ball – ilustra claramente o espírito do proletariado europeu até o final do século XIV, uma época em que, em Florença, a roda da fortuna começava a aparecer nas paredes das tavernas e das oficinas, a fim de simbolizar a iminente mudança de sorte.

Durante esse processo, o horizonte político e as dimensões organizacionais da luta dos camponeses e artesãos se expandiram. Regiões inteiras rebelaram-se, formando assembleias e recrutando exércitos. Algumas vezes, os camponeses se organizaram em bandos, atacaram os castelos dos senhores e destruíram os arquivos onde eram mantidos os registros escritos da servidão. No século XV, os enfrentamentos entre camponeses e nobres tornaram-se verdadeiras guerras, como a dos remensas na Espanha, que se estendeu de 1462 a 1486.33 No ano de 1476, começou na Alemanha um ciclo de “guerras camponesas”, cujo ponto de partida foi a conspiração liderada por Hans, o Flautista. Esses processos se propagaram na forma de quatro rebeliões sangrentas conduzidas pelo Bundschuch (“sindicato camponês”), que ocorreram entre 1493 e 1517, e que culminaram em uma guerra aberta que se estendeu de 1522 até 1525 em mais de quatro países (Engels, 1977; Blickle, 1977).

Em nenhum desses casos, os rebeldes se conformaram apenas em exigir algumas restrições do regime feudal, tampouco negociaram exclusivamente para obter melhores condições de vida. O objetivo era colocar fim ao poder dos senhores. Durante a Revolta Camponesa de 1381, os camponeses ingleses declararam que “a velha lei deve ser abolida”. Efetivamente, no começo do século XV, pelo menos na Inglaterra, a servidão ou a vilanagem haviam desaparecido quase que por completo, embora a revolta tenha sido derrotada política e militarmente e seus líderes, executados brutalmente (Titow, 1969, p.58).

O que se seguiu tem sido descrito como a “idade de ouro do proletariado europeu” (Marx, 1909, T. I; Braudel 1967, p. 128-segs.), algo muito distinto da representação canônica do século XV, que foi imortalizado iconograficamente como um mundo sob a maldição da dança da morte e do memento mori.

Thorold Rogers retratou uma imagem utópica deste período em seu famoso estudo sobre os salários e as condições de vida na Inglaterra medieval. “Em nenhum outro momento”, escreveu Rogers, “os salários foram tão altos e a comida tão barata na Inglaterra” (Rogers, 1894, p. 326 e segs.). Às vezes, os trabalhadores eram pagos todos os dias do ano, apesar de não trabalharem aos domingos ou nos principais feriados. A comida corria à custa dos empregadores e era pago um viaticum para ir e vir de casa ao trabalho, calculado por cada milha de distância. Além disso, exigiam ser pagos em dinheiro e queriam trabalhar apenas cinco dias por semana.

Como veremos, há razões para sermos céticos com relação ao alcance dessa abundância. No entanto, para uma parte importante do campesinato da Europa ocidental e para os trabalhadores urbanos, o século XV foi uma época de poder sem precedentes. Não só a escassez de trabalho lhes deu poder de decisão, mas também o espetáculo de empregadores competindo por seus serviços reforçou sua própria valorização e apagou séculos de degradação e submissão. Diante dos olhos dos empregadores, o “escândalo” dos altos salários que os trabalhadores demandavam só era igualado pela nova arrogância que exibiam – sua recusa a trabalhar ou a continuar trabalhando depois que haviam satisfeito suas necessidades (o que podiam fazer mais rapidamente agora, devido aos salários mais elevados); sua obstinada determinação para oferecerem-se somente para tarefas limitadas, em vez de períodos prolongados de tempo; suas demandas por benefícios extras além do salário; e sua vestimenta ostensiva que, de acordo com as queixas de críticos sociais contemporâneos, os tornava indistinguíveis dos senhores. “Os servos agora são senhores e os senhores são servos”, reclamava John Gower em Mirour de l’omme (1378), “o camponês pretende imitar os costumes do homem livre e dá a si mesmo a aparência deste ao utilizar suas roupas” (Hatcher, 1994, p. 17).

A condição dos sem-terra também melhorou depois da Peste Negra (Hatcher, 1994) e não apenas na Inglaterra. Em 1348, os cânones da Normandia queixaram-se de que não conseguiam encontrar ninguém que estivesse disposto a cultivar suas terras sem pedir mais do que aquilo que seis servos teriam cobrado no início do século. Na Itália, França e Alemanha, os salários foram duplicados e triplicados (Boissonnade, 1927, p. 316-20). Nas terras do Reno e do Danúbio, o poder de compra do salário agrícola diário chegou a equiparar-se ao preço de um porco ou de uma ovelha e estes níveis salariais alcançavam também as mulheres, já que a diferença entre a renda feminina e masculina havia diminuído drasticamente nos momentos da Peste Negra.

Para o proletário europeu, isto significou não só a conquista de um nível de vida que não foi igualado até o século XIX, mas também o desaparecimento da servidão. No fim do século XIV, as amarras entre os servos e a terra havia praticamente desaparecido (Marx, 1909, T. I, p.788). Por todas as partes, os servos eram substituídos por camponeses livres – titulares de posses consuetudinárias (copyholds) ou de enfiteuses (leaseholds) – que só aceitavam trabalhar em troca de uma recompensa substancial.

A política sexual, o surgimento do Estado e a contrarrevolução

Todavia, no final do século XV foi posta em marcha uma contrarrevolução que atuava em todos os níveis da vida social e política. Em primeiro lugar, as autoridades políticas empreenderam importantes esforços para cooptar os trabalhadores mais jovens e rebeldes por meio de uma maliciosa política sexual, que lhes deu acesso a sexo gratuito e transformou o antagonismo de classe em hostilidade contra as mulheres proletárias. Como demonstrou Jacques Rossiaud em Medieval Prostitution (1988) A prostituição medieval, na França, as autoridades municipais praticamente descriminalizaram o estupro nos casos em que as vítimas eram mulheres de classe baixa. Na Veneza do século XIV, o estupro de mulheres proletárias solteiras raramente tinha como consequência algo além de um puxão de orelhas, até mesmo no caso frequente de ataques em grupo (Ruggiero, 1989, p. 94, 91-108). O mesmo ocorria na maioria das cidades francesas. Nelas, o estupro coletivo de mulheres proletárias se tornou uma prática comum, que os autores realizavam aberta e ruidosamente durante a noite, em grupos de dois a quinze, invadindo as casas ou arrastando as vítimas pelas ruas sem a menor intenção de se esconder ou dissimular. Aqueles que participavam desses “esportes” eram aprendizes ou empregados domésticos, jovens e filhos das famílias ricas sem um centavo no bolso, enquanto as mulheres eram meninas pobres que trabalhavam como criadas ou lavadeiras, sobre as quais circulavam rumores de que eram “mantidas” por seus senhores (Rossiaud, 1988, p. 22). Em média, metade dos jovens participou alguma vez nesses ataques, que Rossiaud descreve como uma forma de protesto de classe, um meio para que homens proletários – forçados a postergar seus casamentos por muitos anos, devido às suas condições econômicas – cobrassem aquilo que era “seu” e se vingassem dos ricos. Porém, os resultados foram destrutivos para todos os trabalhadores, pois o estupro de mulheres pobres com consentimento estatal debilitou a solidariedade de classe que se havia alcançado na luta antifeudal. Como era de se esperar, as autoridades encararam os distúrbios causados por essa política (as brigas, a presença de bandos de jovens perambulando pelas ruas em busca de aventuras e perturbando a tranquilidade pública) como um preço pequeno a se pagar em troca da diminuição das tensões sociais, já que estavam obcecadas pelo medo das grandes insurreições urbanas e pela crença de que, se os homens pobres conseguissem se impor, eles se apoderariam de suas esposas e disporiam delas coletivamente (ibidem, p. 13).

Para estas mulheres proletárias, tão arrogantemente sacrificadas por senhores e servos, o preço a pagar foi incalculável. Uma vez estupradas, não era fácil recuperar seu lugar na sociedade. Com a reputação destruída, tinham que abandonar a cidade ou se dedicar à prostituição (ibidem; Ruggiero, 1985, p. 99). Porém, elas não eram as únicas que sofriam. A legalização do estupro criou um clima intensamente misógino que degradou todas as mulheres, qualquer que fosse sua classe. Também insensibilizou a população frente à violência contra as mulheres, preparando o terreno para a caça às bruxas que começaria nesse mesmo período. Os primeiros julgamentos por bruxaria ocorreram no final do século XIV; pela primeira vez, a Inquisição registrou a existência de uma heresia e de uma seita de adoradores do demônio completamente feminina.

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Bordel, de uma gravura em metal alemã do século XV. Os bordéis eram vistos como um remédio contra os protestos sociais, a heresia e a homosexualidade.

Outro aspecto da política sexual fragmentadora que príncipes e autoridades municipais levaram a cabo com a finalidade de dissolver o protesto dos trabalhadores foi a institucionalização da prostituição, implementada a partir do estabelecimento de bordéis municipais que logo proliferaram por toda a Europa. Tornada possível graças ao regime de salários elevados, a prostituição gerida pelo Estado foi vista como um remédio útil contra a turbulência da juventude proletária, que podia desfrutar na Grand Maison – como era chamado o bordel estatal na França – de um privilégio antes reservado a homens mais velhos (Rossiaud, 1988). O bordel municipal também era considerado um remédio contra a homossexualidade (Otis, 1985), que em algumas cidades europeias (por exemplo, Pádua e Florença) se praticava ampla e publicamente, mas que depois da Peste Negra começou a ser temida como causa de despovoamento.34

Como outras cidades italianas do século XV, Florença acreditava que a prostituição patrocinada oficialmente combatia outros dois males incomparavelmente mais importantes do ponto de vista moral e social: a homossexualidade masculina – a cuja prática se atribuía o obscurecimento da diferença entre os sexos e, portanto, de toda a diferença e decoro – e a diminuição da população legítima como consequência de uma quantidade insuficiente de matrimônios.

Trexler aponta que é possível encontrar a mesma correlação entre a difusão da homossexualidade, a diminuição da população e o patrocínio estatal da prostituição em Lucca, Veneza e Siena entre o final do século XIV e o início do XV; aponta também que o crescimento na quantidade e no poder social das prostitutas levou finalmente a uma reação violenta, de tal maneira que, enquanto:

[No] começo do século XV, pregadores e estadistas haviam acreditado profundamente em Florença que nenhuma cidade em que mulheres e homens parecessem iguais podiam se sustentar por muito tempo […] um século mais tarde, perguntavam para si mesmos se uma cidade poderia sobreviver enquanto as mulheres de classe alta não pudessem ser diferenciadas das prostitutas de bordel (Ibidem, p.65).

Assim, entre 1350 e 1450, em cada cidade e aldeia da Itália e da França foram abertos bordéis geridos publicamente e financiados por impostos, numa quantidade muito superior à atingida no século XIX. Em 1453, só Amiens tinha 53 bordéis. Além disso, foram eliminadas todas as restrições e penalidades contra a prostituição. As prostitutas agora podiam abordar seus clientes em qualquer parte da cidade, inclusive na frente da igreja e durante a missa. Não estavam mais ligadas a nenhum código de vestimenta ou obrigadas a usar marcas distintivas, pois a prostituição era oficialmente reconhecida como um serviço público (ibidem, p. 9-10).

Até mesmo a Igreja chegou a ver a prostituição como uma atividade legítima. Acreditava-se que o bordel administrado pelo Estado provia um antídoto contra as práticas sexuais orgiásticas das seitas hereges e que era um remédio para a sodomia, assim como também era visto como um meio para proteger a vida familiar.

É difícil discernir, de forma retrospectiva, até que ponto esse “recurso sexual” ajudou o Estado a disciplinar e dividir o proletariado medieval. O que é certo é que esse new deal foi parte de um processo mais amplo que, em resposta à intensificação do conflito social, levou à centralização do Estado como o único agente capaz de confrontar a generalização da luta e de preservar as relações de classe.

Nesse processo, como se verá mais adiante, o Estado tornou-se o gestor supremo das relações de classe e o supervisor da reprodução da força de trabalho – uma função que continua desempenhando até os dias de hoje. No exercício desse poder, em muitos países foram criadas leis que estabeleciam limites ao custo do trabalho (fixando o salário máximo), proibiam a vadiagem (agora duramente castigada) (Geremek, 1985, p.61 e segs.) e incentivavam os trabalhadores a se reproduzirem

Em última instância, o crescente conflito de classes provocou uma nova aliança entre a burguesia e a nobreza, sem a qual as revoltas proletárias não poderiam ter sido derrotadas. De fato, é difícil aceitar a afirmação frequentemente feita pelos historiadores, segundo a qual essas lutas não tinham possibilidades de sucesso devido à estreiteza de seu horizonte político e “à confusão de suas demandas”. Na verdade, os objetivos dos camponeses e artesãos eram absolutamente transparentes. Eles exigiam que “cada homem tivesse tanto quanto qualquer outro” (Pirenne, 1937, p. 202) e, para atingir tal objetivo, uniam-se a todos aqueles “que não tinham nada a perder”, atuando conjuntamente, em diferentes regiões, sem medo de enfrentar os exércitos bem treinados da nobreza, apesar de não ter treinamento militar.

Se eles foram derrotados, foi porque todas as forças do poder feudal – a nobreza, a Igreja e a burguesia –, apesar de suas divisões tradicionais, os enfrentaram de forma unificada por medo de uma rebelião proletária. Com efeito, a imagem que chegou a nós de uma burguesia em guerra permanente contra a nobreza e que levava em suas bandeiras o clamor pela igualdade e pela democracia é uma distorção. Na Baixa Idade Média, para onde quer que olhemos, desde a Toscana até a Inglaterra e os Países Baixos, encontramos a burguesia já aliada com a nobreza visando à eliminação das classes baixas.35 A burguesia reconheceu, tanto nos camponeses quanto nos tecelões e sapateiros democratas de suas cidades, um inimigo que fez até mesmo com que valesse a pena sacrificar sua preciosa autonomia política. Foi assim que a burguesia urbana, depois de dois séculos de lutas para conquistar a soberania plena dentro das muralhas de suas comunas, restituiu o poder à nobreza, subordinando-se voluntariamente ao reinado do Príncipe e dando, assim, o primeiro passo em direção ao Estado absolutista.
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John Hus martirizado em Gottlieben sobre o rio Reno em 1413. Depois de sua morte, suas cinzas foram arremessadas ao rio.

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Albrecht Dürer, A queda do homem (1510). Esta cena impactante, da expulsão de Adão e Eva dos Jardins do Éden, evoca a expulsão do campesinato das terras comunais, que começou a ocorrer na Europa ocidental exatamente na época em que Dürer produzia este trabalho.

Notas
1. ↑ O melhor exemplo de sociedade bárbara foram os bagaudae (ou bacaudae), que ocuparam a Gália por volta do ano 300 a.C. (Dockes, 1982, p. 87). Vale a pena recordar sua história. Eram camponeses e escravos libertos que, exasperados pelas penúrias que haviam sofrido devido às disputas entre os aspirantes ao trono romano, perambulavam sem rumo fixo, armados com ferramentas de cultivo e cavalos roubados, em bandos errantes (daí seu nome “bando de combatentes”) (Randers-Pehrson, 1983, p. 26). As pessoas das cidades a eles se uniam e formavam, assim, comunidades autogovernadas, nas quais cunhavam moedas com a palavra “Esperança” escrita em sua cara, elegiam líderes e administravam a justiça. Derrotados no campo aberto por Maximiliano, correligionário do imperador Diocleciano, lançaram-se na guerra de “guerrilhas” para reaparecerem com força no século V, quando se converteram no objetivo de reiteradas ações militares. No ano de 407 d.C. foram os protagonistas de uma “feroz insurreição”. O imperador Constantino os derrotou em batalha na Armórica (Bretanha) (Ibidem, p. 124). Os “escravos rebeldes e camponeses haviam criado uma organização ‘estatal’ autônoma, expulsando os oficiais romanos, expropriando os proprietários, reduzindo a escravos quem possuía escravos e organizando um sistema judicial e um exército” (Dockes, 1982, p. 87). Apesar das numerosas tentativas de reprimi-los, os bagaudae nunca foram completamente derrotados. Os imperadores romanos tiveram que recrutar tribos de invasores “bárbaros” para dominá-los. Constantino retirou os visigodos da Espanha e fez generosas doações de terra a eles na Gália, esperando que pusessem sob controle os bagaudae. Até mesmo os hunos foram recrutados para persegui-los (Randers-Pehrson, 1983, p. 189). Porém, novamente encontramos os bagaudae lutando com os visigodos e os alanos contra o avanço de Átila.
2. ↑ Os ergástulos eram as vivendas dos escravos nas vilas romanas. Tratava-se de “prisões subterrâneas”, nas quais os escravos dormiam acorrentados; as janelas eram tão altas (de acordo com a descrição de um senhor de terra da época) que os escravos não podiam alcançá-las (Dockes, 1982, p.69). ”Era possível […] encontrá-las quase em qualquer parte”, nas regiões conquistadas pelos romanos “onde os escravos superavam de forma ampla numericamente os homens livres” (Ibidem, p. 208). O nome ergastolo ainda é utilizado na justiça penal italiana com o significado de “prisão perpétua”.
3. ↑ Demesne, mansus e hide eram termos usados no direito medieval inglês. N.T.E.
4. ↑ Marx refere-se a esta questão no Tomo III do Capital, quando compara a economia da servidão às economias escravista e capitalista. “O grau no qual o trabalhador (servo autossuficiente) pode ganhar aqui um excedente além de seus meios de subsistência imprescindíveis […] depende, se outras circunstâncias permanecem constantes, da proporção em que se divide seu tempo de trabalho em tempo de trabalho para si mesmo e em tempo de prestação pessoal servil para o senhor feudal […] Nestas condições, o excedente de trabalho realizado pelos servos só pode ser subtraído mediante uma coerção extraeconômica, seja qual for a forma que esta assuma” (Marx, 1909, Vol. III, p. 917-18).
5. ↑ A expressão inglesa commons adquiriu, com seu uso, a condição de substantivo. Refere-se ao “comum” ou o “tido em comum”, quase sempre com uma conotação espacial. Decidimos traduzi-lo, se corresponder, como “terras comunais” ou “o comum”. Vários autores contribuíram com a discussão acerca da permanência da “acumulação primitiva” em termos de enclosure (cercamento) dos commons. Entre eles, cabe mencionar, além de Silvia Federici, George Caffentzis, Peter Linebaugh, Massimo de Angelis, Nick Dyer-Witheford, o coletivo Midnight Notes e aqueles que contribuem com a revista The Commoner. N.T. E.
6. ↑ Para uma discussão sobre a importância dos bens e direitos comuns na Inglaterra, ver Joan Thrisk (1964), Jean Birrell (1987) e J. M. Neeson (1993). Os movimentos ecologistas e ecofeministas deram ao comum um novo sentido político. Para uma perspectiva ecofeminista da importância do comum na economia da vida das mulheres, ver Vandana Shiva (1989).
7. ↑ Para uma discussão sobre a estratificação do campesinato europeu, ver R. Hilton (1985, p. 116-17, 141-51) e J. Z. Titow (1969, p. 56-9). É de especial importância a distinção entre liberdade pessoal e liberdade de posse. A primeira significava que um camponês não era um servo, ainda que que ele ou ela, pudessem ter que fornecer serviços laborais. A última queria dizer que um camponês tinha uma terra que não estava associada a obrigações servis. Na prática, ambas tendiam a coincidir; isso começou a mudar, entretanto, quando os camponeses livres passaram a adquirir terras que acarretavam encargos servis a fim de expandir suas propriedades. Assim, “encontramos camponeses livres (liberi) em posse de terra vilã e encontramos vilões (villani, nativi) em posse vitalícia de terras, embora ambos os casos sejam raros e estivessem mal considerados” (Titow, 1969, p. 56-7).
8. ↑ O exame de testamentos de Kibworth (Inglaterra), no século XV, realizado por Barbara Hanawalt, mostra que “em 41% dos testamentos, os homens preferiram filhos homens adultos, enquanto que, em 29% dos casos, escolheram somente a mulher ou a mulher e um filho homem” (Hanawalt, 1986b, p. 155).
9. ↑ Hanawalt vê a relação matrimonial entre camponeses como uma “sociedade”. “As transações de terra nas cortes feudais indicam uma forte prática de responsabilidade e tomada de decisões de ambos […] Marido e mulher também aparecem comprando e vendendo terrenos para eles ou para seus filhos” (Hanawalt, 1986b, p. 16). Sobre a contribuição das mulheres ao trabalho agrícola e ao controle do excedente de produtos alimentícios, ver Shahar (1983, p. 239-42). E sobre a contribuição extralegal das mulheres em seus lares, B. Hanawalt (1986b, p. 12). Na Inglaterra, “o espigamento ilegal era a forma mais comum para uma mulher obter mais grãos para sua família” (Ibidem).
10. ↑ Esta é a limitação de alguns estudos – em outros sentidos, excelentes – produzidos em anos recentes sobre as mulheres na Idade Média por parte de uma nova geração de historiadoras feministas. Compreensivelmente, a dificuldade de apresentar uma visão sintética de um campo cujos contornos empíricos ainda estão sendo reconstruídos levou a certa tendência por análises descritivas, focadas nas principais classificações da vida social das mulheres: “a mãe”, “a trabalhadora”, “mulheres em zonas rurais”, “mulheres nas cidades”, com frequência abstraídas da mudança social e econômica e da luta social.
11. ↑ Como escreve J. Z. Titow, no caso dos camponeses ingleses sob regime de servidão: “Não é difícil ver por que o aspecto pessoal da vilanagem seria eclipsado, na mente dos camponeses, pelo problema dos serviços laborais […] As incapacidades que surgem do status submisso teriam lugar somente de forma esporádica […] Não tanto quanto os serviços laborais, em particular o trabalho semanal, que obrigava um homem a trabalhar para seu senhor tantos dias da semana, todas as semanas, além de prestar outros serviços ocasionais”. (Titow, 1969, p. 59
12. ↑ “Se tomarmos as primeiras páginas dos registros de Abbots Langley:multavam-se os homens por não irem à colheita ou por não irem com uma quantidade suficiente de homens; chegavam tarde e, quando chegavam, faziam mal seu trabalho ou com preguiça. Às vezes não apenas um servo, mas um grupo inteiro faltava e deixava os cultivos do senhor sem serem colhidos. Outros chegavam a ir, mas se mostravam muito antipáticos”. (Bennett, 1967, p. 112
13. ↑ A distinção entre “cidade” e “vilarejo” nem sempre é clara. Para nossos propósitos neste trabalho, cidade é um centro povoado com cédula real, sede episcopal e mercado, enquanto vilarejo é um centro povoado (geralmente menor que a cidade) sem um mercado permanente.
14. ↑ O seguinte trecho é um retrato estatístico da pobreza rural em Picardy no século XIII: indigentes e mendigos representavam 13%; proprietários de pequenas parcelas de terra, economicamente tão instáveis que uma má colheita era uma ameaça à sua sobrevivência, eram 33%; camponeses com mais terra, porém sem animais de trabalho, 36%; camponeses ricos, 19% (Geremek, 1994, p. 57). Na Inglaterra, em 1280, os camponeses com menos de três acres de terra — insuficientes para alimentar uma família — representavam 46% do campesinato (ibidem).
15. ↑ A seguinte canção das fiandeiras de seda oferece uma imagem gráfica da pobreza em que viviam as trabalhadoras não qualificadas das cidades (Geremeck, 1994, p. 65): “Sempre fiando lençóis de seda / Nunca estaremos mais bem vestidas / Porém, sempre desnudas e pobres, / E sempre sofrendo de fome e sede”. Nos arquivos municipais franceses, as fiandeiras e outras assalariadas eram associadas com as prostitutas, possivelmente porque viviam sozinhas e não tinham uma estrutura familiar por trás delas. Nas cidades, as mulheres não padeciam da pobreza, mas também da fata de parentes, que as deixava vulneráveis ao abuso (Hughes 1975, p. 21; Geremek 1994, p. 65-66; Otis 1985, p. 18-20; Hilton 1985, p. 212-13
16. ↑ Para uma análise das mulheres nas guildas medievais, ver Maryanne Kowaleski e Judith M. Bennett (1989); David Herlihy (1995); e Williams e Echols (2000).
17. ↑ (Russell, 1972, p. 136; Lea, 1961, p. 126-27). O movimento dos pastoreaux também foi provocado pelos acontecimentos do Oriente, neste caso, a captura do rei Luís IX da França pelos muçulmanos, no Egito, em 1249 (Hilton, 1973, p. 100-02). Um movimento formado por “gente pobre e simples” se organizou para libertá-lo, mas rapidamente adquiriu um caráter anticlerical. Os pastoreaux reapareceram, no sul da França, na primavera e no verão de 1320, ainda “diretamente influenciados pela atmosfera das cruzadas […] Eles não tiveram a oportunidade de participar das cruzadas no Oriente; em seu lugar utilizaram suas energias para atacar as comunidades judaicas do sudoeste da França, Navarra e Aragão, muitas vezes com a cumplicidade dos consulados locais, antes de serem barrados ou dispersados pelos funcionários reais” (Barber, 1992, p. 135-36).
18. ↑ A Cruzada contra os albigenses (cátaros do povoado de Albi, no sul da França) foi o primeiro ataque em grande escala contra os hereges e a primeira Cruzada contra europeus. O papa Inocêncio III colocou-a em marcha nas regiões de Toulouse e Montpellier depois de 1209. A partir desse momento a perseguição aos hereges se intensificou de forma dramática. Em 1215, por ocasião do quarto Concílio de Latrão, Inocêncio III incluiu nos cânones conciliares um conjunto de medidas que condenavam os hereges ao exílio, ao confisco de suas propriedades, ao mesmo tempo em que os excluía da vida civil. Mais tarde, em 1224, o imperador Frederico II uniu-se à perseguição com o ordenamento Cum ad conservandum, que definia a heresia como um crime de lesa maiestatis que devia ser castigado com a morte na fogueira. Em 1229, o Concílio de Toulouse estabeleceu que os hereges deveriam ser identificados e castigados. Os hereges declarados e seus protetores deviam ser queimados na fogueira. A casa onde um herege era descoberto devia ser destruída e a terra sobre a qual estava construída devia ser confiscada. Aqueles que renegavam suas crenças deviam ser emparedados, enquanto aqueles que reincidissem tinham que sofrer o suplício da fogueira. Depois, em 1231-1233, Gregório IX instituiu um tribunal especial com a função específica de erradicar a heresia: a Inquisição. Em 1254 o papa Inocêncio IV, com o consenso dos principais teólogos da época, autorizou o uso da tortura contra os hereges (Vauchez, 1990, p. 163-65).
19. ↑ André Vauchez atribui o “sucesso” da Inquisição a seus procedimentos. A prisão de suspeitos era planejada em absoluto segredo. A princípio, a perseguição consistia em incursões contra as reuniões dos hereges, organizadas em colaboração com as autoridades públicas. Mais adiante, quando os valdenses e cátaros já haviam sido forçados à clandestinidade, os suspeitos eram chamados a comparecer ante um tribunal sem que lhes fossem ditas as razões pelas quais haviam sido convocados. O mesmo sigilo caracterizava o processo de investigação. Não eram informadas aos investigados quais eram as acusações contra eles e era permitido manter-se o anonimato daqueles que denunciavam. Os suspeitos eram liberados se dessem informações sobre seus cúmplices e prometessem manter suas confissões em silêncio. Desta forma, quando os hereges eram presos nunca podiam saber se alguém de sua congregação havia deposto em seu prejuízo (Vauchez, 1990, p. 167-68). Como destaca Italo Mereu, o trabalho da Inquisição romana deixou cicatrizes profundas na história da cultura europeia, criando um clima de intolerância e suspeita institucional que continua corrompendo o sistema legal até nossos dias. O legado da Inquisição é uma cultura de suspeita que depende da denúncia anônima e da detenção preventiva e trata os suspeitos como se sua culpabilidade já tivesse sido demonstrada (Mereu, 1979).
20. ↑ Lembremos aqui da distinção de Friedrich Engels entre as crenças hereges de camponeses e artesãos, associadas à sua oposição à autoridade feudal e aquelas dos burgueses, que eram principalmente um protesto contra o clero (Engels, 1977, p. 43).
21. ↑ A politização da pobreza, junto com o surgimento de uma economia monetária, introduziu uma mudança decisiva na atitude da Igreja perante os pobres. Até o século XIII, a Igreja exaltou a pobreza como um estado de santidade e se dedicou à distribuição de esmolas, tratando de convencer os rústicos a aceitarem sua situação e não invejarem os ricos. Nos sermões dominicais, os padres eram pródigos em histórias como a do pobre Lázaro sentado no céu ao lado de Jesus e vendo seu vizinho rico, mas avarento, ardendo em chamas. A exaltação da sancta paupertas “santa pobreza” também servia para demarcar para os ricos a necessidade da caridade como meio de salvação. Com esta tática, a Igreja conseguia doações substanciais de terras, edifícios e dinheiro, supostamente a fim de distribuir entre os necessitados; assim, tornou-se uma das instituições mais ricas da Europa. Porém, quando o número de pobres aumentou e os hereges começaram a desafiar a ganância e a corrupção da Igreja, o clero retirou suas homilias sobre a pobreza e introduziu muitos distinguo. A partir do século XIII, a Igreja afirmou que somente a pobreza voluntária tinha mérito ante os olhos de Deus, como sinal de humildade e renúncia aos bens materiais; na prática, isto significava que agora apenas seria oferecida ajuda aos “pobres que merecessem”, isto é, aos membros empobrecidos da nobreza e não aos que mendigavam nas ruas ou nas portas da cidade. Esses últimos eram vistos cada vez mais como suspeitos de vadiagem ou fraude.
22. ↑ Entre os valdenses se deu uma grande polêmica sobre qual era a forma correta de manter-se. Ela foi resolvida no Encontro de Bérgamo, em 1218, com uma importante ruptura entre as duas vertentes principais do movimento. Os valdenses franceses (Pobres de Lyon) optaram por uma vida baseada na esmola, enquanto que os da Lombardia decidiram que cada um deveria viver de seu próprio trabalho e formar coletivos de trabalhadores ou cooperativas (congregationes laborantium) (di Stefano, 1950, p.775). Os valdenses lombardos mantiveram seus pertences – casas e outras formas de propriedade privada – e aceitaram o matrimônio e a vida familiar (Little, 1978, p. 125).
23. ↑ Holmes (1975, p. 202), Hilton (1973, p. 124) e N. Cohn (1970, p. 215-17). Segundo descrição de Engels, os taboritas eram a ala democrática revolucionária do movimento nacional de libertação hussita contra a nobreza alemã na Boêmia. Disto, Engels apenas nos diz que “suas demandas refletiam o desejo do campesinato e das classes baixas urbanas de acabar com toda a opressão feudal” (Engels, 1977, p. 44n). Porém, sua história surpreendente é narrada com maiores detalhes em The Inquisition of the Middle Ages, de H. C. Lea (1961, p. 523-40), onde lemos que eram camponeses e pessoas pobres que não queriam nobres e senhores entre eles e que tinham tendências republicanas. Eram chamados de taboritas, porque em 1419, quando os hussitas de Praga foram atacados, seguiram viagem até o monte Tabor. Ali, fundaram uma nova cidade que se tornou o centro tanto da resistência contra a nobreza alemã quanto de experimentos comunistas. A história conta que, quando chegaram de Praga, abriram grandes baús nos quais foi pedido a cada um que guardasse suas posses, para que todas as coisas pudessem ser comuns. Aparentemente, este acordo coletivo não durou muito, mas seu espírito perdurou durante algum tempo depois de sua desaparição (Demetz, 1997, p. 152-57).
Os taboritas se distinguiam dos utraquistas – mais moderados -, pois dentre seus objetivos estava a independência da Boêmia e a retenção da propriedade que haviam confiscado (Lea, 1961, p. 530). Ambos coincidiam nos quatro artigos de fé em que se uniam ao movimento hussita frente a inimigos externos: I. Livre pregação da Palavra de Deus; II. Comunhão (tanto do vinho quanto do pão); III. Abolição do domínio do clero sobre as posses temporais e seu retorno à vida evangélica de Cristo e dos apóstolos; IV. Castigo de todas as ofensas à lei divina sem exceção de pessoa ou condição. A unidade era muito necessária. Para sufocar a revolta dos hussitas, em 1421, a Igreja enviou um exército de 150 mil homens contra taboritas e utraquistas. “Cinco vezes”, escreve Lea, “ao longo de 1421, os cruzados invadiram a Boêmia e nas cinco vezes foram derrotados”. Dois anos mais tarde, no Concílio de Siena, a Igreja decidiu que se não podiam derrotar militarmente os hereges da Boêmia, tinha que isolá-los e matá-los de fome por meio de um bloqueio. Mas isso também falhou e as ideias hussitas continuaram sendo difundidas na Alemanha, Hungria e nos territórios eslavos do sul. Outro exército de 100 mil homens foi lançado contra eles em 1431, novamente em vão. Desta vez, os cruzados fugiram do campo de batalha ainda antes que a batalha começasse, ao “ouvirem o canto de batalha das temidas tropas hussitas” (ibidem).
O que finalmente destruiu os taboritas foram as negociações entre a Igreja e a ala moderada dos hussitas. Habilmente, os diplomatas eclesiásticos aprofundaram a divisão entre os utraquistas e os taboritas. Assim, quando se empreendeu outra cruzada contra os hussitas, os utraquistas se uniram aos barões católicos pagos pelo Vaticano e exterminaram seus irmãos na Batalha de Lipany, em 30 de maio de 1434. Nesse dia, 13 mil taboritas foram mortos no campo de batalha. As mulheres do movimento taborita eram muito ativas, assim como todos os movimentos hereges. Muitas lutaram na batalha por Praga, em 1420, quando 1.500 mulheres taboritas cavaram uma trincheira que defenderam com pedras e forquilhas (Demetz, 1997).
24. ↑ Estas palavras – “o chamamento à igualdade social mais comovente da história da língua inglesa”, de acordo com o historiador R. B. Dobson – foram postas na boca de John Ball para incriminá-lo e fazê-lo parecer um idiota por Jean Froissart, um cronista francês contemporâneo, severo opositor da Revolta Camponesa Inglesa. A primeira oração do sermão que, segundo se dizia, John Ball havia proferido muitas vezes, é a seguinte (na tradução de Lord Berners, século XVI): “Ah, vocês, pessoas de bem, as coisas não estão bem na Inglaterra, não estarão até que tudo seja comum e até que não haja mais servos nem cavaleiros, mas estejamos todos unidos e os senhores não sejam mais senhores que nós mesmos” (Dobson, 1983, p.371).
25. ↑ Por volta de 1210, a Igreja havia estabelecido que a reivindicação da abolição da pena de morte era um “erro” herege, que atribuía aos valdenses e aos cátaros. A pressuposição de que os opositores à Igreja eram abolicionistas era tão forte que cada herege que queria se submeter à Igreja tinha que afirmar que “o poder secular pode, sem cometer o pecado capital, praticar juízos de sangue, com a condição de que castigue com justiça, não por ódio, com prudência, sem precipitação” (Mergivern, 1997, p. 101). Como destaca J. J. Mergiven, o movimento herege adotou superioridade moral nesta questão e “forçou os ‘ortodoxos’, ironicamente, a assumir a defesa de uma prática muito questionável” (ibidem, p. 103).
26. ↑ Entre as provas da influência dos bogomilos sobre os cátaros se encontram dois trabalhos que “os cátaros da Europa ocidental tomaram dos bogomilos”: A visão de Isaías e A ceia secreta, citados na resenha de literatura cátara de Wakefield e Evans (1969, p.447-65). Os bogomilos eram para a Igreja oriental o que os cátaros foram para a ocidental. Além de seu maniqueísmo e antinatalismo, o que mais alarmava as autoridades bizantinas era o “anarquismo radical”, a desobediência civil e o ódio de classe dos bogomilos. Como escreveu o presbítero Cosmo em seus sermões contra eles: “Ensinam sua gente a não obedecer a seus senhores, injuriam os ricos, odeiam o rei, ridicularizam os anciãos, condenam os boiardos, veem como vis ante os olhos de Deus aqueles que servem ao rei e proíbem os servos de trabalhar para seu patrão”. A heresia teve uma enorme e longa influência no campesinato dos Bálcãs. “Os bogomilos pregavam na linguagem do povo e sua mensagem foi compreendida pelo povo […] sua organização flexível, suas soluções atraentes para o problema do mal e seu compromisso com o protesto social tornaram o movimento praticamente indestrutível” (Browning, 1975, p. 164-66). A influência dos bogomilos sobre a heresia pode ser rastreada no uso frequente no século XIII da expressão buggery sodomia para conotar, primeiro, heresia e, depois, homossexualidade (Bullough, 1976a, p. 76 e segs.). Buggery é uma palavra utilizada em inglês como sinônimo de “sodomia” e deriva de “búlgaro”. Os bogomilos eram frequentemente associados aos povos da região que hoje é ocupada pela Bulgária N.T.E.
27. ↑ A proibição que a Igreja impunha aos casamentos e concubinatos dos clérigos era motivada, mais que por alguma necessidade de restaurar sua reputação, pelo desejo de defender sua propriedade, que estaria ameaçada por muitas subdivisões e pelo medo de que as esposas dos padres interferissem excessivamente nas questões do clero (McNamara e Wemple, 1988, p.93-5). A resolução do Segundo Concílio de Latrão reforçou uma outra que já havia sido adotada no século anterior, mas que não havia sido colocada em prática, devido a uma revolta generalizada contrária a ela. O protesto atingiu seu clímax em 1061, com uma “rebelião organizada” que levou à eleição do Bispo de Parma como antipapa, sob o título de Honório II, e à sua posterior tentativa frustrada de capturar Roma (Taylor, 1954, p.35). O Concílio de Latrão de 1123 não apenas proibiu os casamentos no clero, mas também declarou nulos os que já existiam, impondo uma situação de terror e pobreza às famílias dos padres, especialmente a suas esposas e filhos (Brundage, 1987, p. 214, 216-7).
28. ↑ Os cânones reformados do século XII ordenavam aos casais casados evitar o sexo durante os três períodos da quaresma associados com a páscoa, a pentecostes e natal, em qualquer domingo do ano, nos dias festivos que antecediam o recebimento da comunhão, nas noites de bodas, durante o período menstrual da esposa, durante a gravidez, durante a amamentação e enquanto faziam penitência (Brundage, 1987, p. 198-199). Estas restrições não eram novas. Eram reafirmações da sabedoria eclesiástica expressas em dúzias de Penitenciais. A novidade era sua incorporação ao corpo da Lei Canônica “que foi transformada em um instrumento efetivo para o governo e disciplina eclesiásticas no século XII”. Tanto a Igreja como os laicos reconheciam que um requisito legal, com penalidades explícitas, teria um estatuto diferente a uma penitência sugerida pelo confessor pessoal de cada um. Neste período, as relações mais íntimas entre pessoas se converteram em assunto de advogados e criminólogos (Brundage, 1987, p. 578).
29. ↑ A relação entre as beguinas e a heresia é incerta. Enquanto alguns de seus contemporâneos, como Jacques de Vitry – descrito por Carol Neel como “um importante ministro eclesiástico” – apoiou sua iniciativa como uma alternativa à heresia, “foram, finalmente, condenadas sob suspeita de heresia pelo Concílio de Viena de 1312”, provavelmente pela intolerância do clero contra as mulheres que escapavam do controle masculino. As beguinas desapareceram posteriormente “forçadas a deixar de existir pela reprovação eclesiástica” (Neel, 1989, p. 324-27, 329, 333, 339).
30. ↑ Os Ciompi eram os encarregados de lavar, pentear e lubrificar a lã para que pudesse ser trabalhada. Eram considerados trabalhadores não qualificados e tinham o status social mais baixo. “Ciompo” é um termo pejorativo que significa sujo e andrajoso, provavelmente devido ao fato de que os Ciompi trabalhavam seminus e sempre estavam engordurados e manchados com tintas. Sua revolta começou em julho de 1382, disparada pelas notícias de que um deles, Simoncino, havia sido preso e torturado. Aparentemente, fizeram-lhe revelar, sob tortura, que os Ciompi haviam tido reuniões secretas durante as quais, beijando-se na boca, haviam prometido defender-se mutuamente dos abusos de seus empregadores. Ao saberem da prisão de Simoncino, os trabalhadores correram até a casa da guilda da indústria da lã (o Palazzo dell’Arte) para exigir a libertação de seu companheiro. Depois, uma vez libertado, ocuparam a casa da guilda, estabeleceram patrulhas sobre a Ponte Vecchio e penduraram a insígnia das “guildas menores” (arti minori) nas janelas da sede da guilda. Também ocuparam a prefeitura, onde afirmaram haver encontrado uma sala cheia de cordas de forca destinadas a eles, segundo acreditavam. Aparentemente, com a situação sob controle, os Ciompi apresentaram uma petição exigindo que fossem incorporados ao governo, que não continuassem sendo castigados com a amputação de uma mão pela inadimplência, que os ricos pagassem mais impostos e que os castigos corporais fossem substituídos por multas em dinheiro. Na primeira semana de agosto, formaram uma milícia e criaram novos ofícios, enquanto eram realizados preparativos para eleições nas quais, pela primeira vez, participariam membros dos Ciompi. No entanto, seu novo poder não durou mais que um mês, já que os magnatas da lã organizaram um lock-out que os reduziu à fome. Depois de serem derrotados, muitos foram presos, enforcados e decapitados; muitos mais tiveram que abandonar a cidade num êxodo que marcou o início da decadência da indústria da lã em Florença (Rodolico, 1971, p.passim).
31. ↑ Depois da Peste Negra, os países europeus passaram a condenar a vadiagem e a perseguir a vagabundagem, a mendicância e a recusa ao trabalho. A Inglaterra teve a iniciativa com o Estatuto de 1349 que condenava os salários altos e a vadiagem, estabelecendo que quem não trabalhasse e não possuísse nenhum meio de sobrevivência teria que aceitar qualquer trabalho. Na França, foram emitidas ordenanças similares, no ano de 1351, recomendando às pessoas que não dessem comida nem hospedagem a mendigos e vagabundos com boa saúde. Uma ordenança posterior estabeleceu, em 1354, que aqueles que permanecessem ociosos, passassem o tempo em tavernas, jogando dados ou mendigando, teriam que aceitar trabalho ou aguentar as consequências; os infratores primários iam à prisão a pão e água, enquanto que os reincidentes eram colocados no tronco e quem infringisse pela terceira vez era marcado a fogo na fronte. Na legislação francesa surgiu um novo elemento que se tornou parte da luta moderna contra os vagabundos: o trabalho forçado. Em Castela, uma ordenança introduzida em 1387 permitia aos particulares prender vagabundos e empregá-los durante um mês sem salário (Geremek, 1985, p.53-65).
32. ↑ O conceito de “democracia dos trabalhadores” pode parecer absurdo quando é aplicado a estas formas de governo. Porém, devemos considerar que, nos Estados Unidos, comumente considerado um país democrático, todavia, nenhum trabalhador industrial havia se tornado presidente e que os órgãos mais altos de governo estão completamente ocupados pelos representantes da aristocracia econômica.
33. ↑ Os remensas eram uma liquidação de impostos que os servos camponeses tinham que pagar na Catalunha para deixar suas terras. Depois da Peste Negra, os camponeses sujeitos aos remensas também estavam submetidos a um novo imposto conhecido como os mals usos que, em épocas anteriores, havia sido aplicado de maneira menos generalizada (Milton, 1973, p. 117-8). Estes novos impostos e os conflitos em torno do uso de terras abandonadas deram origem a uma guerra regional prolongada, em cujo transcurso os camponeses catalães recrutaram um homem a cada três famílias. Também estreitaram seus laços por meio de associações juramentadas, tomaram decisões em assembleias camponesas e, para intimidar os proprietários de terra, cobriram os campos com cruzes e outros símbolos ameaçadores. Na última fase da guerra, exigiram o fim da renda e o estabelecimento de direitos campesinos de propriedade (ibidem, p. 120-21, 133).
34. ↑ Assim, a proliferação de bordéis públicos foi acompanhada de uma campanha contra os homossexuais que se estendeu até mesmo a Florença, onde a homossexualidade era uma parte importante da tessitura social “que atraía homens de todas as idades, estados civis e níveis sociais”. A homossexualidade era tão popular em Florença que as prostitutas costumavam usar roupas masculinas para atrair seus clientes. Os sinais de mudança vieram de duas iniciativas introduzidas pelas autoridades em 1403, quando a cidade proibiu os “sodomitas” de assumirem cargos públicos e instituiu uma comissão de controle dedicada a extirpar a homossexualidade: o Escritório da Decência. Significativamente, o primeiro passo tomado pelo Escritório foi preparar a abertura de um novo bordel público, de tal forma que, em 1418, as autoridades ainda continuavam buscando meios para erradicar a sodomia “da cidade e do campo” (Rocke, 1997, p.30-2, 35). Sobre a promoção da prostituição financiada publicamente como remédio contra a diminuição da população e a “sodomia” por parte do governo florentino, ver também Richard C. Trexler (1993, p.32):

Como outras cidades italianas do século XV, Florença acreditava que a prostituição patrocinada oficialmente combatia outros dois males incomparavelmente mais importantes do ponto de vista moral e social: a homossexualidade masculina – a cuja prática se atribuía o obscurecimento da diferença entre os sexos e, portanto, de toda a diferença e decoro – e a diminuição da população legítima como consequência de uma quantidade insuficiente de matrimônios.

Trexler aponta que é possível encontrar a mesma correlação entre a difusão da homossexualidade, a diminuição da população e o patrocínio estatal da prostituição em Lucca, Veneza e Siena entre o final do século XIV e o início do XV; aponta também que o crescimento na quantidade e no poder social das prostitutas levou finalmente a uma reação violenta, de tal maneira que, enquanto:

[No] começo do século XV, pregadores e estadistas haviam acreditado profundamente em Florença que nenhuma cidade em que mulheres e homens parecessem iguais podiam se sustentar por muito tempo […] um século mais tarde, perguntavam para si mesmos se uma cidade poderia sobreviver enquanto as mulheres de classe alta não pudessem ser diferenciadas das prostitutas de bordel (Ibidem, p.65).
35. ↑ Na Toscana, onde a democratização da vida política havia chegado mais longe que em qualquer outra região europeia, na segunda metade do século XV, se deu uma inversão desta tendência e uma restauração do poder da nobreza promovida pela burguesia mercantil com a finalidade de bloquear a ascensão das classes baixas. Nessa época, foi produzida uma fusão orgânica entre as famílias dos mercadores e da nobreza, por meio do casamento e de prerrogativas compartilhadas. Isso acabou com a mobilidade social, a conquista mais importante da sociedade urbana e da vida comunal na Toscana medieval (Luzzati, 1981, p. 187, 206).

Capítulo II
A acumulação de trabalho e a degradação das mulheres. A construção da “diferença” na “transição para o capitalismo”

Me pergunto se todas as guerras, derramamento de sangue e miséria não assaltaram a criação quando um homem procurou ser senhor de outro? […] E se essa miséria não irá embora […] quando todas as ramificações da humanidade considerarem a terra como um tesouro comum a todos.

Gerrard Winstanley, The New Law of Righteousness, 1649.

Para ele, ela era uma mercadoria fragmentada cujos sentimentos e escolhas raras vezes eram consideradas: sua cabeça e seu coração estavam separados de suas costas e mãos, e divididas de seu útero e vagina. Suas costas e músculos eram forçados no trabalho do campo […,] às suas mãos se exigia cuidar e nutrir o homem branco […]. [S]ua vagina, usada para o prazer sexual dele, era a porta de acesso ao útero, lugar para os investimentos dele – o ato sexual era o investimento de capital, e o filho, a mais-valia acumulada. […]

Barbara Omolade, “Heart of Darkness“, 1983.

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1 Introdução 2 A acumulação capitalista e a acumulação de trabalho na Europa 3 A privatização da terra na Europa, a produção de escassez e a separação entre produção e reprodução 4 A Revolução dos Preços e a pauperização da classe trabalhadora europeia 5 A intervenção estatal na reprodução do trabalho: a assistência aos pobres e a criminalização da classe trabalhadora 6 Diminuição da população, crise econômica e disciplinamento das mulheres 7 A desvalorização do trabalho feminino 8 As mulheres como novos bens comuns e como substituto das terras perdidas 9 O patriarcado do salário 10 A domesticação das mulheres e a redefinição da feminilidade e da masculinidade: mulheres, selvagens da Europa 11 Colonização, globalização e mulheres 12 Sexo, raça e classe nas colônias 13 O capitalismo e a divisão sexual do trabalho

Introdução

O desenvolvimento do capitalismo não foi a única resposta à crise do poder feudal. Em toda a Europa, vastos movimentos sociais comunalistas e rebeliões contra o feudalismo haviam oferecido a promessa de uma nova sociedade construída sobre as bases da igualdade e da cooperação. Contudo, em 1525, sua expressão mais poderosa, a “Guerra Camponesa” na Alemanha, ou, como Peter Blickle a chamou, a “revolução do homem comum”, foi esmagada.1 Em represália, cem mil rebeldes foram massacrados. Mais tarde, em 1535, a “Nova Jerusalém” – a tentativa dos anabatistas na cidade de Münster de trazer o reino de Deus para a terra – também terminou em um banho de sangue. Antes, essa tentativa já havia sido enfraquecida, presumivelmente, pela virada patriarcal de seus líderes, os quais, ao impor a poligamia, levaram as mulheres em suas fileiras a se revoltar.2 Com estas derrotas, agravadas pelo desdobramento da caça às bruxas e pelos efeitos da expansão colonial, o processo revolucionário na Europa chegou ao fim. O poderio militar não foi suficiente, entretanto, para evitar a crise do feudalismo.

Na Baixa Idade Média, ante uma crise de acumulação que se prolongou por mais de um século, a economia feudal estava condenada. Podemos deduzir as dimensões dessa crise a partir de algumas estimativas básicas que indicam que, entre 1350 e 1500, houve uma mudança muito importante na relação de poder entre trabalhadores e mestres. O salário real cresceu em torno de 100%, os preços caíram por volta de 33%, os aluguéis também caíram, a extensão da jornada de trabalho diminuiu e uma tendência à autossuficiência local surgiu.3 No pessimismo dos mercadores e proprietários de terra da época – assim como nas medidas que os estados europeus adotaram para proteger os mercados, suprimir a concorrência e forçar as pessoas a trabalhar nas condições impostas –, também é possível encontrar provas de uma tendência crônica à desacumulação. Anotações nos registros dos feudos documentam que “o trabalho não valia nem o café da manhã” (Dobb, 1963, p. 54). A economia feudal não podia se reproduzir. Nem a sociedade capitalista poderia ter “evoluído” a partir dela, já que a autossuficiência e o novo regime de salários elevados permitiam a “riqueza do povo”, mas “excluíam a possibilidade da riqueza capitalista”.4

Foi em resposta a essa crise que a classe dominante europeia lançou a ofensiva global que, ao longo de ao menos três séculos, mudaria a história do planeta, estabelecendo as bases do sistema capitalista mundial, no esforço implacável de se apropriar de novas fontes de riqueza, expandir sua base econômica e colocar novos trabalhadores sob seu comando.

Como sabemos, “a conquista, a escravização, o roubo, o assassinato: em uma palavra, a violência” foram os pilares desse processo (ibidem, 785). Assim, o conceito de uma “transição para o capitalismo” é, em muitos sentidos, uma ficção. Nos anos 1940 e 1950, historiadores britânicos usaram esse conceito para definir um período – que ia aproximadamente de 1450 a 1650 – em que o feudalismo na Europa estava se decompondo, enquanto nenhum sistema sócio-econômico novo havia ainda tomado seu lugar, apesar de alguns elementos da sociedade capitalista já estarem tomando forma.5 O conceito de “transição”, portanto, nos ajuda a pensar em um processo prolongado de mudança e em sociedades nas quais a acumulação capitalista coexistia com formações políticas que não eram ainda predominantemente capitalistas. Contudo, o termo sugere um desenvolvimento histórico gradual, linear, ao passo que o período a que o termo se refere foi um dos mais sangrentos e descontínuos da história mundial – uma época que foi testemunha de transformações apocalípticas, que os historiadores só podem descrever nos termos mais duros: a Era de Ferro (Kamen), a Era do Saque (Hoskins) e a Era do Chicote (Stone). O termo “transição”, então, é incapaz de evocar as mudanças que abriram o caminho para a chegada do capitalismo e as forças que conformaram essas mudanças. Portanto, neste livro usarei esse termo principalmente em um sentido temporal, enquanto que, para os processos sociais que caracterizaram a “reação feudal” e o desenvolvimento das relações capitalistas, usarei o conceito marxiano de “acumulação primitiva” ou “originária”, ainda que concorde, como apontam alguns críticos, que devemos repensar a interpretação de Marx nesse ponto.6

Marx introduziu o conceito de “acumulação primitiva” no final do Tomo I de O Capital para descrever a reestruturação social e econômica iniciada pela classe dominante europeia em resposta à crise de acumulação e para estabelecer (em polêmica com Adam Smith)7 que: i) o capitalismo não poderia ter se desenvolvido sem uma concentração prévia de capital e trabalho; e que ii) a separação dos trabalhadores em relação aos meios de produção, e não a abstinência dos ricos, é a fonte da riqueza capitalista. A acumulação primitiva é, então, um conceito útil, já que conecta a “reação feudal” com o desenvolvimento de uma economia capitalista e identifica as condições históricas e lógicas para o desenvolvimento do sistema capitalista, no qual “primitiva” (“originária”) indica tanto uma pré-condição para a existência de relações capitalistas como um evento específico no tempo.8

Contudo, Marx analisou a acumulação primitiva quase exclusivamente partindo do ponto de vista do proletariado industrial assalariado: o protagonista, sob sua perspectiva, do processo revolucionário do seu tempo e a base para uma sociedade comunista futura. Deste modo, em sua explicação, a acumulação primitiva consiste essencialmente na expropriação da terra do campesinato europeu e a formação do trabalhador independente “livre”. Entretanto, Marx também reconheceu que:

A descoberta de ouro e prata na América, o extermínio, a escravização e o sepultamento da população nativa nas minas, a conquista e a pilhagem das Índias Orientais, a transformação da África em uma reserva para a caça comercial de peles negras […] são momentos fundamentais da acumulação primitiva.9

Marx também reconheceu que “muito capital que aparece hoje nos Estados Unidos, sem certidão de nascimento, é sangue infantil ainda ontem capitalizado na Inglaterra” (ibidem, p. 945). Por outro lado, não encontramos em seu trabalho nenhuma menção às profundas transformações que o capitalismo introduziu na reprodução da força de trabalho e na posição social das mulheres. Na análise de Marx sobre a acumulação primitiva tampouco aparece alguma referência à “grande caça às bruxas” dos séculos XVI e XVII, ainda que essa campanha terrorista patrocinada pelo Estado tenha sido fundamental para a derrota do campesinato europeu, facilitando sua expulsão das terras anteriormente comunais.

Neste capítulo e nos que seguem discuto esses eventos, especialmente com relação à Europa, defendendo que

A expropriação dos meios de subsistência dos trabalhadores europeus e a escravização dos povos originários da América e África nas minas e plantações do “Novo Mundo” não foram os únicos meios pelos quais um proletariado mundial foi formado e “acumulado”. Este processo demandou a transformação do corpo em uma máquina de trabalho e a sujeição das mulheres para a reprodução da força de trabalho. Principalmente, exigiu a destruição do poder das mulheres que, tanto na Europa como na América, foi alcançada por meio do extermínio das “bruxas”. A acumulação primitiva não foi, então, simplesmente uma acumulação e concentração de trabalhadores exploráveis e de capital. Foi também uma acumulação de diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora, na qual as hierarquias construídas sobre o gênero, assim como sobre a “raça” e a idade, se tornaram constitutivas da dominação de classe e da formação do proletariado moderno. Não podemos, portanto, identificar acumulação capitalista com liberação do trabalhador, mulher ou homem, como muitos marxistas (entre outros) têm feito, ou ver a chegada do capitalismo como um momento de progresso histórico. Pelo contrário, o capitalismo criou formas de escravidão mais brutais e traiçoeiras, na medida em que implantou no corpo do proletariado divisões profundas que servem para intensificar e ocultar a exploração. É em grande medida por causa dessas divisões impostas – especialmente a divisão entre homens e mulheres – que a acumulação capitalista continua devastando a vida em todos os cantos do planeta.

A acumulação capitalista e a acumulação de trabalho na Europa

Marx escreveu que o capital emerge sobre a face da terra “escorrendo sangue e sujeira dos pés à cabeça”10 e, com efeito, quando olhamos para o começo do desenvolvimento capitalista temos a impressão de estar num imenso campo de concentração. No “Novo Mundo”, encontramos a submissão das populações nativas, por meio dos regimes de mita e do cuatequil11, sob os quais uma multidão de pessoas deram suas vidas para extrair prata e mercúrio das minas de Huancavelica e Potosí. Na Europa do leste, desenvolveu-se uma “segunda servidão”, que prendeu à terra uma população de produtores agrícolas que nunca antes havia sido serva.12 Na Europa Ocidental, ocorreram os cercamentos, a caça às bruxas, as marcações a fogo, os açoites e o encarceramento de vagabundos e mendigos em workhouses13 e em casas correcionais recém-construídas, modelos para o futuro sistema carcerário. No horizonte, temos o surgimento do tráfico de escravos, enquanto nos mares, os barcos já transportavam “servos contratados”14 e criminosos condenados da Europa para a América.

O que se deduz desse panorama é que a violência foi a principal alavanca, o principal poder econômico no processo de acumulação primitiva,15 porque o desenvolvimento capitalista exigiu um imenso salto na riqueza apropriada pela classe dominante europeia e no número de trabalhadores colocados sob o seu comando. Em outras palavras, a acumulação primitiva consistiu numa imensa acumulação de força de trabalho – “trabalho morto”, na forma de bens roubados, e “trabalho vivo”, na forma de seres humanos postos à disposição para sua exploração – colocada em prática numa escala nunca antes igualada na história.

De forma significativa, a tendência da classe capitalista durante os primeiros três séculos de sua existência era impor a escravidão e outras formas de trabalho forçado como relação de trabalho dominante, uma tendência que só foi limitada por conta da resistência dos trabalhadores e pelo perigo de esgotamento da força de trabalho.

Era assim que ocorria não só nas colônias americanas, onde, no século XVI, se formavam as economias baseadas no trabalho forçado, mas também na Europa. Mais adiante, examinarei a importância do trabalho escravo e do sistema de plantation na acumulação capitalista. Aqui, quero destacar que, também na Europa do século XV, a escravidão, nunca completamente abolida, se viu revitalizada.16

Como relata o historiador italiano Salvatore Bono, a quem devemos o mais extenso estudo sobre a escravidão na Itália, havia muitos escravos nas regiões do Mediterrâneo durante os séculos XVI e XVII, e sua quantidade aumentou depois da Batalha de Lepanto (1571), que intensificou as hostilidades contra o mundo muçulmano. Bono calcula que, em Nápoles, viviam mais de 10 mil escravos e em todo o reino napolitano, 25 mil (1% da população); em outras cidades da Itália e do sul da França registram-se números similares. Na Itália, desenvolveu-se também um sistema de escravidão pública, na qual milhares de estrangeiros sequestrados – os antepassados dos atuais imigrantes sem documentos – eram empregados pelos governos municipais para obras públicas ou então eram entregues a particulares para trabalhar na agricultura. Muitos eram destinados a galeras de embarcações, uma fonte de trabalho na qual se destacava a frota do Vaticano (Bono, 1999, p.6-8).

A escravidão é “aquela forma de exploração a que o senhor sempre se esforça para alcançar” (Dockes, 1982, p.2). A Europa não era uma exceção, e é importante que isso seja enfatizado para dissipar a suposição de que existe um conexão especial entre a escravidão e a África.17 No entanto, a escravidão na Europa continuou sendo um fenômeno limitado, já que as condições materiais para sua existência não estavam dadas, embora o desejo dos empregadores em implementá-la deva ter sido muito intenso, se levarmos em conta que, na Inglaterra, não foi abolida até o século XVIII. A tentativa de instituir novamente a servidão também falhou – exceto no Leste Europeu, onde a escassez de população conferiu aos proprietários de terra um novo poder de decisão.18 Na Europa ocidental, sua restauração foi evitada por causa da resistência campesina, que culminou na “Guerra dos Camponeses” na Alemanha. A “revolução do homem comum”, um amplo esforço organizacional que se espalhou por três países (Alemanha, Áustria e Suíça), unindo trabalhadores de todos os setores (agricultores, mineiros, artesãos, inclusive os melhores artistas alemães e austríacos),19 foi um marco na história europeia. Assim como a Revolução Bolchevique de 1917 na Rússia, a revolução atacou diretamente o centro de poder e, ao recordar a tomada de Münster pelo anabatistas, os poderosos confirmaram seus temores de que estava em marcha uma conspiração internacional para destituí-los.20 Depois da derrota, ocorrida no mesmo ano da conquista colonial do Peru, e comemorada por Albrecht Dürer em seu “Monumento aos Camponeses Vencidos” (Thea, 1998, p.65, 134-35), a vingança foi impiedosa. “Milhares de cadáveres jaziam no chão, da Turíngia até a Alsácia, nos campos, nos bosques, em fossos de milhares de castelos desmantelados e incendiados”, “assassinados, torturados, empalados, martirizados” (ibidem, p. 153, 146). Mas o relógio não podia andar para trás. Em várias regiões da Alemanha e outros territórios que haviam estado no centro da “guerra”, mantiveram-se direitos consuetudinários e até mesmo formas de governo territorial.21

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Camponês desfraldando a bandeira da “Liberdade”, c. 1525.

No entanto, essa era uma exceção. Nos lugares em que não foi possível vencer a resistência dos trabalhadores a se tornarem novamente servos, a resposta foi a expropriação da terra dos camponeses e a introdução do trabalho assalariado forçado. Os trabalhadores que tentavam oferecer seu trabalho de forma independente ou deixar seus empregadores eram castigados com o encarceramento e até mesmo com a morte, em caso de reincidência. Na Europa, não se desenvolveu um mercado de trabalho “livre” até o século XVIII e, mesmo depois disso, o trabalho assalariado contratado só foi obtido depois de uma intensa luta e para um grupo limitado de trabalhadores, na maioria homens adultos. No entanto, o fato de que a escravidão e a servidão não puderam ser restabelecidas significou que a crise do trabalho que caracterizou a Idade Média continuou na Europa até a entrada do século XVII, agravada pelo fato de que a campanha para maximizar a exploração do trabalho colocou em risco a reprodução da força de trabalho. Essa contradição – que ainda caracteriza o desenvolvimento capitalista22 – explodiu de modo ainda mais dramático na colônias americanas, onde o trabalho, as doenças e os castigos disciplinares destruíram dois terços da população original nas décadas imediatamente após a conquista colonial.23 A contradição também estava no cerne do tráfico e da exploração do trabalho escravo. Milhões de africanos morreram devido às terríveis condições de vida a que estavam sujeitos durante a travessia24 e nas plantations. Nunca, na Europa, a exploração da força de trabalho atingiu proporções tão genocidas, exceto sob o regime nazista. Ainda assim, nos séculos XVI e XVII, a privatização da terra e a mercantilização das relações sociais (a resposta dos senhores e comerciantes à sua crise econômica) também causaram ali uma pobreza e uma mortalidade generalizadas, além de uma intensa resistência que ameaçou afundar a nascente economia capitalista. Sustento que esse é o contexto histórico em que se deve situar a história das mulheres e da reprodução na transição do feudalismo para o capitalismo, porque as mudanças que a chegada do capitalismo introduziu na posição social das mulheres – especialmente entre as proletárias, seja na Europa, seja na América – foram impostas basicamente com a finalidade de buscar novas formas de arregimentar e dividir a força de trabalho.

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Albrecht Dürer, Monumento aos camponeses vencidos (1526). Esta imagem, que representa um camponês entronizado sobre uma coleção de objetos de sua vida cotidiana, é altamente ambígua. Pode sugerir que os camponeses foram traídos ou que eram eles mesmos que deveriam ser tratados como traidores. Portanto, a imagem foi interpretada tanto como uma sátira dos camponeses rebeldes quanto como uma homenagem a sua força moral. O que sabemos com certeza é que Dürer ficou profundamente perturbado pelos eventos de 1525 e, como luterano convicto, deve ter seguido Lutero em sua condenação da revolta.

Para apoiar essa argumentação, neste texto serão traçados os principais desenvolvimentos que deram forma ao advento do capitalismo na Europa – a privatização da terra e a Revolução dos Preços. Defendo que nenhuma das duas foi suficiente para produzir um processo de proletarização autossustentável. Depois, examinarei, em linhas gerais, as políticas que a classe capitalista introduziu com o fim de disciplinar, reproduzir e expandir o proletariado, iniciando com o ataque lançado contra as mulheres, resultando na construção de uma nova ordem patriarcal, que defino como o “patriarcado do salário”. Finalmente, indagarei até que ponto a produção de hierarquias raciais e sexuais nas colônias foi capaz de formar um campo de confrontação ou de solidariedade entre mulheres indígenas, africanas e europeias e entre mulheres e homens.

A privatização da terra na Europa, a produção de escassez e a separação entre produção e reprodução

Desde o começo do capitalismo, a guerra e a privatização da terra empobreceram a classe trabalhadora. Este fenômeno foi internacional. Em meados do século XVI, os comerciantes europeus haviam expropriado boa parte da terra das Ilhas Canárias para transformá-la em plantations de cana-de-açúcar. O maior processo de privatização e cercamento de terras teve lugar no continente americano, onde, no início do século XVII, os espanhóis tinham se apropriado de um terço das terras comunais indígenas sob o sistema da encomienda. A caça de escravos na África trouxe como consequência a perda de terras, porque privou muitas comunidades de seus melhores jovens.

Na Europa, a privatização da terra começou no final do século XV, coincidindo com a expansão colonial. Ela assumiu formas diferentes: despejo de inquilinos, aumento de aluguel e impostos elevados por parte do Estado, o que levou ao endividamento e venda de terras. Defino todos esses processos como expropriação de terra, porque, mesmo quando a força não era usada, a perda da terra se dava contra a vontade do indivíduo ou da comunidade, solapando sua capacidade de subsistência. Duas formas de expropriação de terra devem ser mencionadas: a guerra – cujo caráter mudou nesse período, sendo usada como meio para transformar arranjos territoriais e econômicos – e a reforma religiosa.

“Antes de 1494, o conflito bélico na Europa havia consistido principalmente em guerras menores, caracterizadas por campanhas breves e irregulares” (Cunningham e Grell, 2000, p. 95). Elas frequentemente ocorriam no verão para dar tempo aos camponeses, que formavam a maior parte dos exércitos, de semear seus cultivos; os exércitos se enfrentavam durante longos períodos, sem que houvesse muita ação.

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Jacques Callot, Os horrores da guerra (1633). Gravura em metal. Os homens enforcados pelas autoridades militares eram soldados que viraram ladrões. Ex-soldados eram uma parte importante do contingente de vagabundos e mendigos que lotavam as estradas da Europa do século XVII.

No entanto, no século XVI, as guerras tornaram-se mais frequentes e apareceu um novo tipo de conflito, em parte devido à inovação tecnológica, mas principalmente porque os Estados europeus começaram a recorrer à conquista territorial para resolver suas crises econômicas, financiados por ricos investidores. As campanhas militares tornaram-se muito mais longas. Os exércitos cresceram dez vezes em tamanho, tornando-se permanentes e profissionais.25 Foram contratados mercenários que não tinham nenhum laço com a população. O objetivo da guerra começou a ser a eliminação do inimigo, de tal maneira que a guerra deixava em sua esteira vilarejos abandonados, campos cobertos de cadáveres, fome e epidemias, como em Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse (1498) de Albrecht Dürer.26 Esse fenômeno, cujo impacto traumático sobre a população foi refletido em numerosas representações artísticas, mudou a paisagem agrária da Europa.

Muitos contratos de arrendamento também foram anulados quando terras da Igreja foram confiscadas durante a Reforma, que começou com uma apropriação de terras massiva por parte da classe alta. Na França, um apetite comum pelas terras da Igreja inicialmente uniu as classes baixas e altas no movimento protestante, mas quando a terra foi leiloada, a partir de 1563, os artesãos e trabalhadores diaristas, que haviam exigido a expropriação da Igreja “com uma paixão nascida da amargura e da esperança” e que haviam se mobilizado sob a promessa de que eles também receberiam a sua parte, foram traídos em suas expectativas (Le Roy Ladurie, 1974, p. 173-76). Os camponeses, que haviam se tornado protestantes para se livrar dos dízimos, também foram enganados. Quando defenderam seus direitos, declarando que “o Evangelho promete terra, liberdade e emancipação”, foram selvagemente atacados como fomentadores da sedição (ibidem, p. 192).27 Na Inglaterra, grande parte da terra também mudou de mãos em nome da reforma religiosa. W. G. Hoskin descreveu essa mudança como “a maior transferência de terras na história inglesa desde a conquista normanda” ou, mais sucintamente, como “O Grande Saque”.28 Na Inglaterra, todavia, a privatização da terra foi realizada basicamente por meio de “cercamentos”, um fenômeno que foi associado de tal modo com a expropriação dos trabalhadores da sua “riqueza coletiva” que, em nosso tempo, é usado por militantes anticapitalistas como um significante para cada ataque sobre os direitos sociais.29

No século XVI, “cercamento” era um termo técnico que indicava o conjunto de estratégias usadas pelos lordes ingleses e fazendeiros ricos para eliminar a propriedade comum da terra e expandir suas propriedades.30 Referia-se, sobretudo, à abolição do sistema de campos abertos open-field system, um acordo pelo qual os aldeões possuíam faixas de terra não-contíguas num campo sem cercas. Cercar incluía também o fechamento das terras comunais e a demolição dos barracos dos camponeses que não tinham terra, mas podiam sobreviver graças a seus direitos consuetudinários.31 Grandes extensões de terra também foram cercadas para criar reservas de veados, ao passo que vilarejos inteiros foram derrubados para serem transformados em pasto.

Embora os cercamentos tenham continuado até o século XVIII (Neeson, 1993), antes mesmo da Reforma mais de duas mil comunidades rurais foram destruídas dessa maneira (Fryde, 1996, p. 185). A extinção dos vilarejos rurais foi tão severa que a Coroa ordenou uma investigação em 1518 e outra em 1548. Porém, apesar da nomeação de várias comissões reais, pouco se fez para deter essa tendência. Começou, então, uma luta intensa, culminando nos numerosos levantes, acompanhados por um extenso debate sobre os méritos e deméritos da privatização da terra, que continua até os dias atuais, revitalizado pela investida do Banco Mundial nos últimos bens comuns do planeta.

Resumidamente, o argumento oferecido pelos “modernizadores” de todas as posições políticas é que os cercamentos estimularam a eficiência agrícola e que os deslocamentos provocados foram compensados com um crescimento significativo da produtividade agrícola. Afirma-se que a terra estava esgotada e que, se tivesse permanecido nas mãos dos pobres, teria deixado de produzir (antecipando a “tragédia dos comuns” de Garrett Hardin),32 enquanto que sua aquisição por parte dos ricos permitiu que a terra descansasse. Junto com a inovação agrícola, continua o argument, os cercamentos tornaram a terra mais produtiva, o que levou à expansão do abastecimento de alimentos. Desse ponto de vista, qualquer exaltação dos méritos da posse coletiva da terra é descartada como uma “nostalgia pelo passado”, presumindo que as formas comunais agrárias são retrógradas e ineficientes e que quem as defende é culpado de um apego desmedido à tradição.33

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Festa Rural. Todos os festivais, jogos e encontros da comunidade camponesa tinham lugar nas terras comunais. Gravura de Daniel Hopfer, século XVI.

Entretanto, esses argumentos não se sustentam. A privatização da terra e a comercialização da agricultura não aumentaram a quantidade de alimentos disponíveis para as pessoas comuns, embora tenha aumentado a disponibilidade de comida para o mercado e para a exportação. Para os trabalhadores, isso representou a instauração de dois séculos de fome, da mesma forma que, atualmente, mesmo nas áreas mais férteis da África, Ásia e América Latina, a desnutrição é endêmica, devido à destruição da posse comum da terra e da política de “exportação ou morte” imposta pelos programas de ajuste do Banco Mundial. Tampouco a introdução de novas técnicas agrícolas na Inglaterra compensou essa perda. Pelo contrário, o desenvolvimento do capitalismo “operou em perfeita harmonia” com o empobrecimento da população rural (Lis e Soly, 1979, p. 102). Um testemunho da miséria produzida pela privatização da terra é o fato de que, apenas um século depois do surgimento do capitalismo agrário, sessenta cidades europeias instituíram alguma forma de assistência social ou estavam se movendo nesse sentido, ao mesmo tempo em que a indigência se tornava um problema internacional (ibidem, p. 87). O crescimento populacional pode ter contribuído, mas sua importância foi vista de modo exagerado e deve ser circunscrita no tempo. Nos últimos anos do século XVI, em quase toda a Europa a população estava se estagnando ou diminuindo, mas naquela época os trabalhadores não extraíam nenhum benefício dessa mudança.

Há também erros em relação à efetividade do sistema de agricultura de campos abertos. Historiadores neoliberais descreveram-no como um desperdício, mas até mesmo um partidário da privatização da terra como Jean De Vries reconhece que o uso comum dos campos agrícolas tinha muitas vantagens. Ele protegia os camponeses do fracasso de uma colheita, devido à variedade de faixas de terra a que uma família tinha acesso; também permitia um planejamento manejável do trabalho (dado que cada faixa requeria atenção em diferentes momentos); e promovia uma forma de vida democrática, construída sobre a base do autogoverno e da autossuficiência, já que todas as decisões – quando plantar ou fazer a colheita, quando drenar os pântanos, quantos animais seriam permitidos nos campos comuns – eram tomadas pelos camponeses em assembleia.34

As mesmas considerações são aplicáveis às “terra comunais”. Menosprezados na literatura do século XVI como uma fonte de preguiça e desordem, as terras comunais eram fundamentais para a reprodução de muitos pequenos fazendeiros ou lavradores que sobreviviam apenas porque tinham acesso a pradarias, nas quais podiam manter vacas, ou bosques dos quais extraíam madeira, frutos silvestres e ervas, ou pedreiras, lagoas onde podiam pescar e espaços abertos para reunir-se. Além de incentivar tomadas de decisão coletivas e a cooperação no trabalho, as terras comunais eram a base material sobre a qual podia crescer a solidariedade e a sociabilidade campesina. Todos os festivais, jogos e reuniões da comunidade camponesa eram realizados nas terras comunais.35 A função social das terras comunais era especialmente importante para as mulheres, que, tendo menos direitos sobre a terra e menos poder social, eram mais dependentes delas para a subsistência, autonomia e sociabilidade. Parafraseando a afirmação de Alice Clark sobre a importância dos mercados para as mulheres na Europa pré-capitalista, é possível dizer que as terras comunais também foram o centro da vida social para as mulheres, o lugar onde se reuniam, trocavam notícias, recebiam conselhos e onde podiam formar um ponto de vista próprio sobre os acontecimentos da comunidade, autônomo da perspectiva masculina (Clark, 1968, p.51).

Essa rede de relações de cooperação, a que R. D. Tawney se referiu como o “comunismo primitivo” do vilarejo feudal, desmoronou quando o sistema de campos abertos foi abolido e as terras comunais foram cercadas (Tawney, 1967). Não só a cooperação no trabalho agrícola desapareceu quando a terra foi privatizada e os contratos individuais de trabalho substituíram os coletivos, mas também as diferenças econômicas entre a população rural se aprofundaram, à medida que aumentou o número de ocupantes ilegais que não tinham nada além de uma cama e uma vaca e a quem não restava outra opção a não ser “ajoelhar e baixar a cabeça” para implorar por um emprego (Seccombe, 1992). A coesão social começou a se decompor,36 as famílias se desintegraram, os jovens deixaram os vilarejos para se unir à crescente quantidade de vagabundos ou trabalhadores itinerantes – que logo se tornaram o principal problema social da época – enquanto que os idosos eram abandonados à sua própria sorte. Isso prejudicou principalmente às mulheres mais velhas, que, não contando mais com o apoio de seus filhos, caíam nas fileiras dos pobres ou sobreviviam à base de empréstimos ou pequenos furtos e atrasando o pagamento de suas dívidas. O resultado foi um campesinato polarizado não apenas por desigualdades econômicas cada vez mais profundas, mas também por um emaranhado de ódios e ressentimentos que está bem documentado nos escritos sobre a caça às bruxas. Eles mostram que as discussões relacionadas aos pedidos de ajuda, à entrada de animais sem autorização em propriedades alheias e à inadimplência de aluguéis estavam por trás de muitas acusações.37

Os cercamentos também debilitaram a situação econômica dos artesãos. Da mesma forma que as corporações multinacionais se aproveitam dos camponeses cujas terras o Banco Mundial expropriou para construir “zonas de livre exportação”, onde as mercadorias são produzidas por menor custo, nos séculos XVI e XVII os negociantes capitalistas se aproveitaram da mão-de-obra barata que se encontrava disponível nas áreas rurais para quebrar o poder das guildas urbanas e destruir a independência dos artesãos. Isso aconteceu principalmente com a indústria têxtil, reorganizada como indústria artesanal rural, na base do “sistema doméstico”, antecedente da atual “economia informal” também construída sobre o trabalho das mulheres e das crianças.38 Porém, os trabalhadores têxteis não eram os únicos que viam seu trabalho sendo barateado. Logo que perderam o acesso à terra, todos os trabalhadores lançaram-se numa dependência econômica que não existia na época medieval, considerando-se que sua condição de sem-terra deu aos empregadores o poder para reduzir seu pagamento e ampliar o dia de trabalho. Em regiões protestantes, isso ocorreu sob o disfarce de reforma religiosa, que duplicou o ano de trabalho, por meio da eliminação dos feriados religiosos.

Não é surpreendente que, com a expropriação da terra, viesse uma mudança de atitude dos trabalhadores com relação ao salário. Enquanto na Idade Média os salários podiam ser vistos como um instrumento de liberdade (em contraste com a obrigatoriedade dos serviços laborais), logo que o acesso à terra chegou ao seu fim, começaram a ser vistos como instrumentos de escravidão (Hill, 1975, p. 181 e ss.).39

Tamanho era o ódio que os trabalhadores sentiam pelo trabalho assalariado que Gerrard Winstanley, o líder dos diggers, declarou que, se alguém trabalhava por um salário, não faria diferença viver com o inimigo ou com seu próprio irmão. Isso explica o crescimento, na aurora do processo de cercamento (usando o termo num sentido amplo para incluir todas as formas de privatização da terra), da quantidade de “vagabundos” e homens “sem senhor”, que preferiam sair vagando pelos caminhos, arriscando-se à escravidão ou à morte – como prescrevia a legislação “sangrenta” aprovada contra eles – a trabalhar por um salário.40 Também explica a extenuante luta que os camponeses realizaram para defender suas terras da expropriação, não importa o quão escassas fossem.

Na Inglaterra, as lutas contra o cercamento dos campos começaram no final do século XV e continuaram durante os séculos XVI e XVII, quando a derrubada de cercas se tornou a “forma mais importante de protesto social” e o símbolo do conflito de classes (Manning, 1988, p.311). Os motins contra os cercamentos se transformavam frequentemente em levantes de massa. O mais notório foi a Rebelião de Kett, assim chamada por causa de seu líder, Robert Kett, que se deu em Norfolk, no ano de 1549. Não se tratou de uma rusga menor. Em seu auge, os rebeldes somavam 16 mil, contavam com uma artilharia, derrotaram um exército do governo de 12 mil homens e, inclusive, tomaram Norwich, que era então a segunda maior cidade da Inglaterra.41 Além disso, os rebeldes também haviam escrito um programa que, se tivesse sido colocado em prática, teria controlado o avanço do capitalismo agrário e eliminado todos os vestígios do poder feudal no país. Consistia em 29 demandas que Kett, um fazendeiro e curtidor, apresentou ao Lorde Protetor. A primeira era que “a partir de agora, nenhum homem voltará a promover cercamentos”. Outros artigos exigiam que os aluguéis fossem reduzidos a valores que prevaleceram 65 anos antes, que “todos os possuidores de títulos pudessem desfrutar dos benefícios de todos os campos comuns” e que “todos os servos fossem libertados, pois Deus fez a todos livres com seu precioso derramamento de sangue” (Fletcher, 1973, p. 142-4). Essas demandas foram colocadas em prática. Em todo Norfolk, cercas foram arrancadas e somente quando outro exército do governo atacou os rebeldes se detiveram. Três mil e quinhentos foram assassinados no massacre que se seguiu. Outras centenas de rebeldes foram feridos. Kett e seu irmão William foram enforcados do lado de fora das muralhas de Norwich.

No entanto, as lutas contra os cercos continuaram na época de James I, com um evidente aumento da presença das mulheres.42 Durante seu reinado, em torno de 10% dos motins contra os cercos incluíram mulheres entre os rebeldes. Alguns protestos eram inteiramente femininos. Em 1607, por exemplo, 37 mulheres, lideradas por uma tal “Capitã Dorothy”, atacaram mineiros de carvão que trabalhavam naquilo que as mulheres reivindicavam como sendo os campos comuns do vilarejo de Thorpe Moor (Yorkshire). Quarenta mulheres foram “derrubar as cercas e barreiras” de um cercamento em Waddingham (Lincolnshire) em 1608; e, em 1609, num feudo de Dunchurch (Warwickshire), “quinze mulheres, incluindo esposas, viúvas, solteironas, filhas solteiras e criadas se reuniram por sua conta para desenterrar as cercas e tapar os canais” (ibidem, p. 97). Novamente, em York, em maio de 1624, as mulheres destruíram um cerco e, por isso, foram para a prisão – dizia-se que “haviam desfrutado do tabaco e da cerveja depois de sua façanha” (Fraser, 1984, p. 225-6). Mais tarde, em 1641, a multidão que irrompeu num pântano cercado em Buckden era formada fundamentalmente por mulheres auxiliadas por meninos (ibidem). Esses são apenas alguns exemplos de um tipo de confronto em que mulheres portando forcados e foices resistiram ao cercamento de terra ou à drenagem de pântanos quando seu modo de vida estava ameaçado.

Essa forte presença feminina foi atribuída à crença de que as mulheres estavam acima da lei, sendo “protegidas” legalmente por seus maridos. Até mesmo os homens, diz-se, se vestiam como mulheres para arrancar as cercas. Porém, essa explicação não pode ser levada muito longe, pois o governo não tardou em eliminar esse privilégio e começou a prender e encarcerar as mulheres que participavam nos motins contra os cercos.43 Além disso, não devemos pressupor que as mulheres não tinham seus próprios interesses na resistência à expropriação da terra. Pelo contrário.

Assim como ocorreu com a comutação, as mulheres foram as que mais sofreram quando a terra foi perdida e o vilarejo comunitário se desintegrou. Isso se deve, em parte, ao fato de que para elas era muito mais difícil tornarem-se “vagabundas” ou trabalhadoras migrantes, pois uma vida nômade as expunha à violência masculina, especialmente num momento em que a misoginia estava crescendo. As mulheres também tinham mobilidade reduzida, devido à gravidez e ao cuidado dos filhos, um fato ignorado pelos pesquisadores que consideram que a fuga da servidão (por meio da migração e outras formas de nomadismo) seja a forma paradigmática de luta. As mulheres tampouco podiam se tornar soldados pagos, apesar de algumas terem se unido aos exércitos como cozinheiras, lavadeiras, prostitutas e esposas;44 porém, essa opção também desapareceu no século XVII, à medida que, progressivamente, os exércitos foram sendo regulamentados e as multidões de mulheres que costumavam segui-los foram expulsas dos campos de batalha (Kriedte, 1983, p.55).

As mulheres também se viram prejudicadas pelos cercamentos, porque assim que a terra foi privatizada e as relações monetárias começaram a dominar a vida econômica, elas passaram a encontrar dificuldades maiores do que as dos homens para se sustentar, tendo sido confinadas ao trabalho reprodutivo no exato momento em que este trabalho estava sendo absolutamente desvalorizado. Conforme veremos, esse fenômeno, que acompanhou a mudança de uma economia de subsistência para uma monetária, pode ser atribuído a diferentes fatores em cada fase do desenvolvimento capitalista. Fica claro, todavia, que a mercantilização da vida econômica forneceu as condições materiais para que isso ocorresse.

Com o desaparecimento da economia de subsistência que havia predominado na Europa pré-capitalista, a unidade entre produção e reprodução, típica de todas as sociedades baseadas na produção-para-o-uso, chegou ao fim conforme essas atividades foram se tornando portadoras de outras relações sociais e eram sexualmente diferenciadas. No novo regime monetário, somente a produção-para-o-mercado estava definida como atividade criadora de valor, enquanto a reprodução do trabalhador começou a ser considerada como algo sem valor do ponto de vista econômico e, inclusive, deixou de ser considerada um trabalho. O trabalho reprodutivo continuou sendo pago – embora em valores inferiores – quando era realizado para os senhores ou fora do lar. No entanto, a importância econômica da reprodução da força de trabalho realizada no âmbito doméstico e sua função na acumulação do capital se tornaram invisíveis, sendo mistificada como uma vocação natural e sendo designada como “trabalho de mulheres”. Além disso, as mulheres foram excluídas de muitas ocupações assalariadas, e, quando trabalhavam em troca de pagamento, ganhavam uma miséria em comparação com o salário masculino médio.

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Intitulada “Mulheres e valetes”, esta imagem de Hans Sebald Beham (c. 1530) mostra o séquito de mulheres que costumava seguir os exércitos, inclusive nos campos de batalha. As mulheres, incluindo esposas e prostitutas, cuidavam da reprodução dos soldados. Note-se a mulher usando uma mordaça.

Essas mudanças históricas – que chegaram ao auge no século XIX, com a criação da figura da dona de casa em tempo integral – redefiniram a posição das mulheres na sociedade e com relação aos homens. A divisão sexual do trabalho que emergiu daí não apenas sujeitou as mulheres ao trabalho reprodutivo, mas também aumentou sua dependência em relação aos homens, permitindo que o Estado e os empregadores usassem o salário masculino como instrumento para comandar o trabalho das mulheres. Dessa forma, a separação efetuada entre produção de mercadorias e reprodução da força de trabalho também tornou possível o desenvolvimento de um uso especificamente capitalista do salário e dos mercados como meios para a acumulação de trabalho não-remunerado.

O que é mais importante, a separação entre produção e reprodução criou uma classe de mulheres proletárias que estavam despossuídas como os homens, mas, diferentemente de seus análogos masculinos, quase não tinham acesso aos salários, numa sociedade que estava cada vez mais monetizada, sendo forçadas à condição de pobreza crônica, à dependência econômica e à invisibilidade como trabalhadoras.

Como veremos, a desvalorização e feminização do trabalho reprodutivo foi um desastre também para os homens trabalhadores, pois a desvalorização do trabalho reprodutivo inevitavelmente desvalorizou o seu produto, a força de trabalho. Entretanto, não há dúvida de que, na “transição do feudalismo para o capitalismo”, as mulheres sofreram um processo excepcional de degradação social que foi fundamental para a acumulação de capital e que permaneceu assim desde então.

Diante desses fatos, é impossível dizer que a separação entre o trabalhador e a terra e o advento da economia monetária formaram o ponto culminante da luta travada pelos trabalhadores medievais para se libertarem da servidão. Não foram os trabalhadores – mulheres ou homens – que foram libertados pela privatização da terra. O que se “libertou” foi o capital, na mesma medida em que a terra estava agora “livre” para funcionar como meio de acumulação e exploração e não mais como meio de subsistência. Libertados foram os proprietários de terra, que agora podiam despejar sobre os trabalhadores a maior parte do custo de sua reprodução, dando-lhes acesso a alguns meios de subsistência apenas quando estavam diretamente empregados. Quando não havia trabalho disponível ou não era lucrativo o bastante, como, por exemplo, em épocas de crises comerciais ou agrárias, os trabalhadores podiam, ao contrário, ser despedidos e abandonados à própria sorte, para morrer de fome.

A separação entre os trabalhadores e seus meios de subsistência, bem como sua nova dependência das relações monetárias, significou também que o salário real agora podia ser reduzido, ao mesmo tempo que o trabalho feminino podia ser mais desvalorizado com relação ao masculino, por meio da manipulação monetária. Não é coincidência, então, que assim que a terra começou a ser privatizada, os preços dos alimentos, que durante dois séculos haviam permanecido estacionados, passaram a aumentar.45

A Revolução dos Preços e a pauperização da classe trabalhadora europeia

Devido às suas devastadoras consequências sociais, esse fenômeno “inflacionário” foi chamado de Revolução dos Preços (Ramsey, 1971). Ele foi atribuído, tanto pelos economistas daquele tempo quanto por posteriores (por exemplo, Adam Smith), à chegada de ouro e prata da América, “fluindo para a Europa pela da Espanha numa corrente colossal” (Hamilton, 1965, p. vii). No entanto, já foi notado que os preços haviam começado a aumentar antes de que esses metais passassem a circular nos mercados europeus.46 Além disso, o ouro e a prata, por si mesmos, não são capital e poderiam ter sido usados para outros fins, por exemplo, para produzir joias ou cúpulas douradas, ou ainda para bordar roupas. Se funcionaram como instrumento para regular os preços, capazes de transformar até mesmo o trigo numa mercadoria preciosa, foi porque se inseriram num universo capitalista em desenvolvimento, em que uma crescente porcentagem da população – um terço na Inglaterra (Laslett, 1971, p. 53) – não tinha acesso à terra e precisava comprar os alimentos que antes havia produzido, e porque a classe dominante aprendeu a usar o poder mágico do dinheiro para reduzir os custos laborais. Em outras palavras, os preços aumentaram por causa do desenvolvimento de um sistema de mercado nacional e internacional que estimulava a exportação e a importação de produtos agrícolas e porque os comerciantes acumulavam bens para depois vendê-los por um preço maior. Em setembro de 1565, na Antuérpia, “enquanto os pobres literalmente morriam de fome nas ruas”, um depósito desmoronou de tão abarrotado que estava de cereais (Hacket Fischer, 1996, p.88).

Foi nessas circunstâncias que a chegada do tesouro americano provocou uma enorme redistribuição da riqueza e um novo processo de proletarização.47 Os preços crescentes arruinaram os pequenos fazendeiros, que tiveram que renunciar às suas terras para comprar cereais ou pão quando as colheitas não eram capazes alimentar suas famílias e criaram uma classe de empresários capitalistas que acumularam fortunas pelo investimento na agricultura e no empréstimo de dinheiro, numa época em que possuir dinheiro era, para muita gente, uma questão de vida ou morte.48

A Revolução dos Preços disparou também um colapso histórico nos salários reais, comparável ao que vem ocorrendo, em nossa época, na África, Ásia e América Latina, precisamente nos países que sofreram “o ajuste estrutural” do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Em 1600, o salário real na Espanha havia perdido 30% de seu poder de compra, com relação a 1511 (Hamilton, 1965, p. 280), e seu colapso foi igualmente severo em outros países. Enquanto o preço dos alimentos ficou oito vezes maior, os salários apenas triplicaram (Hackett Fischer, 1996, p.74). Isso não foi obra da mão invisível do mercado, mas produto de uma política estatal que impedia que os trabalhadores se organizassem, enquanto dava aos comerciantes a máxima liberdade com relação ao estabelecimento de preços e ao movimento de mercadorias. Como era de se esperar, algumas décadas mais tarde, o salário real havia perdido dois terços de seu poder de compra, tal como mostram as mudanças que repercutiram nas remunerações diárias de um carpinteiro inglês, expressas em quilos de cereais, entre os séculos XIV e XVIII (Slicher Van Bath, 1963, p.327):
Anos Quilos de cereais
1351-1400 121,8
1401-1450 155,1
1451-1500 143,5
1500-1550 122,4
1551-1600 83,0
1601-1650 48,3
1651-1700 74,1
1701-1750 94,6
1751-1800 79,6

Levou séculos para que os salários na Europa voltassem ao nível a que haviam chegado no final da Idade Média. A situação piorou até o ponto em que, na Inglaterra, em 1550, os artesãos homens tinham que trabalhar quarenta semanas para ganhar o mesmo que ganhavam em quinze, no começo do século. Na França, ver o gráfico a seguir os salários caíram em 60% entre 1470 e 1570 (Hackett Fischer, 1996, p.78).49 O colapso do salário foi especialmente desastroso para as mulheres. No século, XIV, as mulheres recebiam metade da remuneração de um homem para realizar a mesma tarefa; mas, em meados do século XVI, estavam recebendo apenas um terço do salário masculino (que já se encontrava reduzido) e não podiam mais se manter com o trabalho assalariado, nem na agricultura, nem no setor manufatureiro, um fato que, sem dúvida, é responsável pela gigantesca expansão da prostituição nesse período.50 O que se seguiu foi o empobrecimento absoluto da classe trabalhadora, um fenômeno tão difundido e generalizado que, em 1550 e muito tempo depois, os trabalhadores na Europa eram chamados simplesmente de “pobres”.

Provas dessa dramática pauperização são as mudanças ocorridas na dieta dos trabalhadores. A carne desapareceu de suas mesas, com exceção de uns poucos restos de toucinho, assim como a cerveja e o vinho, o sal e o azeite de oliva (Braudel, 1973, p. 127 e seg; Le Roy Ladurie, 1974). Do século XVI ao XVIII, a dieta dos trabalhadores consistiu basicamente em pão, a principal despesa de seu orçamento. Isso representou um retrocesso histórico (não importa o que pensemos sobre as normas alimentares) comparado com a abundância de carne que caracterizou a Baixa Idade Média. Peter Kriedte escreve que, naquela época, o “consumo anual de carne havia atingido a cifra de cem quilos por pessoa, uma quantidade incrível até mesmo para os padrões atuais. Até o século XIX, esta cifra caiu para menos de vinte quilos” (Kriedte, 1983, p.52). Braudel também fala do fim da “Europa carnívora”, citando como testemunha o suábio Heinrich Müller, que, em 1550, comentou:

[…] no passado, comia-se de uma forma diferente na casa de um camponês. Naquela época, havia abundância de carne e alimentos todos os dias; as mesas das feiras e festas dos vilarejos afundavam de tanto peso. Hoje, tudo realmente mudou. Por alguns anos, de fato, que época de calamidade, que preços altos! E a comida dos camponeses que estão em melhor situação é quase pior que a comida dos trabalhadores e ajudantes. (Braudel, 1973, 130)

Não somente a carne desapareceu, mas também tornaram-se recorrentes os períodos de escassez, ainda mais agravados nos tempos de colheitas ruins, quando a falta de reservas de cereais faziam com que seu preço subisse às nuvens, condenando à fome os habitantes das cidades (Braudel, 1966, Vol. I, p.328). Foi isso que ocorreu nas décadas de penúria de 1540 e 1550 e, novamente, nas de 1580 e 1590, que foram umas das piores na história do proletariado europeu, coincidindo com distúrbios generalizados e uma quantidade recorde de julgamentos de bruxas. Porém, a desnutrição também era desenfreada em tempos normais, tanto que os alimentos adquiriram um alto valor simbólico como indicador de privilégio. O desejo por comida entre os pobres alcançou proporções épicas, inspirando sonhos de orgias pantagruélicas, como aquelas descritas por Rabelais em Gargântua e Pantagruel (1522), e causando obsessões apavorantes, como a convicção (difundida entre os agricultores do nordeste italiano) de que as bruxas vagavam pelo campo à noite para se alimentar do gado (Mazzali, 1988).

De fato, a Europa que se preparava para tornar-se o prometeico motor do mundo, provavelmente levando a humanidade a novos patamares tecnológicos e culturais, era um lugar onde as pessoas nunca tinham o suficiente para comer. A comida passou a ser um objeto de desejo tão intenso que se acreditava que os pobres vendiam sua alma para o diabo para que ele lhes ajudasse a conseguir alimentos. A Europa também era um lugar onde, em tempos de más colheitas, as pessoas do campo comiam caroços, raízes selvagens e cortiça de árvores e multidões erravam pelos campos, chorando e gemendo, “era tanta fome que poderiam devorar brotos nos campos” (Le Roy Ladurie, 1974); ou invadiam as cidades para aproveitar a distribuição de cereais ou para atacar as casas e armazéns dos ricos que, por sua vez, corriam para conseguir armas e fechar as portas das cidades de modo a manter os famintos do lado de fora (Heller, 1986, p. 56-63).

Que a transição para o capitalismo inaugurou um longo período de fome para os trabalhadores na Europa – que muito possivelmente terminou devido à expansão econômica gerada pela colonização – é algo que fica também fica demonstrado pelo fato de que, enquanto nos séculos XIV e XV a luta dos trabalhadores havia se centrado em torno da demanda por mais “liberdade” e menos trabalho, nos séculos XVI e XVII, os trabalhadores foram espoliados pela fome e protagonizaram ataques a padarias, armazéns e motins contra a exportação de colheitas locais.51 As autoridades descreviam quem participava desses ataques como “inúteis”, “pobres” e “gente humilde”, mas a maioria era composta de artesãos, que viviam de forma muito precária nessa época.

Eram as mulheres que, em geral, iniciavam e lideravam as revoltas por comida. Na França do século XVII, seis dos 31 motins de subsistência estudados por Ives-Marie Bercé foram perpetrados exclusivamente por mulheres. Nos demais, a presença feminina era tão manifesta que Bercé os chama de “motins de mulheres”.52 Ao comentar sobre esse fenômeno na Inglaterra do século XVIII, Sheila Rowbotham concluiu que as mulheres se destacaram nesse tipo de protesto por seu papel de cuidadoras de suas famílias. Porém, as mulheres também foram as mais arruinadas pelos altos preços, já que, por terem menos acesso ao dinheiro e ao emprego que os homens, dependiam mais da comida barata para sobreviver. Por esta razão, apesar de sua condição subordinada, rapidamente saíam às ruas quando os preços da comida aumentavam ou quando se espalhava o rumor de que iriam levar os suprimentos de cereais da cidade. Foi o que aconteceu durante o levante de Córdoba, de 1652, que começou “cedo pela manhã […] quando uma mulher pobre foi chorando pelas ruas do bairro pobre, levando o corpo de seu filho, que havia morrido de fome” (Kamen, 1971, p.364). O mesmo ocorreu em Montpellier, no ano de 1645, quando as mulheres saíram às ruas “para proteger seus filhos da fome” (ibidem, p. 356). Na França, as mulheres cercavam as padarias se estivessem convencidas de que os cereais seriam racionados ou se descobrissem que os ricos haviam comprado o melhor pão e que o restante era mais minguado ou mais caro. Multidões de mulheres pobres se reuniam nas barracas dos padeiros exigindo pão e acusando-os de esconder suas provisões. As revoltas estouravam também nas praças, onde tinham lugar os mercados de cereais ou nas rotas em que iam as carroças com milho para exportação e “nas margens dos rios, onde […] os barqueiros eram avistados carregando sacos. Nessas ocasiões, os amotinados armavam emboscadas para as carroças […] com forcados e varas […] os homens levavam os sacos, as mulheres juntavam todo cereal que fosse possível em suas saias” (Bercé, 1990, p. 171-3).

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Família de errantes. Gravura de Lucas van Leyden, 1520.

A luta por comida se deu também por outros meios, tais como a caça ilegal, o roubo dos campos ou casas vizinhas e os ataques às casas dos ricos. Em Troyes, em 1523, se espalhou o boato de que os pobres teriam tocado fogo nas casas dos ricos, preparando-se para invadi-las (Heller, 1986, p. 55-6). Em Mechelen, nos Países Baixos, as casas dos especuladores foram marcadas com sangue por camponeses furiosos (Hackett Fischer, 1996, p.88). Não surpreende que os “delitos famélicos” tornaram-se muito preocupantes nos procedimentos disciplinares dos séculos XVI e XVII. Um exemplo é a recorrência do tema do “banquete diabólico” nos julgamentos por bruxaria, sugerindo que banquetear-se de cordeiro assado, pão branco e vinho era agora considerado um ato diabólico, se fosse feito por “gente comum”. Mas as principais armas que os pobres tinham à sua disposição na luta pela sobrevivência eram seus próprios corpos famintos, como nos tempos em que as hordas de vagabundos e mendigos cercavam os mais abastados, meio mortos de fome e doentes, empunhando suas armas, mostrando-lhes suas feridas e forçando-os a viver num constante estado de medo frente à possibilidade de contaminação e à revolta. “Não se pode caminhar pela rua ou parar numa praça”, escreveu um homem de Veneza em meados do século XVII, “sem que as multidões nos rodeiem pedindo caridade: vemos a fome estampada em seus rostos, seus olhos como anéis sem joia, o estado lamentável de seus corpos, cujas peles têm apenas a forma de seus ossos” (ibidem, p. 88). Um século mais tarde, em Florença, o cenário era o mesmo. “Era impossível ouvir a missa”, queixava-se um tal G. Balducci, em abril de 1650, “de tanto que se era importunado durante a cerimônia pelos desgraçados, desnudos e cobertos por feridas” (Braudel, 1966, Vol. II, p. 734-5).53
A intervenção estatal na reprodução do trabalho: a assistência aos pobres e a criminalização da classe trabalhadora

A luta por comida não era a única frente na batalha contra a expansão das relações capitalistas. Por toda parte, as massas resistiam à destruição de suas formas anteriores de existência, lutando contra a privatização da terra, a abolição dos direitos consuetudinários, a imposição de novos impostos, a dependência do salário e a contínua presença de exércitos em suas vizinhanças, que eram tão odiados a ponto de as pessoas correrem para trancar as portas das cidades na tentativa de evitar que os soldados se assentassem junto a elas.

Na França, ocorreram cerca de mil “emoções” (levantes) entre as décadas de 1530 e 1670, muitas delas envolvendo províncias inteiras e exigindo a intervenção de tropas (Goubert, 1986, p. 205). Inglaterra, Itália e Espanha apresentavam um cenário parecido,54 o que indica que o mundo pré-capitalista dos vilarejos, que Marx repudiou com a rubrica de “idiotia rural”, pôde produzir um nível de lutas tão elevado quanto qualquer outra que o proletariado industrial tenha travado.

Na Idade Média, a migração, a vagabundagem e o aumento dos “crimes contra a propriedade” eram parte da resistência ao empobrecimento e à despossessão; e estes fenômenos alcançaram proporções massivas. Em toda parte – se dermos crédito às queixas das autoridades daquela época – os vagabundos pululavam, mudavam de cidade, cruzavam fronteiras, dormiam nos celeiros ou se apinhavam nas portas das cidades – uma vasta humanidade envolvida em sua própria diáspora, que durante décadas escapou ao controle das autoridades. Só em Veneza, foram registrados seis mil vagabundos em 1545. “Na Espanha, os sem-teto entulhavam completamente as vias, parando em todas as cidades” (Braudel, Vol. II, p. 740).55 Começando pela Inglaterra, sempre pioneira nesses assuntos, o Estado promulgou novas leis contra a vagabundagem, muito mais severas – que prescreviam a escravidão e a pena de morte em casos de reincidência. Mas a repressão não foi efetiva e, nos séculos XVI e XVII, as estradas europeias continuaram sendo lugares de encontros e grande (co)moção. Por elas, passaram hereges fugindo da perseguição, soldados dispensados, trabalhadores e outros tipos de “gente humilde”, em busca de emprego, e, posteriormente, artesãos estrangeiros, camponeses expulsos de suas terras, prostitutas, vendedores ambulantes, “ladrões de galinha” e mendigos profissionais. Pelas rotas da Europa, passaram, sobretudo, as lendas, histórias e experiências de um proletariado em desenvolvimento. Enquanto isso, os índices de criminalidade também aumentaram, até o ponto de podermos supor que uma recuperação e reapropriação da riqueza comunal estava a caminho.56

Hoje, estes aspectos da transição para o capitalismo podem parecer (pelo menos para a Europa) coisas do passado ou – como Marx afirmou nos Grundrisse (1973, p. 459) Manuscritos econômicos de 1857-1858: Esboços da crítica da economia política – “pré-condições históricas” do desenvolvimento capitalista, que seriam superadas por formas mais maduras do capitalismo. Mas a semelhança fundamental entre esses fenômenos e as consequências sociais da nova fase de globalização que testemunhamos hoje nos dizem algo diferente. O empobrecimento, as rebeliões e a escalada do “crime” são elementos estruturais da acumulação capitalista, na mesma medida em que o capitalismo deve despojar a força de trabalho de seus meios de reprodução para impor seu domínio.

O fato de que, nas regiões europeias que durante o século XIX se industrializaram, a formas mais extremas de miséria e rebeldia tenham desaparecido não é uma prova contrária a tal afirmação. A miséria e a rebeldia proletárias não pararam ali; apenas diminuíram ao grau em que a superexploração dos trabalhadores teve que ser exportada, por meio da institucionalização da escravidão, num primeiro momento, e, posteriormente, por meio da expansão da dominação colonial.

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Vagabundo sendo açoitado pelas ruas. Gravura inglesa, século XVI.

Quanto ao período de “transição”, este continuou sendo, na Europa, um período de intenso conflito social, preparando terreno para uma série de iniciativas estatais que, a julgar por seus efeitos, tiveram três objetivos principais: a) criar uma força de trabalho mais disciplinada; b) dispersar os protestos sociais e c) fixar os trabalhadores nos trabalhos que lhes haviam sido impostos. Vamos analisar cada um deles.

Ao se buscar a disciplina social, um ataque foi lançado contra todas as formas de sociabilidade e sexualidade coletivas – incluindo esportes, jogos, danças, funerais, festivais e outros ritos grupais que haviam servido para criar laços e solidariedade entre os trabalhadores. O ataque foi sancionado por um dilúvio de leis, 25 na Inglaterra, somente para a regulação de tabernas, entre 1601 e 1606 (Underdown, 1985, p. 47-8). Peter Burke (1978), em sua obra sobre o assunto, explicou esse processo como uma campanha contra a “cultura popular”. Contudo, como podemos notar, o que estava em jogo era a dessocialização ou descoletivização da reprodução da força de trabalho, bem como a tentativa de impor um uso mais produtivo do tempo livre. Na Inglaterra, este processo alcançou seu ápice com a chegada ao poder dos puritanos, depois da Guerra Civil (1642-1649), quando o medo da indisciplina social deu lugar à proibição das reuniões e festejos proletários. Entretanto, a “reforma moral” foi igualmente intensa nas regiões não-protestantes, onde, no mesmo período, as procissões religiosas substituíram os bailes e as cantorias que vinham sendo realizados dentro e fora das igrejas. Até mesmo as relações entre os indivíduos e Deus foram privatizadas: nas regiões protestantes, por meio da instituição de uma relação direta entre o indivíduo e a divindade; nas regiões católicas, com a introdução da confissão individual. A própria Igreja, enquanto centro comunitário, deixou de ser a sede de qualquer atividade que não estivesse relacionada com o culto. Como resultado, o cercamento físico operado pela privatização da terra e o cercamento das terras comunais foram ampliados por meio de um processo de cercamento social – a reprodução dos trabalhadores passando de um campo aberto para o lar, da comunidade para a família, do espaço público (a terra comunal, a Igreja) para o privado.57

Em segundo lugar, entre 1530 e 1560 foi introduzido um sistema de assistência pública em, pelo menos, sessenta cidades europeias, tanto por iniciativa das prefeituras locais quanto por intervenção direta do Estado central.58 Seus objetivos exatos ainda são debatidos. Enquanto boa parte da literatura sobre a questão vê a introdução da assistência pública como uma resposta para a crise humanitária que colocou em perigo o controle social, em seu vasto estudo sobre o trabalho forçado, o acadêmico marxista francês Yann Moulier Boutang insiste que seu objetivo principal era a “grande fixação” dos trabalhadores, isto é, a tentativa de evitar sua fuga do trabalho.59

De qualquer modo, a introdução da assistência pública foi um momento de inflexão na mediação estatal entre os trabalhadores e o capital, assim como na definição da função do Estado. Foi o primeiro reconhecimento da insustentabilidade de um sistema capitalista regido exclusivamente por meio da fome e do terror. Também foi o primeiro passo na construção do Estado como garantidor da relação entre classes e como supervisor da reprodução e disciplina da força de trabalho.

Antecedentes desta função podem ser encontrados no século XIV, quando, frente à generalização das lutas antifeudais, o Estado surgiu como a única organização capaz de enfrentar uma classe trabalhadora regionalmente unificada, armada e que já não limitava mais suas demandas à política econômica do feudo. Em 1351, com a aprovação do Estatuto dos Trabalhadores na Inglaterra, que fixou o salário máximo, o Estado encarregou-se formalmente da regulação e repressão do trabalho, que os senhores locais já não eram capazes de garantir. No entanto, foi com a introdução da assistência pública que o Estado começou a reivindicar a “propriedade” da mão-de-obra, ao mesmo tempo em que instituía uma “divisão do trabalho” capitalista dentro da própria classe dominante. Essa divisão permitia que os empregadores renunciassem a qualquer responsabilidade na reprodução dos trabalhadores, com a segurança de que o Estado interviria, seja por meio de recompensas, seja por meio de punições, para encarar as inevitáveis crises. Com essa inovação, houve um salto também na administração da reprodução social, resultando na introdução de registros demográficos (organização de censos, registro das taxas de mortalidade, natalidade e casamentos) e à aplicação da contabilidade nas relações sociais. É exemplar o trabalho dos administradores do Bureau des Pauvres, em Lyon, França, que, no final do século XVI, aprenderam a calcular a quantidade de pobres e a quantidade de alimentos que cada criança ou adulto necessitava e a rastrear os falecimentos para assegurar que ninguém pudesse reclamar assistência em nome de uma pessoa morta (Zemon Davis, 1968, p. 244-6).

Além dessa nova “ciência social”, foi desenvolvido também um debate internacional sobre a administração da assistência pública que antecipava a atual discussão acerca do bem-estar social. Apenas os incapacitados para o trabalho, descritos como “pobres merecedores”, deviam ser assistidos, ou os trabalhadores “saudáveis” que não conseguissem arranjar um emprego também deveriam receber ajuda? E quanto, para mais ou para menos, lhes deveria ser dado, de modo que não fossem desestimulados a procurar trabalho? Essas questões foram cruciais do ponto de vista da disciplina social, na medida em que um objetivo fundamental da assistência pública era atar os trabalhadores aos seus empregos. Porém, nesses assuntos, raramente era possível atingir um consenso.

Enquanto os reformadores humanistas, como Juan Luis Vives60 e os porta-vozes dos burgueses ricos reconheciam os benefícios econômicos e disciplinares de uma distribuição da caridade mais liberal e centralizada (embora não indo além da distribuição de pão), uma parte do clero se opôs energicamente à proibição das doações individuais. De todo modo, a assistência, apesar das diferenças de sistemas e opiniões, foi administrada com tamanha tacanhez, que o conflito gerado era tão grande quanto o apaziguamento. Aqueles que eram assistidos ressentiam-se com rituais humilhantes a eles impostos, como carregar o “sinal da infâmia” (antes reservado aos leprosos e judeus) ou participar (na França) das procissões anuais dos pobres, em que tinham que desfilar cantando hinos e carregando velas. E protestavam veementemente quando as esmolas não eram prontamente dadas ou eram inadequadas às suas necessidades. Como resposta, em algumas cidades francesas foram erigidas forcas durante as distribuições de comida ou exigia-se que os pobres trabalhassem em troca da alimentação recebida. (Zemon Davis, 1968, p. 249). Na Inglaterra, à medida que avançava o século XVI, o recebimento de assistência pública – mesmo pelas crianças e idosos – foi condicionado ao encarceramento de quem a recebia nas “casas de trabalho”, onde passaram a ser submetidos à experimentação de diferentes esquemas de trabalho.61 Consequentemente, o ataque aos trabalhadores que havia começado com os cercamentos e a Revolução dos Preços, ao cabo de um século, levou à criminalização da classe trabalhadora, isto é, à formação de um vasto proletariado que, ou estava encarcerado nas recém construídas casas de trabalho e de correção, ou se via forçado a buscar sua sobrevivência fora da lei e vivendo em aberto antagonismo frente ao Estado – sempre a um passo do chicote e da forca.

Do ponto de vista da formação de uma força de trabalho laboriosa, estas medidas foram definitivamente um fracasso e a constante preocupação com a questão da disciplina social nos círculos políticos dos séculos XVI e XVII indica que os estadistas e os empresários do momento estavam profundamente conscientes disso. Além disso, a crise social, que esse estado generalizado de rebelião provocava, foi agravada na segunda metade do século XVI por uma nova retração econômica, causada em grande medida pela drástica queda da população na América espanhola após sua conquista e pela redução da economia colonial.
Diminuição da população, crise econômica e disciplinamento das mulheres

Em menos de um século, contando a partir da chegada de Colombo ao continente americano, o sonho dos colonizadores de uma oferta infinita de trabalho (ecoando a estimativa dos exploradores sobre a existência de “uma quantidade infinita de árvores” nas florestas americanas) foi frustrado.

Os europeus haviam trazido a morte à América. As estimativas do colapso populacional que afetou a região depois da invasão colonial variam. No entanto, os especialistas, de forma quase unânime, comparam seus efeitos a uma espécie de “holocausto americano”. De acordo com David Stannard (1992), no século que se seguiu à conquista colonial, a população caiu em torno de 75 milhões na América do Sul, o que representava 95% de seus habitantes (1992, p. 268-305). Esta é também a estimativa de André Gunder Frank, que escreve que “em menos de um século, a população indígena caiu cerca de 90%, chegando a 95% no México, Peru e outras regiões” (1978, p. 43). No México, a população diminuiu “de 11 milhões, em 1519, para 6,5 milhões, em 1565, e para mais ou menos 2,5 milhões, em 1600” (Wallerstein, 1974, p. 89). Em 1580, as doenças […] somadas à brutalidade espanhola, haviam matado ou expulsado a maior parte da população das Antilhas e das planícies da Nova Espanha, Peru e do litoral caribenho” (Crosby, 1972, p. 38) e logo acabariam com muitos mais no Brasil. O clero explicou esse “holocausto” como sendo um castigo de Deus pelo comportamento “bestial” dos índios (Williams, 1986, p. 138); mas suas consequências econômicas não foram ignoradas. Além disso, na década de 1580, a população começou a diminuir também na Europa Ocidental e continuou assim até o início do século XVII, atingindo seu auge na Alemanha, onde se perdeu um terço de seus habitantes.62

Com exceção da Peste Negra (1345-1348), essa foi uma crise populacional sem precedentes. As estatísticas, realmente atrozes, contam apenas uma parte da história. A morte recaiu sobre “os pobres”. Não foram os ricos, em geral, que morreram quando as pragas ou a varíola arrasaram as cidades, mas os artesãos, os trabalhadores e os vagabundos (Kamen, 1972, p. 32-3). Morreram em tal quantidade que seus corpos pavimentavam as ruas e as autoridades denunciavam a existência de uma conspiração, instigando a população a buscar os malfeitores. No entanto, também se considerou como fatores do declínio populacional a baixa taxa de natalidade e a relutância dos pobres em se reproduzir. É difícil dizer até que ponto essa acusação era justificada, dado que os registros demográficos antes do século XVII eram bastante desiguais. Sabemos, no entanto, que, no final do século XVI, a idade de casamento estava aumentando em todas as classes sociais e que, no mesmo período, a quantidade de crianças abandonadas – um fenômeno novo – começou a crescer. Temos também as reclamações dos pastores que, do púlpito, lançavam a acusação de que a juventude não se casava e não procriava para não trazer mais bocas ao mundo do que eram capazes de alimentar.

O ápice da crise demográfica e econômica foram as décadas de 1620 e 1630. Na Europa, assim como em suas colônias, os mercados se contraíram, o comércio se deteve, o desemprego se expandiu e, durante um tempo, pairou a possibilidade de que a economia capitalista em desenvolvimento entrasse em colapso, pois a integração entre as economias coloniais e europeias havia alcançado um ponto em que o impacto recíproco da crise acelerou rapidamente seu curso. Essa foi a primeira crise econômica internacional. Foi uma “Crise Geral”, como designaram os historiadores (Kamen, 1972, p. 307 e ss.; Hackett Fischer, 1996, p. 91).

É nesse contexto que o problema da relação entre trabalho, população e acumulação de riquezas passou ao primeiro plano do debate e das estratégias políticas com a finalidade de produzir os primeiros elementos de uma política populacional e um regime de “biopoder”.63 A crueza dos conceitos aplicados, que às vezes confundem “população relativa” com “população absoluta”, e a brutalidade dos meios pelos quais o Estado começou a castigar qualquer comportamento que obstruísse o crescimento populacional, não deveria nos enganar a esse respeito. O que coloco em discussão é que tenha sido a crise populacional dos séculos XVI e XVII, e não a fome na Europa, durante o século XVIII (tal como defendido por Foucault), que transformou a reprodução e o crescimento populacional em assuntos de Estado e objetos principais do discurso intelectual.64 Sustento, ademais, que a intensificação da perseguição às “bruxas” e os novos métodos disciplinares que o Estado adotou nesse período, com a finalidade de regular a procriação e quebrar o controle das mulheres sobre a reprodução, têm também origem nessa crise. As provas desse argumento são circunstanciais e deve-se reconhecer que outros fatores também contribuíram para aumentar a determinação da estrutura de poder europeia dirigida a controlar de uma forma mais estrita a função reprodutiva das mulheres. Entre eles, devemos incluir a crescente privatização da propriedade e as relações econômicas que, dentro da burguesia, geraram uma nova ansiedade com relação à questão da paternidade e da conduta das mulheres. De forma parecida, na acusação de que as bruxas sacrificavam crianças para o demônio – um tema central da “grande caça às bruxas” dos séculos XVI e XVII – podemos interpretar não só uma preocupação com o declínio da população, mas também o medo que as classes abastadas tinham de seus subordinados, particularmente das mulheres de classe baixa, que, como criadas, mendigas ou curandeiras, tinham muitas oportunidades para entrar nas casas dos empregadores e causar-lhes dano. No entanto, não pode ser apenas coincidência que, ao mesmo tempo em que a população caía e se formava uma ideologia que enfatizava a centralidade do trabalho na vida econômica, foram introduzidas sanções severas nos códigos legais europeus destinadas a castigar as mulheres consideradas culpadas de crimes reprodutivos.

O desdobramento concomitante de uma crise populacional, uma teoria expansionista da população e a introdução de políticas que promoviam o crescimento populacional está bem documentado. Em meados do século XVI, a ideia de que a quantidade de cidadãos determinava a riqueza de uma nação havia se tornado algo parecido com um axioma social. “Do meu ponto de vista”, escreveu o pensador político e demonólogo francês Jean Bodin, “nunca se deveria temer que haja demasiados súditos ou demasiados cidadãos, já que a força da comunidade está nos homens” (Commonwealth, Livro VI). O economista italiano Giovanni Botero (1533-1617) tinha uma posição mais sofisticada, que reconhecia a necessidade de um equilíbrio entre o número de pessoas e os meios de subsistência. Ainda assim, declarou que a grandeza de uma cidade” não dependia de seu tamanho físico nem do circuito de suas muralhas, mas exclusivamente do número de residentes nela. A citação de Henrique IV de que “a força e a riqueza de um rei estão na quantidade e na opulência de seus cidadãos” resume o pensamento demográfico da época.65

A preocupação com o crescimento da população pode ser detectada também no programa da Reforma Protestante. Rejeitando a tradicional exaltação cristã da castidade, os reformadores valorizavam o casamento, a sexualidade e até mesmo as mulheres, por sua capacidade reprodutiva. As mulheres são “necessárias para produzir o crescimento da raça humana”, reconheceu Lutero, refletindo que “quaisquer que sejam suas debilidades, as mulheres possuem uma virtude que anula todas elas: possuem um útero e podem dar à luz” (King, 1991, p. 115).

O apoio ao crescimento populacional chegou ao seu auge com o surgimento do mercantilismo, que fez da existência de uma grande população a chave da prosperidade e do poder de uma nação. Frequentemente, o mercantilismo foi menosprezado pelo saber econômico dominante, na medida em que se trata de um sistema de pensamento rudimentar e, que supõe que a riqueza das nações seja proporcional à quantidade de trabalhadores e de metais preciosos que têm à sua disposição. Os meios brutais que os mercantilistas aplicaram para forçar as pessoas a trabalhar, em sua ânsia por volume de trabalho, contribuiu que tivessem uma má reputação, afinal a maioria dos economistas desejava manter a ilusão de que o capitalismo promove a liberdade e não a coerção. Foi uma classe mercantilista que inventou as casas de trabalho, perseguiu os vagabundos, “transportou” os criminosos às colônias americanas e investiu no tráfico de escravos, sempre afirmando a “utilidade da pobreza” e declarando que o “ócio” era uma praga social. Assim, embora não tenha sido reconhecido, na teoria e na prática mercantilistas encontramos a expressão mais direta dos requisitos da acumulação primitiva e da primeira política capitalista que trata explicitamente do problema da reprodução da força de trabalho. Essa política, como vimos, teve um aspecto “intensivo”, que consistia na imposição de um regime totalitário, que usava todos os meios para extrair o máximo de trabalho de cada indivíduo, independente de sua idade e condição. Mas também teve um aspecto “extensivo”, que consistia no esforço para aumentar o tamanho da população e, desse modo, a envergadura do exército e da força de trabalho.

Como destacou Eli Hecksher, “um desejo quase fanático por aumentar a população predominou em todos os países durante o período mercantilismo esteve em seu apogeu, no final do século XVII” (Hecksher, 1966, p. 158). Ao mesmo tempo, foi estabelecida uma nova concepção dos seres humanos, na qual estes eram vistos como recursos naturais, que trabalhavam e criavam para o Estado (Spengler, 1965, p. 8). Porém, mesmo antes do auge da teoria mercantilista, na França e na Inglaterra, o Estado adotou um conjunto de medidas pró-natalistas, que, combinadas com a assistência pública, formaram o embrião de uma política reprodutiva capitalista. Aprovaram-se leis que bonificavam o casamento e penalizavam o celibato, inspiradas nas que foram adotadas no final do Império Romano com o mesmo propósito. Foi dada uma nova importância à família enquanto instituição chave, que assegurava a transmissão da propriedade e a reprodução da força de trabalho. Simultanemente, observa-se o início do registro demográfico e da intervenção do Estado na supervisão da sexualidade, da procriação e da vida familiar.

No entanto, a principal iniciativa do Estado com o fim de restaurar a proporção populacional desejada, foi lançar uma verdadeira guerra contra as mulheres, claramente orientada a quebrar o controle que elas haviam exercido sobre seus corpos e sua reprodução. Como veremos mais adiante, essa guerra foi travada principalmente por meio da caça às bruxas, que literalmente demonizou qualquer forma de controle de natalidade e de sexualidade não-procriativa, ao mesmo tempo em que acusava as mulheres de sacrificar crianças para o demônio. Mas a guerra também recorreu a uma redefinição do que constituía um crime reprodutivo. Desse modo, a partir de meados do século XVI, ao mesmo tempo em que os barcos portugueses retornavam da África com seus primeiros carregamentos humanos, todos os governos europeus começaram a impor penas mais severas à contracepção, ao aborto e ao infanticídio.

Esta última prática havia sido tratada com certa indulgência na Idade Média, pelo menos no caso das mulheres pobres, mas agora se tornou um delito sancionado com a pena de morte e castigado com maior severidade que os crimes masculinos.

Em Nuremberg, no século XVI, a pena por infanticídio materno era o afogamento; em 1580, ano em que as cabeças cortadas de três mulheres condenadas por infanticídio materno eram pregadas para contemplação pública, a sanção foi alterada para decapitação (King, 1991, p. 10).66

Também foram adotadas novas formas de vigilância para assegurar que as mulheres não interrompessem a gravidez. Na França, um édito real de 1556 requeria que as mulheres registrassem cada gravidez e sentenciava à morte aquelas cujos bebês morriam antes do batismo, depois de um parto às escondidas, sem que importasse se fossem consideradas culpadas ou inocentes de sua morte. Estatutos semelhantes foram aprovados na Inglaterra e na Escócia em 1624 e 1690. Também foi criado um sistema de espionagem com a finalidade de vigiar as mães solteiras e privá-las de qualquer apoio. Até mesmo hospedar uma mulher grávida solteira era ilegal, por temor de que pudessem escapar da vigilância pública; enquanto quem fazia amizade com ela era exposto à crítica pública (Wiesner, 1993, p. 51-2; Ozment, 1983, p. 43).

Uma das consequências de tudo isso foi que a mulheres começaram a ser processadas em grande escala e, nos séculos XVI e XVII, mais delas foram executadas por infanticídio do que por qualquer outro crime, exceto bruxaria, uma acusação que também estava centrada no assassinato de crianças e outras violações de normas reprodutivas. Significativamente, tanto no caso do infanticídio quanto no de bruxaria, aboliram-se os estatutos que anteriormente limitavam a atribuição de responsabilidade legal às mulheres. Assim, as mulheres ingressaram nas cortes da Europa pela primeira vez em nome próprio, como legalmente adultas, sob a acusação de serem bruxas e assassinas de crianças. Também, a suspeita que recaiu sobre as parteiras nesse período – e que levou ao ingresso de médicos homens na sala de partos – provinha mais do medo que as autoridades tinham do infanticídio do que de qualquer outra preocupação pela suposta incompetência médica das mesmas.

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Albrecht Dürer, O nascimento da Virgem (1502-1503). O parto era um dos principais eventos na vida de uma mulher e uma ocasião em que a cooperação feminina triunfava.

Com a marginalização da parteira, começou um processo pelo qual as mulheres perderam o controle que haviam exercido sobre a procriação, reduzidas a um papel passivo no parto, enquanto os médicos homens passaram a ser considerados como “aqueles que realmente davam vida” (como nos sonhos alquimistas dos magos renascentistas). Com essa mudança, também começou o predomínio de uma nova prática médica que, em caso de emergência, priorizava a vida do feto em detrimento da vida da mãe. Isso contrastava com o processo de nascimento habitual que as mulheres haviam controlado. E, efetivamente, para que isso ocorresse, a comunidade de mulheres que se reunia em torno da cama da futura mãe teve que ser expulsa da sala de partos, ao mesmo tempo em que as parteiras eram postas sob vigilância do médico ou eram recrutadas para policiar outras mulheres.

Na França e na Alemanha, as parteiras tinham que se tornar espiãs do Estado se quisessem continuar sua prática. Esperava-se delas que informassem sobre todos os novos nascimentos, descobrissem os pais de crianças nascidas fora do casamento e examinassem as mulheres suspeitas de ter dado à luz em segredo. Também tinham que examinar as mulheres locais, buscando sinais de lactância, quando eram encontradas crianças abandonadas nos degraus das igrejas (Wiesner, 1933, p. 52). O mesmo tipo de colaboração era exigido de parentes e vizinhos. Nos países e cidades protestantes, esperava-se que os vizinhos espiassem as mulheres e informassem sobre todos os detalhes sexuais relevantes: se uma mulher recebia um homem quando o marido estava ausente ou se entrava numa casa com um homem e fechava a porta (Ozment, 1983, p. 42-4). Na Alemanha, a cruzada pró-natalista atingiu tal ponto que as mulheres eram castigadas se não faziam esforço suficiente durante o parto ou demonstravam pouco entusiasmo por suas crias (Rublack, 1996, p. 92).

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A masculinização da prática médica é retratada nesta gravura inglesa de 1651, que mostra um anjo afastando uma curandeira do leito de um homem doente. A faixa denuncia sua incompetência. “Erros populares ou os erros do povo em questões de medicina”.

O resultado destas políticas que duraram dois séculos (as mulheres continuavam sendo executadas na Europa por infanticídio no final do século XVIII) foi a escravização das mulheres à procriação. Enquanto na Idade Média, as mulheres podiam usar métodos contraceptivos e haviam exercido um controle indiscutível sobre o processo de parto, a partir de agora seus úteros se transformaram em território político, controlados pelos homens e pelo Estado: a procriação foi colocada diretamente a serviço da acumulação capitalista.

Nesse sentido, o destino das mulheres na Europa ocidental, no período de acumulação primitiva, foi similar ao das escravas nas plantations coloniais americanas, que, especialmente depois do fim do tráfico de escravos em 1807, foram forçadas por seus senhores a se tornar criadoras de novos trabalhadores. A comparação, obviamente, tem sérios limites. As mulheres europeias não estavam abertamente expostas às agressões sexuais, embora as mulheres proletárias pudessem ser estupradas com impunidade e castigadas por isso. Tampouco tiveram que sofrer a agonia de ver seus filhos levados embora e vendidos em leilão. Os ganhos econômicos derivados dos nascimentos a que estavam obrigadas a gerar eram muito mais dissimulados. Nesse aspecto, a condição de mulher escrava revela de uma forma mais explícita a verdade e a lógica da acumulação capitalista. Mas, apesar das diferenças, em ambos os casos o corpo feminino foi transformado em instrumento para a reprodução do trabalho e para a expansão da força de trabalho, tratado como uma máquina natural de criação, funcionando de acordo com ritmos que estavam fora do controle das mulheres.

Esse aspecto da acumulação primitiva está ausente na análise de Marx. Com exceção de seus comentários no Manifesto Comunista acerca do uso das mulheres na família burguesa – como produtoras de herdeiros que garantiam a transmissão da propriedade familiar – Marx nunca reconheceu que a procriação poderia se tornar um terreno de exploração e, pela mesma razão, um terreno de resistência.

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A prostituta e o soldado. Viajando com frequência junto aos acampamentos militares, as prostitutas atuavam como esposa para os soldados e outros proletários, lavando e cozinhando, além de prover serviços sexuais aos homens a quem servia.

Ele nunca imaginou que as mulheres pudessem resistir à reprodução ou que esta recusa pudesse se transformar em parte da luta de classes. Nos Grundrisse (1973, p. 100), ele argumentou que o desenvolvimento capitalista avança independentemente das taxas populacionais, porque, em virtude da crescente produtividade do trabalho, o trabalho que o capital explora diminui constantemente em relação ao “capital constante” (isto é, o capital investido em maquinário e outros bens), com a consequente determinação de uma “população excedente”. Mas essa dinâmica, que Marx define como a “lei de população típica do modo de produção capitalista” (Capital, T. 1, p. 689 e ss.), só poderia ser imposta se a procriação fosse um processo puramente biológico ou uma atividade que respondesse automaticamente à mudança econômica, e se o capital e o Estado não precisassem se preocupar que as “mulheres entrassem em greve contra a produção de crianças”. De fato, este era o pressuposto de Marx foi isto. Ele reconheceu que o desenvolvimento capitalista foi acompanhado por um crescimento na população, cujas causas discutiu ocasionalmente. No entanto, como Adam Smith, ele viu esse aumento como um “efeito natural” do desenvolvimento econômico. No Tomo I de O Capital, contrastou reiteradamente a determinação de um “excedente de população” com o “crescimento natural” da população. Por que a procriação deveria ser um “fato da natureza” e não uma atividade historicamente determinada, carregada de interesses e relações de poder diversas é uma pergunta que Marx não formulou. Tampouco imaginou que os homens e as mulheres poderiam ter interesses distintos no que diz respeito a fazer filhos, uma atividade que ele tratou como um processo indiferenciado, neutro do ponto de vista de gênero.

Na realidade, as mudanças na procriação e na população estão tão longe de ser automáticas ou “naturais” que, em todas as fases do desenvolvimento capitalista, o Estado teve que recorrer à regulação e à coerção para expandir ou reduzir a força de trabalho. Isso era especialmente verdade no momento em que o capitalismo estava apenas decolando, quando os músculos e ossos dos trabalhadores eram os principais meios de produção. Mas mesmo depois – e até o presente – o Estado não poupou esforços na sua tentativa de arrancar das mãos femininas o controle da reprodução e da determinação de que crianças deveriam nascer, onde, quando ou em que quantidade. Como resultado, as mulheres foram forçadas frequentemente a procriar contra sua vontade, experimentando uma alienação de seus corpos, seu “trabalho” e até mesmo seus filhos mais profunda que a experimentada por qualquer outro trabalhador (Martin, 1987, p. 19-21). Ninguém pode descrever, de fato, a angústia e o desespero sofridos por uma mulher ao ver seu corpo se voltando contra si mesma,como acontece no caso de uma gravidez indesejada. Isso é particularmente verdade naquelas situações em que a gravidez fora do casamento era penalizada com o ostracismo social ou, até mesmo, com a morte.
A desvalorização do trabalho feminino

A criminalização do controle das mulheres sobre a procriação é um fenômeno cuja importância não pode deixar de ser enfatizada, tanto do ponto de vista de seus efeitos sobre as mulheres, quanto por suas consequências na organização capitalista do trabalho. Está bem documentado que, durante a Idade Média, as mulheres haviam contado com muitos métodos contraconceptivos, que basicamente consistiam em ervas transformadas em poções e “pessários” (supositórios vaginais), que se usavam para estimular a menstruação de uma mulher, provocar um aborto ou criar uma condição de esterilidade. Em Eve’s Herbs: A History of Contraception in the West (1997) Ervas de Eva: Uma história da contracepção no Ocidente, o historiador estadunidense John Riddle nos oferece um extenso catálogo das substância mais utilizadas e os efeitos esperados delas ou o que era mais provável que ocorresse.67 A criminalização da contraconcepção expropriou as mulheres deste saber que havia sido transmitido de geração a geração, proporcionando-lhes certa autonomia em relação ao nascimento de filhos. Aparentemente, em alguns casos, este saber não foi perdido, mas passou à clandestinidade; no entanto, quando o controle da natalidade apareceu novamente no cenário social, os métodos contraceptivos já não eram do tipo que as mulheres podiam usar, mas foram especificamente criados para o uso masculino. Quais foram as consequências demográficas que se seguiram a partir desta mudança é uma pergunta que, por enquanto, não vou tentar responder, embora recomende o trabalho de Riddle (1997) para uma discussão sobre o tema. Aqui, quero apenas ressaltar que, ao negar às mulheres o controle sobre seus corpos, o Estado privou-as da condição fundamental de sua integridade física e psicológica, degradando a maternidade à condição de trabalho forçado, além de confinar as mulheres à atividade reprodutiva de um modo desconhecido por sociedades anteriores. Entretanto, forçar as mulheres a procriar contra a sua vontade ou (como dizia uma canção feminista dos anos 1970) forçá-las a “produzir filhas e filhos para o Estado”,68 é uma definição parcial das funções das mulheres na nova divisão sexual do trabalho. Um aspecto complementar foi a redução das mulheres a não-trabalhadoras, um processo, muito estudado pelas historiadoras feministas, que estava praticamente completo até o final do século XVII.

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Uma prostituta convidando um cliente. O número de prostitutas cresceu imensamente como saldo da privatização da terra e da comercialização da agricultura que expulsou muitas camponesas das áreas rurais.

Nessa época, as mulheres haviam perdido espaço inclusive nas ocupações que haviam sido suas prerrogativas, como a fabricação de cerveja e a realização de partos, em que seu emprego estava sujeito a novas restrições. As proletárias em particular encontraram dificuldades para obter qualquer emprego além daqueles de status mais baixos: como empregadas domésticas (a ocupação de um terço da mão de obra feminina), trabalhadoras rurais, fiandeiras, tecelãs, bordadeiras, vendedoras ambulantes ou amas de leite. Como Merry Wiesner (entre outros) nos conta, ganhava espaço (no direito, nos registros de impostos, nas ordenações das guildas) a suposição de que as mulheres não deviam trabalhar fora de casa e que tinham apenas que participar na “produção” para ajudar seus maridos. Dizia-se até mesmo que qualquer trabalho feito por mulheres em sua casa era “não-trabalho” e não possuía valor, mesmo quando voltado para o mercado (Wiesner, 1993, p. 83 e ss.). Assim, se uma mulher costurava algumas roupas, tratava-se de “trabalho doméstico” ou de “tarefas de dona de casa”, imesmo se as roupas não eram para a família, enquanto que, quando um homem fazia o mesmo trabalho, se considerava como “produtivo”. A desvalorização do trabalho feminino era tal que os governos das cidades ordenaram às guildas que ignorassem a produção que as mulheres (especialmente as viúvas), realizavam em suas casas, por não se tratar realmente de trabalho, e porque as mulheres precisavam dessa produção para não dependerem da assistência pública, Wiesner acrescenta que as mulheres aceitavam esta ficção e até mesmo se desculpavam por pedir trabalho, suplicando por isso devido à necessidade de se manterem (ibidem, p. 84-5). Rapidamente, todo o trabalho feminino, quando realizado em casa, seria definido como “tarefa doméstica”, e até mesmo quando feito fora de casa era pago a um valor menor do que o trabalho masculino – nunca o suficiente para que as mulheres pudessem sobreviver dele. O casamento era visto como a verdadeira carreira para uma mulher e a incapacidade das mulheres de se manterem sozinhas era algo dado como tão certo que, quando uma mulher solteira tentava se assentar em um vilarejo, ela era expulsa, mesmo se ganhasse um salário.

Somada à expropriação das terras, essa perda de poder com relação ao trabalho assalariado levou à massificação da prostituição. Como relata Le Roy Ladurie (1974, p. 112-13), o crescimento do número de prostitutas na França e na Catalunha era visível por todas as partes:

De Avignon a Barcelona, passando por Narbona, as “mulheres libertinas” (femmes de débauche) paravam nas portas das cidades, nas ruas dos bairros de luz vermelha (…) e nas pontes (…) de tal modo que, em 1594, o “tráfico vergonhoso” florescia como nunca antes.

A situação era similar na Inglaterra e na Espanha, onde todos os dias chegavam às cidades mulheres pobres do campo. Mesmo as esposas de artesãos complementavam a renda familiar por meio desse trabalho. Em Madri, em 1631, um panfleto distribuído pelas autoridades políticas denunciava o problema, queixando-se de que muitas mulheres vagabundas estavam agora perambulando pelas ruas da cidade, becos e tavernas, atiçando os homens a pecar com elas (Vigil, 1986, p. 114-15). Porém, logo que a prostituição se tornou a principal forma de subsistência para uma grande parte da população feminina, a atitude institucional a respeito delas mudou. Enquanto na Baixa Idade Média havia sido aceita oficialmente como um mal necessário e as prostitutas haviam se beneficiado de um regime de altos salários, no século XVI, a situação se reverteu. Num clima de intensa misoginia, caracterizada pelo avanço da Reforma Protestante e pela caça às bruxas, a prostituição foi, inicialmente, sujeita a novas restrições e depois criminalizada. Por todas as partes, entre 1530 e 1560, os bordéis urbanos foram fechados e as prostitutas, especialmente aquelas que trabalhavam na rua, foram severamente penalizadas: banimento, flagelação e outras formas cruéis de reprimendas. Entre elas, a “cadeira de imersão” (ducking stool ou accabussade) – “peça de teatro macabro”, como a descreve Nickie Roberts – em que as vítimas eram atadas, às vezes presas numa jaula, e, então, eram repetidamente imersas em rios ou lagoas até quase se afogarem (Roberts, 1992, p. 115-16). Enquanto isso, na França do século XVI, o estupro de prostitutas deixou de ser um crime.69 Em Madri, também foi decidido que as vagabundas e prostitutas não estavam autorizadas a permanecer e dormir nas ruas ou sob os pórticos e, se fossem pegas em flagrante, deveriam receber cem chibatadas e, depois, ser banidas da cidade por seis anos, além de terem a cabeça e as sobrancelhas raspadas.

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Uma prostituta submetida à tortura conhecida como accabusade. “Ela será imersa no rio várias vezes e então encarcerada pelo resto da sua vida”.

O que pode explicar esse ataque tão drástico contra as trabalhadoras? E de que maneira a exclusão das mulheres da esfera do trabalho socialmente reconhecido e das relações monetárias se relaciona com a imposição da maternidade forçada e a simultânea massificação da caça às bruxas?

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Assim como a “batalha pelas calças”, a imagem da esposa dominadora desafiando a hierarquia sexual e espancando seu marido era um dos alvos favoritos da literatura social dos séculos XVI e XVII. Gravura de Martin Treu, a partir de Albrecht Dürer, século XVII.

Quando se consideram esses fenômenos da perspectiva privilegiada do presente, depois de quatro séculos de disciplinamento capitalista das mulheres, as respostas parecem se impor por si mesmas. Embora o trabalho assalariado das mulheres, os trabalhos domésticos e sexuais (remunerados) ainda sejam estudados com muita frequência isolados uns dos outros, agora nos encontramos numa posição melhor para ver que a discriminação sofrida pelas mulheres, como mão-de-obra remunerada, esteve diretamente relacionada à sua função como trabalhadoras não-assalariadas no lar. Dessa forma, podemos relacionar a proibição da prostituição e a expulsão das mulheres do espaço de trabalho organizado com a aparição da figura da dona-de-casa e da redefinição da família como lugar para a produção da força de trabalho. De um ponto de vista teórico e político, entretanto, a questão fundamental está nas condições que tornaram possível tal degradação e as forças sociais que a promoveram ou que foram cúmplices.

A resposta aqui é que um importante fator na desvalorização do trabalho feminino foi a campanha levada a cabo por artesãos, a partir do final do século XV, com o propósito de excluir as trabalhadoras de suas oficinas, supostamente para protegerem-se dos ataques dos comerciantes capitalistas que empregavam mulheres a preços menores. Os esforços dos artesãos deixaram um abundante rastro de provas.70 Tanto na Itália, quanto na França e na Alemanha, os oficiais artesãos solicitaram às autoridades que não permitissem que as mulheres competissem com eles, proibindo-as entre seus quadros, fizeram greve quando a proibição não foi levada em consideração, e, inclusive, negando-se a trabalhar com homens que trabalhavam com mulheres. Aparentemente, os artesãos estavam interessados também em limitar as mulheres ao trabalho doméstico, já que, dadas as suas dificuldades econômicas, “a prudente administração da casa por parte de uma mulher” estava se tornando para eles uma condição indispensável para evitar a bancarrota e manter uma oficina independente. Sigfrid Brauner (o autor da citação acima) fala da importância que os artesãos alemães davam a esta norma social (Brauner, 1995, p. 96-7). As mulheres procuraram resistir frente a essa investida, mas fracassaram, devido às táticas intimidadoras que os trabalhadores usaram contra elas. Aquelas que ousaram trabalhar fora do lar, em um espaço público e para o mercado, foram representadas como megeras sexualmente agressivas ou até mesmo como “putas” ou “bruxas” (Howell, 1986, p. 182-83).71 Com efeito, há provas de que a onda de misoginia que, no final do século XV, cresceu nas cidades europeias – refletida na obsessão dos homens pela “luta pelas calças” e pela personagem da esposa desobediente, retratada na literatura popular batendo em seu marido ou montando em suas costas como num cavalo – emanando também dessa tentativa (contraproducente) de tirar as mulheres dos postos de trabalho e do mercado.

Por outro lado, é evidente que essa tentativa não haveria triunfado se as autoridades não tivessem cooperado. Obviamente, se deram conta de que aquilo era o mais favorável a seus interesses, pois, além de pacificar os oficiais artesãos rebeldes, a exclusão das mulheres dos ofícios forneceu as bases necessárias para a fixação delas no trabalho reprodutivo e para sua utilização como trabalho mal remunerado na indústria artesanal doméstica.
As mulheres como novos bens comuns e como substituto das terras perdidas

Foi a partir desta aliança entre os artesãos e as autoridades das cidades, junto com a contínua privatização da terra, que se forjou uma nova divisão sexual do trabalho ou, melhor dizendo, um novo “contrato sexual”, segundo as palavras de Carol Pateman (1988), que definia as mulheres em termos – mães, esposas, filhas, viúvas – que ocultavam sua condição de trabalhadoras, enquanto dava aos homens livre acesso aos corpos das mulheres, a seu trabalho e aos corpos e trabalho de seus filhos.

De acordo com este novo contrato social-sexual, as proletárias se tornaram para os trabalhadores homens substitutas das terras que perderam com os cercamentos, seu meio de reprodução mais básico e um bem comum de que qualquer um podia se apropriar e usar segundo sua vontade. Os ecos desta “apropriação primitiva” podem ser ouvidos no conceito de “mulher comum” (Karras, 1989), que, no século XVI, qualificava aquelas mulheres que se prostituíam. Porém, na nova organização do trabalho, todas as mulheres (exceto as que haviam sido privatizadas pelos homens burgueses) tornaram-se bens comuns, pois uma vez que as atividades das mulheres foram definidas como não-trabalho, o trabalho das mulheres começou a parecer um recurso natural, disponível para todos, assim como o ar que respiramos e a água que bebemos.

Esta foi uma derrota histórica para as mulheres. Com sua expulsão dos ofícios e a desvalorização do trabalho reprodutivo, a pobreza foi feminilizada e, para colocar em prática a “apropriação primitiva” dos homens sobre o trabalho feminino, foi construída uma nova ordem patriarcal, reduzindo-se as mulheres a uma dupla dependência: de seus empregadores e dos homens. O fato de que as relações de poder desiguais entre mulheres e homens existiam mesmo antes do advento do capitalismo, assim como uma divisão sexual do trabalho discriminatória, não foge a esta avaliação. Isso porque, na Europa pré-capitalista, a subordinação das mulheres aos homens esteve atenuada pelo fato de que elas tinham acesso às terras e a outros bens comuns, enquanto, no novo regime capitalista, as próprias mulheres se tornaram bens comuns, dado que seu trabalho foi definido como um recurso natural, que estava fora da esfera das relações de mercado.

O patriarcado do salário

Nesse contexto, são significativas as mudanças que se deram dentro da família, que, nesse período, começou a se separar da esfera pública, adquirindo suas conotações modernas enquanto principal centro para a reprodução da força de trabalho.

Complemento do mercado, instrumento para a privatização das relações sociais e, sobretudo, para a propagação da disciplina capitalista e da dominação patriarcal, a família surgiu no período de acumulação primitiva também como a instituição mais importante para a apropriação e ocultamento do trabalho das mulheres.

É possível notar isso especialmente nas famílias da classe trabalhadora. Trata-se, todavia, de um tema pouco estudado. As discussões anteriores privilegiaram a família de homens proprietários, plausivelmente porque, na época a que estamos nos referindo, esta era a forma e o modelo dominante de relação com os filhos e entre os cônjuges. Também houve maior interesse na família como instituição política do que como lugar de trabalho. O que foi enfatizado, então, foi o fato de que, na nova família burguesa, o marido tornou-se o representante do Estado, o encarregado de disciplinar e supervisionar as “classes subordinadas”, uma categoria que, para os teóricos políticos dos séculos XVI e XVII (por exemplo, Jean Bodin), incluía a esposa e seus filhos (Schochet, 1975). Daí a identificação da família com um micro-Estado ou uma micro-Igreja, assim como a exigência por parte das autoridades de que os trabalhadores e trabalhadoras solteiros vivessem sob o teto e as ordens de um senhor. Também é destacado que, dentro da família burguesa, a mulher perdeu muito de seu poder, sendo geralmente excluída dos negócios familiares e confinada a supervisionar os cuidados domésticos.

Mas o que falta neste retrato é o reconhecimento de que, enquanto na classe alta era a propriedade que dava ao marido poder sobre sua esposa e filhos, a exclusão das mulheres do recebimento de salário dava aos trabalhadores um poder semelhante sobre suas mulheres.

Um exemplo dessa tendência foi o tipo de família que se formou em torno dos trabalhadores da indústria artesanal no sistema doméstico. Longe de evitar o casamento e a formação de uma família, os homens que trabalhavam na indústria artesanal doméstica dependiam disso, afinal uma esposa podia “ajudar-lhes” com o trabalho que eles realizavam para os comerciantes, ao cuidarem de suas necessidades físicas e do provimento de filhos, que, desde a tenra idade, podiam ser empregados no tear ou em alguma ocupação auxiliar. Desse modo, até mesmo em tempos de declínio populacional, os trabalhadores da indústria doméstica continuaram aparentemente multiplicando-se. Suas famílias eram tão numerosas que, no século XVII, um austríaco, observando os trabalhadores que moravam em seu vilarejo, os descreveu como pardais num poleiro, apinhados em suas casas. O que se destaca nesse tipo de organização é que, embora a esposa trabalhasse junto ao seu marido, produzindo também para o mercado, era o marido que recebia o salário da mulher. Isso também ocorria com outras trabalhadoras, assim que se casavam. Na Inglaterra, “um homem casado […] tinha direitos legais sobre os rendimentos de sua esposa”, inclusive quando o trabalho que ela realizava era o de amamentar. Dessa forma, quando uma paróquia empregava uma mulher para fazer esse tipo de trabalho, os registros “ocultavam, frequentemente, sua condição de trabalhadoras”, computando o pagamento sob o nome dos homens. “Se o pagamento seria feito ao homem ou à mulher, dependia do capricho do administrador” (Mendelson e Crawford, 1998, p. 287).

Tal política, que impossibilitava que as mulheres tivessem seu próprio dinheiro, criou as condições materiais para sua sujeição aos homens e para a apropriação de seu trabalho por parte dos trabalhadores homens. É nesse sentido que eu falo do patriarcado do salário. Também devemos repensar o conceito de “escravidão do salário”. Se é certo que os trabalhadores homens, sob o novo regime de trabalho assalariado, passaram a ser livres apenas num sentido formal, o grupo de trabalhadores que, na transição para o capitalismo, mais se aproximaram da condição de escravos foram as mulheres trabalhadoras.

Ao mesmo tempo – dadas as condições miseráveis nas quais viviam os trabalhadores assalariados – o trabalho doméstico, que as mulheres realizavam para a reprodução de suas famílias, estava necessariamente limitado. Casadas ou não, as proletárias precisavam ganhar algum dinheiro, o que conseguiam por meio de múltiplos trabalhos. Por outro lado, o trabalho doméstico exigia certo capital reprodutivo: móveis, utensílios, vestimentas, dinheiro para os alimentos. No entanto, os trabalhadores assalariados viviam na pobreza, “escravizados dia e noite” (como denunciou um artesão de Nuremberg em 1524), apenas podiam passar fome e alimentar suas esposas e filhos (Brauner, 1995, p. 96). A maioria praticamente não tinha um teto sobre suas cabeças, viviam em cabanas compartilhadas com outras famílias e animais, em que a higiene (pouco observada até mesmo entre aqueles que estavam em melhor situação) faltava por completo; suas roupas eram farrapos e, no melhor dos casos, sua dieta consistia em pão, queijo e algumas verduras. Dessa forma, nós não encontramos entre a classe trabalhadora, neste período, a clássica figura da dona de casa em período integral. Foi somente no século XIX – como resposta ao primeiro ciclo intenso de lutas contra o trabalho industrial – que a “família moderna”, centrada no trabalho reprodutivo, em tempo integral, não remunerado da dona-de-casa, se generalizou entre a classe trabalhadora, primeiro na Inglaterra e, mais tarde, nos Estados Unidos.

Seu desenvolvimento (após a aprovação das Leis Fabris, que limitavam o emprego de mulheres e crianças nas fábricas) refletiu o primeiro investimento de longo prazo da classe capitalista sobre a reprodução da força de trabalho, para além de sua expansão numérica. Foi resultado de uma permuta, forjada sob a ameaça de insurreição, entre a garantia de maiores salários, capazes de sustentar uma esposa “não-trabalhadora” e uma taxa mais intensiva de exploração. Marx tratou disso como uma mudança da “mais-valia absoluta” para a “relativa”, isto é, uma mudança de um tipo de exploração baseado na máxima extensão da jornada de trabalho e na redução do salário a um mínimo para um regime em que é possível compensar os salários mais altos e as horas de trabalho mais curtas por meio de um aumento da produtividade do trabalho e do ritmo da produção. Da perspectiva capitalista, foi uma revolução social, que passou por cima do antigo comprometimento com baixos salários. Foi resultado de um novo acordo entre os trabalhadores e os empregadores, novamente baseado na exclusão das mulheres do recebimento de salários – colocando um fim em seu recrutamento das primeiras fases da Revolução Industrial. Também foi o marco de um novo período de afluência capitalista, produto de dois séculos de exploração do trabalho escravo, que logo seria potencializado por uma nova fase de expansão colonial.

Nos séculos XVI e XVII, por outro lado, apesar de uma obsessiva preocupação com o tamanho da população e com a quantidade de “trabalhadores pobres”, o investimento real na reprodução da força de trabalho era extremamente baixa. Consequentemente, o grosso do trabalho reprodutivo realizado pelas proletárias não estava destinado às suas famílias, mas às famílias de seus empregadores ou, então, ao mercado. Em média, um terço da população feminina da Inglaterra, Espanha, França e Itália trabalhava como criada. Assim, a tendência, no proletariado, era de postergar o casamento e desintegrar a família (os vilarejos ingleses do século XVI experimentaram uma diminuição anual de 50%). Com frequência, os pobres eram até mesmo proibidos de se casar, quando se temia que seus filhos pudessem cair na assistência pública e, nesses casos, as crianças eram retiradas de sua guarda, sendo colocadas para trabalhar na paróquia. Estima-se que um terço, ou mais, da população rural da Europa permaneceu solteira; nas cidades, as taxas eram ainda maiores, especialmente entre as mulheres; na Alemanha, 40% eram “solteironas” ou viúvas (Ozment, 1983, p. 41-2).

Contudo, dentro da comunidade trabalhadora do período de transição, já podemos ver o surgimento da divisão sexual do trabalho que seria típica da organização capitalista – embora as tarefas domésticas tenham sido reduzidas ao mínimo e as proletárias também tivessem sempre que trabalhar para o mercado. Em seu cerne, havia uma crescente diferenciação entre o trabalho feminino e o masculino, à medida que as tarefas realizadas por mulheres e homens se tornavam mais diversificadas e, sobretudo, tornavam-se portadoras de relações sociais diferentes.

Por mais empobrecidos e destituídos de poder que eles fossem, os trabalhadores assalariados homens ainda podiam ser beneficiados pelo trabalho e rendimentos de suas esposas ou podiam comprar os serviços das prostitutas. Ao longo desta primeira fase de proletarização, era a prostituta que realizava com maior frequência as funções de esposa para os trabalhadores homens, cozinhando e limpando para eles, além de servir-lhes sexualmente. Ademais, a criminalização da prostituição, que castigou a mulher, mas quase não teve efeitos sobre seus clientes homens, reforçou o poder masculino. Qualquer homem podia, agora, destruir uma mulher, simplesmente declarando que ela era uma prostituta ou dizendo publicamente que ela havia cedido aos desejos sexuais dele. As mulheres teriam que suplicar aos homens “que não lhes tirassem sua honra” (a única propriedade que restava a elas) (Cavallo e Cerutti, 1980, p. 346 e ss.), já que suas vidas estavam agora nas mãos dos homens, que (como senhores feudais) podiam exercer sobre elas um poder de vida ou morte.

A domesticação das mulheres e a redefinição da feminilidade e da masculinidade: mulheres, selvagens da Europa

Não é surpreendente, então, quando observamos essa desvalorização do trabalho e da condição social feminina, que a insubordinação das mulheres e os métodos pelos quais puderam ser “domesticadas” estavam entre os principais temas da literatura e da política social da “transição” (Underdown, 1985a, p. 116-36).72 As mulheres não poderiam ter sido totalmente desvalorizadas enquanto trabalhadoras e privadas de toda sua autonomia com relação aos homens, se não tivessem sido submetidas a um intenso processo de degradação social; e, de fato, ao longo dos séculos XVI e XVII, as mulheres perderam terreno em todas as áreas da vida social.

Uma destas áreas-chave pela qual se produziram grandes mudanças foi a lei. Aqui, nesse período, é possível observar uma constante erosão dos direitos das mulheres.73 Um dos direitos mais importantes que as mulheres perderam foi o de realizar atividades econômicas por conta própria, como femmes soles. Na França, perderam o direito de fazer contratos ou de representar a si mesmas nos tribunais, tendo sido declaradas legalmente como “imbecis”. Na Itália, começaram a aparecer com menos frequência nos tribunais para denunciar abusos perpetrados contra elas. Na Alemanha, quando uma mulher de classe média tornava-se viúva, passou a ser comum a designação de um tutor para administrar seus negócios. Também foi proibido às mulheres alemãs que vivessem sozinhas ou com outras mulheres e, no caso das mais pobres, não podiam morar nem com suas próprias famílias, afinal pressupunha-se que não seriam adequadamente controladas. Em suma, além da desvalorização econômica e social, as mulheres experimentaram um processo de infantilização legal.

A perda de poder social das mulheres expressou-se também por meio de uma nova diferenciação sexual do espaço. Nos países mediterrâneos, as mulheres foram expulsas não apenas de muitos trabalhos assalariados, como também das ruas, onde uma mulher desacompanhada corria o risco de ser ridicularizada ou atacada sexualmente (Davis, 1998). Na Inglaterra, (“um paraíso para as mulheres”, na visão de alguns visitantes italianos) a presença delas em público também começou a ser malvista. As mulheres inglesas eram dissuadidas de sentar-se em frente a suas casas ou de ficar perto das janelas; também eram orientadas a não se reunirem com suas amigas (nesse período a palavra “gossip” fofoca — que significa “amiga” — passou a ganhar conotações depreciativas). Inclusive, era recomendado às mulheres que não visitassem seus pais com muita frequência depois do casamento.

Como a nova divisão sexual do trabalho reconfigurou as relações entre homens e mulheres é algo que se pode ver a partir do amplo debate que foi travado na literatura erudita e popular acerca da natureza das virtudes e dos vícios femininos, um dos principais caminhos para a redefinição ideológica das relações de gênero na transição para o capitalismo. Conhecido desde muito antes como “la querelle des femmes”, o que resulta deste debate é uma curiosidade renovada pela questão, o que indica que as velhas normas estavam se desmembrando e o público estava se dando conta de que os elementos básicos da política sexual estavam sendo reconstruídos. É possível identificar duas tendências dentro desse debate. Por um lado, construíam-se novos cânones culturais que maximizavam as diferenças entre as mulheres e os homens, criando protótipos mais femininos e mais masculinos (Fortunati, 1984). Por outro lado, foi estabelecido que as mulheres eram inerentemente inferiores aos homens – excessivamente emocionais e luxuriosas, incapazes de se governar – e tinham que ser colocadas sob o controle masculino. Da mesma forma que ocorreu com a condenação da bruxaria, o consenso sobre esta questão atravessava as divisões religiosas e intelectuais. Do púlpito ou por meio da escrita, humanistas, reformadores protestantes, contrarreformadores católicos, todos cooperaram no aviltamento das mulheres, constante e obsessivamente.

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Uma “resmungona” é obrigada a desfilar pela comunidade usando a “rédea”, uma engenhoca de ferro usado para punir mulheres de lingua afiada. Significativamente, um aparato similar era usado por europeus traficantes de escravos na África para dominar os cativos e transportá-los a seus barcos. Gravura inglesa do século XVII.

As mulheres eram acusadas de ser pouco razoáveis, vaidosas, selvagens, esbanjadoras. A língua feminina era especialmente culpável, considerada um instrumento de insubordinação. Porém, a principal vilã era a esposa desobediente, que, ao lado da “desbocada”, da “bruxa” e da “puta”, era o alvo favorito de dramaturgos, escritores populares e moralistas. Nesse sentido, A megera domada (1593) de Shakespeare era um manifesto da época. O castigo da insubordinação feminina à autoridade patriarcal foi evocado e celebrado em inúmeras obras de teatro e panfletos. A literatura inglesa dos períodos de Elizabeth I e de Jaime I fez a festa com esses temas. Obra típica do gênero é “Tis a Pity She’s a Whore” Pena que ela era uma prostituta (1633), de John Ford, que termina com o assassinato, a execução e o homicídio didáticos de três das quatro personagens femininas. Outras obras clássicas que trataram da disciplina das mulheres são Arraignment of Lewed, Idle, Forward, Inconstant Women (1615) A denúncia de mulheres indecentes, ociosas, descaradas e inconstantes, de John Swetnam, e The Parliament of Women (1646) Parlamento de mulheres, uma sátira dirigida basicamente contra as mulheres de classe média, que as retrata muito ocupadas criando leis para conquistar a supremacia sobre seus maridos.74 No mesmo período, foram introduzidas novas leis e novas formas de tortura destinadas a controlar o comportamento das mulheres dentro e fora de casa, o que confirma que o vilipêndio literário das mulheres expressava um projeto político preciso com o objetivo de deixá-las sem autonomia nem poder social. Na Europa da Era da Razão, eram colocadas focinheiras nas mulheres acusadas de serem desbocadas, como se fossem cachorros, e elas eram exibidas pelas ruas; as prostitutas eram açoitadas ou enjauladas e submetidas a simulações de afogamentos, ao passo que se instaurava pena de morte para mulheres condenadas por adultério (Underdown, 1985a, p. 117 e ss.).

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Frontispício de Parliament of Women (Parlamento das Mulheres, 1646), obra típica da sátira anti-mulheres que dominou a literatura inglesa no período da Guerra Civil. No frontispício se lê: “Parlamento das Mulheres. Com as alegres leis recentemente aprovadas por elas. Para viver com maior facilidade, pompa, orgulho e indecência: mas especialmente para que elas possam ter superioridade e dominar seus maridos: com um novo modo encontrado por elas de curar qualquer corno velho ou novo, e como as duas partes podem recuperar sua honra e honestidade novamente”.

Não é exagero dizer que as mulheres eram tratadas com a mesma hostilidade e senso de distanciamento que se concedia aos “índios selvagens” na literatura que produzida depois da conquista colonial. O paralelismo não é casual. Em ambos os casos, a depreciação literária e cultural estava a serviço de um projeto de expropriação. Como veremos, a demonização dos povos indígenas americanos serviu para justificar sua escravização e o saque de seus recursos. Na Europa, o ataque travado contra as mulheres justificou a apropriação de seu trabalho pelos homens e a criminalização de seu controle sobre a reprodução. Sempre, o preço da resistência era o extermínio. Nenhuma das táticas empregadas contra as mulheres europeias e os súditos coloniais poderia ter obtido êxito se não tivessem sido sustentadas por uma campanha de terror. No caso das mulheres europeias, foi a caça às bruxas que exerceu o papel principal na construção de sua nova função social e na degradação de sua identidade social.

A definição das mulheres como seres demoníacos e as práticas atrozes e humilhantes a que muitas delas foram submetidas deixou marcas indeléveis em sua psique coletiva e em seu senso de possibilidades. De todos os pontos de vista — social, econômico, cultural, político — a caça às bruxas foi um momento decisivo na vida das mulheres; foi o equivalente à derrota histórica a que alude Engels na obra A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884), como causa do desmoronamento do mundo matriarcal, visto que a caça às bruxas destruiu todo um universo de práticas femininas, relações coletivas e sistemas de conhecimento que haviam sido a base do poder das mulheres na Europa pré-capitalista, assim como a condição necessária para sua resistência na luta contra o feudalismo.

A partir desta derrota, surgiu um novo modelo de feminilidade: a mulher e esposa ideal — passiva, obediente, parcimoniosa, de poucas palavras, sempre ocupada com suas tarefas e casta. Esta mudança começou no final do século XVII, depois de as mulheres terem sido submetidas a mais de dois séculos de terrorismo de Estado. Uma vez que as mulheres foram derrotadas, a imagem da feminilidade construída na “transição” foi descartada como uma ferramenta desnecessária e uma nova, domesticada, ocupou seu lugar. Embora na época da caça às bruxas as mulheres tenham sido retratadas como seres selvagens, mentalmente débeis, de desejos insaciáveis, rebeldes, insubordinadas, incapazes de se controlarem, no século XVIII, o cânone foi revertido. Agora, as mulheres eram retratadas como seres passivos, assexuados, mais obedientes e morais que os homens, capazes de exercer uma influência positiva sobre eles. Até mesmo sua irracionalidade podia ser valorizada, como constatou o filósofo holandês Pierre Bayle em seu Dictionnaire historique et critique (1740) Dicionário histórico e crítico, no qual elogiou o poder do “instinto materno” feminino, defendendo que devia ser visto como um mecanismo providencial, que assegurava que as mulheres continuassem se reproduzindo, apesar das desvantagens do parto e da criação de filhos.
Colonização, globalização e mulheres

Enquanto a resposta à crise populacional na Europa foi a subjugação das mulheres à reprodução, na América colonial, onde a colonização destruiu 95% da população nativa, a resposta foi o tráfico de escravos, capaz de prover a classe dominante europeia com uma quantidade imensa de mão de obra.

Já no século XVI, aproximadamente um milhão de escravos africanos e trabalhadores indígenas estavam produzindo mais-valia para a Espanha na América colonial, com uma taxa de exploração muito mais alta que a dos trabalhadores na Europa, contribuindo em setores da economia europeia que estavam se desenvolvendo numa direção capitalista (Blaut, 1992a, p. 45-6).75 Em 1600, somente o Brasil exportava o dobro de valor em açúcar que toda a lã que a Inglaterra exportou no mesmo ano (ibidem, p. 42). A taxa de acumulação era tão alta nas plantações de açúcar brasileiras que a cada dois anos duplicavam sua capacidade. A prata e o ouro também tiveram um papel fundamental na solução da crise capitalista. O ouro importado do Brasil reativou o comércio e a indústria na Europa (De Vries, 1976, p. 20). Eram importadas mais de 17.000 toneladas em 1640, que davam à classe capitalista uma vantagem excepcional quanto ao acesso a trabalhadores, mercadorias e terra (Blaut, 1992a, p. 38-40). Contudo, a verdadeira riqueza era o trabalho acumulado por meio do tráfico de escravos, que tornou possível um modo de produção que não poderia ser imposto na Europa.

É sabido atualmente que o sistema de plantation alimentou a Revolução Industrial, como defendido por Eric Williams, que destacou que dificilmente um tijolo em Liverpool e Bristol tenha sido colocado sem sangue africano (1944, p. 61-3). No entanto, o capitalismo não poderia sequer ter decolado sem a “anexação da América” e sem “sangue e suor” que durante dois séculos fluiu das plantations para a Europa. Devemos enfatizar essa questão na medida em que ela nos ajuda a perceber o quão essencial a escravidão foi para a história do capitalismo e por que, periódica, mas sistematicamente, sempre que o sistema capitalista se vê ameaçado por uma grande crise econômica, a classe capitalista tem que pôr em marcha um processo de “acumulação primitiva”, isto é, um processo de colonização e escravidão em grande escala, como o que testemunhamos atualmente (Bales, 1999).

O sistema de plantations foi decisivo para o desenvolvimento capitalista não somente pela imensa quantidade de mais-trabalho que se acumulou a partir dele, mas também porque estabeleceu um modelo de administração do trabalho, de produção voltada para a exportação, de integração econômica e de divisão internacional do trabalho, que desde então tornou-se o paradigma das relações de classe capitalistas.

Com sua imensa concentração de trabalhadores e uma mão de obra cativa, arrancada de sua terra, que não podia confiar no apoio local, a plantation prefigurou não apenas a fábrica, mas também o uso posterior da imigração e a globalização voltada a reduzir os custos do trabalho. Em particular, a plantation foi um passo crucial na formação de uma divisão internacional do trabalho que (por meio da produção de “bens de consumo”) integrou o trabalho dos escravos na reprodução da força de trabalho europeia, ao mesmo tempo em que mantinha os trabalhadores escravizados e assalariados geográfica e socialmente separados.

A produção colonial de açúcar, chá, tabaco, rum e algodão – as mercadorias mais importantes, junto com o pão, para a reprodução da força de trabalho na Europa – não se desenvolveu em grande escala até depois do decênio de 1650, após a escravidão ter sido institucionalizada e os salários terem começado a aumentar (modestamente) (Rowling, 1987, p. 51, 76, 85). Devemos mencionar aqui, no entanto, que, quando finalmente a produção se desenvolveu, foram introduzidos dois mecanismos que reestruturaram de forma significativa a reprodução do trabalho em nível internacional. De um lado, foi criada uma linha de montagem global, que reduziu o custo das mercadorias necessárias para produzir a força de trabalho na Europa e que conectou os trabalhadores escravizados e assalariados por meio de modalidades que anteciparam o uso que o capitalismo faz atualmente dos trabalhadores asiáticos, africanos e latino-americanos como provedores de produtos de “bens de consumo” “baratos” (barateados devido aos esquadrões da morte e pela violência militar) para os países capitalistas “avançados”.

Por outro lado, nas metrópoles, o salário se tornou um veículo pelo qual os bens produzidos pelos trabalhadores escravizados iam parar no mercado, isto é, um veículo por meio do qual os produtos do trabalho escravo realizavam seu valor. Desta forma, assim como ocorria com o trabalho doméstico feminino, a integração do trabalho escravo na produção e na reprodução da força de trabalho metropolitana foi progressivamente consolidada. O salário se redefiniu claramente como instrumento de acumulação, isto é, como alavanca para mobilizar não somente o trabalho dos trabalhadores pagos com ele, mas também o trabalho de uma multidão de trabalhadores que ficava oculto, devido a suas condições não salariais.

Os trabalhadores na Europa sabiam que estavam comprando produtos que resultavam do trabalho escravo e, em caso positivo, se opunham a isso? Essa é uma pergunta que gostaríamos de fazer a eles, mas que não posso responder. O certo é que a história do chá, do açúcar, do rum, do tabaco e do algodão é muito mais importante para o surgimento do sistema fabril do que podemos deduzir da contribuição que essas mercadorias tiveram enquanto matérias-primas ou meios de troca no tráfico de escravos. Isso porque o que viajava com estas “exportações” não era apenas o sangue dos escravos, mas também as sementes de uma nova ciência da exploração e de uma nova divisão da classe trabalhadora, pela qual o trabalho assalariado, mais que oferecer uma alternativa ao trabalho escravo, foi transformado em dependente da escravidão, enquanto mecanismo para ampliar a parte não remunerada do dia de trabalho assalariado (da mesma maneira que o trabalho feminino não remunerado).

As vidas dos trabalhadores escravizados na América e as dos assalariados na Europa estavam tão estreitamente conectadas que nas ilhas do Caribe, onde se davam aos escravos porções de terra (“provision grounds”)76 para que cultivassem para seu próprio consumo – a quantidade de terra alocadas a eles e a quantidade de tempo que lhes era dado para cultivá-las variavam proporcionalmente ao preço do açúcar no mercado mundial (Morrissey, 1989, p. 51-9), que provavelmente era determinado pela dinâmica dos salários dos trabalhadores e sua luta pela reprodução.

No entanto, seria um erro concluir que a integração do trabalho escravo na produção do proletariado assalariado europeu criou uma comunidade de interesses entre os trabalhadores europeus e os capitalistas das metrópoles, presumivelmente consolidada pelo seu desejo comum de bens importados baratos.

Na realidade, assim como a conquista colonial, o tráfico de escravos foi uma desgraça histórica para os trabalhadores europeus. Como vimos, a escravidão (bem como a caça às bruxas) foi um imenso laboratório para se experimentarem métodos de controle do trabalho que logo foram importados à Europa. A escravidão afetou também os salários e a situação legal dos trabalhadores europeus; pois não pode ser coincidência que só quando terminou a escravidão é que os salários na Europa aumentaram consideravelmente e os trabalhadores europeus conquistaram o direito de se organizarem.

Também é difícil de imaginar que os trabalhadores na Europa lucraram com a conquista colonial da América, pelo menos em sua fase inicial. Lembremos que a intensidade da luta antifeudal foi o que instigou a nobreza menor e os comerciantes a buscar a expansão colonial e que os conquistadores saíram das fileiras dos inimigos mais odiados da classe trabalhadora europeia. Também é importante lembrar que a conquista colonial forneceu às classes dominantes a prata e o ouro que elas usaram para pagar os exércitos mercenários que derrotaram as revoltas urbanas e rurais e que, nos mesmos anos em que os aruaques, astecas e incas eram subjugados, os trabalhadores e trabalhadoras na Europa eram expulsos de suas casas, marcados como animais e queimadas como bruxas.

Não devemos supor, então, que o proletariado europeu foi sempre cúmplice do saque na América, embora, indubitavelmente, tenha havido proletários que, de forma individual, o foram. A nobreza esperava tão pouca cooperação das “classes baixas” que, inicialmente, os espanhóis apenas permitiam que uns poucos embarcassem. Somente oito mil espanhóis imigraram legalmente à América durante todo o século XVI, dos quais o clero representava 17% (Hamilton, 1965, p. 299; Williams, 1984, p. 38-40). Até mesmo posteriormente, as pessoas foram proibidas de formarem assentamentos no exterior de forma independente, devido ao temor de que pudessem colaborar com a população local.

Para a maioria dos proletários, durante os séculos XVII e XVIII, o acesso ao Novo Mundo foi realizado por meio da servidão por dívidas e pelo “degredo”, a punição que as autoridades inglesas adotaram para livrar o país dos condenados, dissidentes políticos e religiosos e uma vasta população de vagabundos e mendigos gerada por causa dos cercamentos. Como Peter Linebaugh e Marcus Rediker destacam, em The Many-Headed Hydra (2000) A hidra de muitas cabeças, o medo que tinham os colonizadores da migração sem restrições estava bem fundamentado, dadas as condições de vida miseráveis que prevaleciam na Europa e a atração que exerciam as notícias que circulavam sobre o Novo Mundo, mostrando-o como uma terra milagrosa em que as pessoas viviam livres da labuta e da tirania, dos senhores feudais e da ganância e onde não havia lugar para “meu” e “seu”, já que todas as coisas eram possuídas coletivamente (Linebaugh e Rediker, 2000; Brandon 1986, p. 6-7). A atração que o Novo Mundo exercia era tão forte que a visão da nova sociedade que ela oferecia, aparentemente, influenciou o pensamento político do Iluminismo, contribuindo para a emergência de um novo sentido da noção de “liberdade” como ausência de um amo, uma ideia que antes era desconhecida para a teoria política europeia (Brandon, 1986, p. 23-8). Não é de se surpreender que alguns europeus tentaram “perder-se” neste mundo utópico onde, como Linebaugh e Rediker afirmam de modo contundente, poderiam reconstruir a experiência perdida das terras comunais (2000, p. 24). Alguns viveram durante anos com as tribos indígenas, apesar das restrições que sofriam aqueles que se estabeleciam nas colônias americanas e o alto preço que pagavam aqueles que eram pegos, já que os que escapavam eram tratados como traidores e executados. Este foi o destino de alguns dos colonos ingleses na Virgínia, que quando foram pegos, depois de terem fugido para viver com os indígenas, foram condenados pelos conselheiros da colônia a serem “queimados, quebrados na roda […] [e] enforcados ou fuzilados” (Koning, 1993, p. 61). “O terror criava fronteiras”, comentam Linebaugh e Rediker (2000, p. 34). No entanto, em 1699, os ingleses continuavam tendo dificuldades para convencer aqueles que os indígenas haviam tornado cativos a abandonarem seu modo de vida indígena.

Nenhum argumento, nenhuma súplica, nenhuma lágrima como comentava um contemporâneo […] eram capazes de persuadir muitos deles a abandonarem seus amigos indígenas. Por outro lado, crianças indígenas foram educadas cuidadosamente entre os ingleses, vestidas e ensinadas e, mesmo assim, não há nenhum caso de algum que tenha ficado com eles, mas sim que voltaram para suas próprias nações (Koning, 1993, p. 60).

Também para os proletários europeus, que se “vendiam” devido à servidão por dívidas, ou chegavam ao Novo Mundo para cumprir uma sentença penal, a sorte não foi muito diferente, a princípio, do destino dos escravos africanos, com quem frequentemente trabalhavam lado a lado. A hostilidade por seus senhores era igualmente intensa, de modo que os donos das plantations os viam como um grupo perigoso e, na segunda metade do século XVII, começaram a limitar seu uso, introduzindo uma legislação destinada a separá-los dos africanos. No entanto, no final do século XVIII, as fronteiras raciais foram irrevogavelmente traçadas (Moulier Boutang, 1998). Até então, a possibilidade de alianças entre brancos, negros e aborígenes, bem como o medo dessa união na imaginação da classe dominante europeia, tanto na sua terra quanto nas plantations, estava constantemente presente. Shakespeare deu voz a isso n’A Tempestade (1612), em que imaginou a conspiração organizada por Calibã, o rebelde nativo, filho de uma bruxa, e por Trínculo e Estéfano, os proletários europeus que se lançam a viagens marítimas, sugerindo a possibilidade de uma aliança fatal entre os oprimidos e dando um contraponto dramático à capacidade mágica de Próspero curar a discórdia entre os governantes.

Em A Tempestade, a conspiração termina, desgraçadamente, com os proletários europeus demonstrando que não eram nada mais que ladrõezinhos insignificantes e bêbados e com Calibã suplicando pelo perdão de seu senhor colonial. Assim, quando os rebeldes derrotados são levados diante de Próspero e seus antigos inimigos, Sebastião e Antônio (agora reconciliados com ele), eles se encontram com escárnio e pensamentos de propriedade e divisão:

SEBASTIÃO — Ah! Ah! Que coisas ora nos surgem, meu senhor Antônio? Poderemos comprá-las com dinheiro?

ANTÔNIO — Decerto poderemos; uma delas é puro peixe e, sem nenhuma dúvida, vendável no mercado.

PRÓSPERO — Vede apenas, senhores, as roupagens destes homens. Dizei-me agora se eles são honestos. Esse tipo disforme que ali vedes, teve por mãe uma terrível bruxa, e de poder tão grande que até mesmo na lua tinha influência, e provocava marés e baixa-marés, realizando da lua o ofício, sem o poder dela. Esses três indivíduos me roubaram; e aquele meio-diabo — pois é filho bastardo, já se vê — tramou com eles assassinar-me. Dois desses marotos são vossos conhecidos; este bloco de escuridão é minha propriedade.

(Shakespeare, A Tempestade, Ato V, Cena I, linhas 265-276)77

No entanto, fora de cena essa ameaça continuava. “Tanto nas Bermudas quanto em Barbados, os servos foram descobertos conspirando junto aos escravos africanos, ao passo que, na década de 1650, milhares de condenados eram levados em embarcações das Ilhas Britânicas até lá” (Rowling, 1987, p. 57). Na Virgínia, o auge da aliança entre os servos negros e brancos foi a Rebelião de Bacon, de 1675-1676, quando os escravos africanos e os servos por dívidas se uniram para conspirar contra seus senhores.

É por essa razão que, a partir da década de 1640, a acumulação de um proletariado escravizado nas colônias do sul dos Estados Unidos e do Caribe foi acompanhada pela construção de hierarquias raciais, frustrando a possibilidade de tais combinações. Foram aprovadas leis que privavam os africanos de direitos civis que, anteriormente, lhes haviam sido concedidas, como a cidadania, o direito de portar armas e o direito de fazer declarações ou buscar ressarcimentos perante um tribunal pelos danos que pudessem sofrer. O momento decisivo se deu quando a escravidão foi transformada em condição hereditária e foi dado aos senhores de escravos o direito de espancá-los e matá-los. Além disso, os casamentos entre “negros” e “brancos” foram proibidos. Mais tarde, depois da Guerra de Independência dos Estados Unidos, a servidão dos brancos por dívidas, considerada um vestígio do domínio inglês, foi eliminada. Como resultado, no final do século XVIII, as colônias da América do Norte haviam passado de “uma sociedade com escravos para uma sociedade escravista” (Moulier Boutang, 1998, p. 189) e a possibilidade de solidariedade entre africanos e brancos havia sido seriamente enfraquecida. “Branco”, nas colônias, tornou-se não apenas uma distinção de privilégio social e econômico, que “servia para designar aqueles que, até 1650, tinham sido chamados de ‘cristãos’ e, depois, de ‘ingleses’ ou ‘homens livres’” (ibidem, p. 194), mas também um atributo moral, um meio pelo qual a hegemonia foi naturalizada. Por outro lado, “negro” e “africano” passaram a ser sinônimos de escravo, até o ponto de as pessoas negras livres – que ainda representavam considerável parcela da população norte-americana durante o século XVII – se viram forçadas, mais adiante, a provarem que eram livres.

Sexo, raça e classe nas colônias

Poderia ter sido diferente o resultado da conspiração de Calibã, se seus protagonistas tivessem sido mulheres? E se os rebeldes não tivessem sido Calibã, mas Sycorax, sua mãe, a poderosa bruxa argelina, que Shakespeare oculta no segundo plano da peça, ou se ao invés de Trínculo e Estéfano, fossem as irmãs das bruxas que, na mesma época da conquista colonial, estavam sendo queimadas na fogueira na Europa?

Essa é uma pergunta retórica, mas serve para questionar a natureza da divisão sexual do trabalho nas colônias e dos laços que podiam ser estabelecidos ali entre as mulheres europeias, indígenas e africanas, em virtude de uma experiência comum de discriminação sexual.

Em I, Tituba, Black Witch of Salem (1992) Eu, Tituba, a bruxa negra de Salém, Maryse Condé nos permite compreender bem o tipo de situação que podia gerar esse laço quando descreve como Tituba e sua nova senhora, a jovem esposa do puritano Samuel Parris, a princípio, se apoiaram mutuamente contra o ódio assassino de seu marido pelas mulheres.

Um exemplo ainda mais extraordinário vem do Caribe, onde as mulheres inglesas de classe baixa “degredadas” da Grã-Bretanha como condenadas ou servas por dívidas tornaram-se uma parte significativa das turmas de trabalho sob comando unificado nas fazendas açucareiras. “Consideradas inadequadas para o casamento pelos homens brancos proprietários e desqualificadas para o trabalho doméstico” pela sua insolência e temperamento arruaceiro, “as mulheres brancas sem-terra eram relegadas ao trabalho manual nas plantations, às obras públicas e ao setor de serviços urbanos. Nesse universo, se sociabilizavam intimamente com a comunidade escrava e com homens negros escravizados”. Formavam lares e tinham filhos com eles (Beckles, 1995, p. 131-32). Também cooperavam e competiam com as escravas na venda de produtos cultivados ou artigos roubados.

Entretanto, com a institucionalização da escravatura, que veio acompanhada por uma diminuição da carga laboral para os trabalhadores brancos e por uma queda no número de mulheres vindas da Europa como esposas para os fazendeiros, a situação mudou drasticamente. Fosse qual fosse sua origem social, as mulheres brancas ascenderam de categoria, ou dadas em casamento, dentro das classes mais altas do poder branco. E, quando se tornou possível, elas também tornaram-se donas de escravos, geralmente de mulheres, empregadas para realizar o trabalho doméstico (ibidem).78

No entanto, este processo não foi automático. Assim como o sexismo, o racismo teve que ser legislado e imposto. Dentre as proibições mais reveladoras, devemos, mais uma vez, levar em conta que o casamento e as relações sexuais entre negros e brancos foram proibidos. As mulheres brancas que se casaram com escravos negros foram condenadas e os filhos gerados desses casamentos foram escravizados pelo resto de suas vidas. Estas leis, aprovadas em Maryland e na Virginia, na década de 1660, são provas da criação de cima para baixo de uma sociedade segregada e racista e que as relações íntimas entre “negros” e “brancos” deveriam ser, efetivamente, muito comuns, se para acabar com elas considerou-se necessário recorrer à escravização perpétua.

Como se seguissem o roteiro estabelecido para a caça às bruxas, as novas leis demonizavam a relação entre mulheres brancas e homens negros. Quando foram aprovadas, na década de 1660, a caça às bruxas na Europa estava chegando a seu fim, mas nas colônias inglesas que logo se tornariam os Estados Unidos, todos os tabus que rodeavam as bruxas e os demônios negros estavam sendo revividos, desta vez às custas dos homens negros.

“Dividir e conquistar” também se tornou a política oficial nas colônias espanholas, depois de um período em que a inferioridade numérica dos colonos sugeria uma atitude mais liberal perante as relações interétnicas e as alianças com os chefes locais por meio do matrimônio. No entanto, na década de 1540, na medida em que o aumento na quantidade de mestizos debilitava o privilégio colonial, a “raça” foi instaurada como um fator chave na transmissão da propriedade e uma hierarquia racial foi estabelecida para separar indígenas, mestizos e mulattos uns dos outros e da população branca (Nash, 1980).79 As proibições em relação ao casamento e à sexualidade feminina, aqui também serviram para impor a exclusão social. Entretanto, na América Hispânica, a segregação por raças foi apenas parcialmente bem sucedida, devido à migração, à diminuição da população, às rebeliões indígenas e à formação de um proletariado urbano branco sem perspectivas de melhora econômica e, portanto, propenso a se identificar com os mestizos e mulattos mais do que com os brancos de classe alta. Por isso, enquanto nas sociedades baseadas no regime de plantation do Caribe as diferenças entre europeus e africanos aumentaram com o tempo, nas colônias sul-americanas se tornou possível uma certa “recomposição”, especialmente entre as mulheres de classe baixa europeias, mestizas e africanas que, além de sua precária posição econômica, compartilhavam as desvantagens derivadas da dupla moral incorporada na lei, que as tornava vulneráveis ao abuso masculino.

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Uma escrava sendo marcada a ferro quente. Nos processos por bruxaria na Europa, a “marca do demônio” nas mulheres havia figurado de modo proeminente como um símbolo de sujeição total. Mas na realidade, os verdadeiros demônios eram os traficantes de escravos e os donos de terra brancos que (como os homens nesta imagem) não hesitavam tratar como gado as mulheres que escravizavam.

É possível encontrar sinais dessa “recomposição” nos arquivos da Inquisição sobre as investigações que realizou no México, durante o século XVIII, para erradicar as crenças mágicas e heréticas (Behar, 1987, p. 34-51). A tarefa era impossível e logo a própria Inquisição perdeu o interesse no projeto, convencida a essa altura que a magia popular não era uma ameaça para a ordem política. Os testemunhos que recolheu revelam, no entanto, a existência de numerosos intercâmbios entre mulheres no tocante a temas relacionados a curas mágicas e remédios para o amor, criando com o tempo uma nova realidade cultural extraída do encontro entre tradições mágicas africanas, europeias e indígenas. Como afirma Ruth Behar (ibidem):

As mulheres indígenas davam beija-flores às curandeiras espanholas para que os usassem para atração sexual, as mulattas ensinaram as mestizas a domesticar seus maridos, uma feiticeira loba contou sobre o Demônio a uma coiote. Este sistema “popular” de crenças era paralelo ao sistema de crenças da Igreja e se propagou tão rápido quanto o cristianismo pelo Novo Mundo, de tal forma que, depois de um tempo tornou-se impossível distinguir nele o que era “indígena” e o que era “espanhol” ou “africano”.80

Entendidas, pela visão da Inquisição, como gente “carente de razão”, este universo feminino multicolorido descrito por Ruth Behar é um exemplo contundente das alianças que, para além das fronteiras coloniais e de cores, as mulheres podiam construir em virtude de sua experiência comum e de seu interesse em compartilhar os conhecimentos e práticas tradicionais que estavam ao seu alcance para controlar sua reprodução e combater a discriminação sexual.

Como a discriminação estabelecida pela “raça”, a discriminação sexual era mais que uma bagagem cultural que os colonizadores trouxeram da Europa com suas lanças e cavalos. Tratava-se, nada mais, nada menos, do que da destruição da vida comunitária, uma estratégia ditada por um interesse econômico específico e pela necessidade de criarem-se as condições para uma economia capitalista e, como tal, sempre ajustada à tarefa imediatamente à mão no momento.

No México e no Peru, onde o declínio populacional sugeria o incentivo do trabalho doméstico feminino, uma nova hierarquia sexual foi introduzida pelas autoridades espanholas, que privou as mulheres indígenas de sua autonomia e deu a seus familiares homens mais poder sobre elas. Sob as novas leis, as mulheres casadas tornaram-se propriedade dos homens e foram forçadas (contra o costume tradicional) a seguir seus maridos às casas deles. Foi criado também um sistema compadrazgo, que limitava ainda mais seus direitos, colocando nas mãos masculinas a autoridade sobre as crianças. Além disso, para assegurar que as mulheres indígenas reproduzissem os trabalhadores recrutados para realizar o trabalho de mita nas minas, as autoridades espanholas promulgaram leis que dispunham que ninguém poderia separar marido e mulher, o que significava que as mulheres seriam forçadas a seguir seus maridos, gostando ou não, inclusive para zonas que eram sabidamente campos de extermínio, devido à poluição criada pela mineração (Cook Noble, 1981, p. 205-06).81

A intervenção dos jesuítas franceses na disciplina e treinamento dos innus, no Canadá, durante meados do século XVII, nos dá um exemplo revelador de como se acumulavam as diferenças de gênero. Esta história foi relatada pela antropóloga Eleanor Leacock em seus Myths of Male Dominance (1981) Mitos da dominação masculina, em que examina o diário de um de seus protagonistas. Este era o padre Paul Le Jeune, um missionário jesuíta que, fazendo algo tipicamente colonial, havia se juntado a um posto comercial francês para cristianizar os índios, transformando-os em cidadãos da “Nova França”. Os innus eram uma nação indígena nômade, que havia vivido em grande harmonia, caçando e pescando na zona oriental da Península do Labrador. Porém, na época em que Le Jeune chegou, a comunidade vinha sendo debilitada pela presença de europeus e pela difusão do comércio de peles, de tal maneira que alguns homens, ávidos por estabelecer uma aliança comercial com eles, pareciam estar tranquilos em deixar que os franceses determinassem de que forma deveriam ser governados (Leacock, 1981, p. 39 e ss.).

Como ocorreu com frequência quando os europeus entraram em contato com as populações indígenas americanas, os franceses estavam impressionados pela generosidade dos innus, por seu senso de cooperação e pela sua indiferença com relação ao status, mas se escandalizavam com sua “falta de moralidade”. Observaram que os innus careciam de concepções como propriedade privada, autoridade, superioridade masculina e, inclusive, recusavam-se a castigar seus filhos (Leacock, 1981, p. 34-8). Os jesuítas decidiram mudar tudo isso, propondo-se a ensinar aos indígenas os elementos básicos da civilização, convencidos de que era necessário para transformá-los em sócios comerciais de confiança. Nesse espírito, eles primeiro ensinaram-lhes que “o homem é o senhor”, que “na França, as mulheres não mandam em seus maridos” e que buscar romances à noite, divorciar-se quando qualquer dos parceiros desejasse e a liberdade sexual para ambos, antes ou depois do casamento, eram coisas que deviam ser proibidas. Essa é uma conversa que Le Jeune teve sobre essas questões com um homem innu:

“Eu disse-lhe que não era honrável para uma mulher amar a qualquer um que não fosse seu marido e que, com este mal pairando, ele não poderia ter certeza de que seu filho era realmente seu. Ele respondeu, ‘Não tens juízo. Vocês franceses amam apenas a seus filhos, mas nós amamos a todos os filhos de nossa tribo’. Comecei a rir, vendo que ele filosofava como os cavalos ou as mulas”. (ibidem, 50)

Apoiados pelo governador da Nova França, os jesuítas conseguiram convencer os innus a providenciarem eles mesmos alguns chefes e pusessem em ordens “suas” mulheres. Como era costume, uma das armas usadas foi insinuar que as mulheres independentes demais, que não obedeciam a seus maridos, eram criaturas do demônio. Quando as mulheres innus fugiram, revoltadas pelas tentativas por parte dos homens de submetê-las, os jesuítas persuadiram os homens a correrem atrás delas e ameaçarem aprisioná-las:

“Atos de justiça como estes” – comentou orgulhoso Le Jeune numa ocasião particular – “não causam surpresa na França, porque lá é comum que as pessoas ajam dessa forma, mas entre essa gente (…), onde todos se consideram livres, desde o nascimento, como animais selvagens que os rodeiam nas grandes florestas (…), é uma maravilha, ou talvez um milagre, ver um comando peremptório sendo obedecido ou um ato de severidade ou de justiça”. (ibidem, 54)

A maior vitória dos jesuítas foi, no entanto, persuadir os innus a baterem em seus filhos, por acreditarem que o excesso de carinho que os “selvagens” tinham por seus filhos fosse o principal obstáculo para sua cristianização. O diário de Le Jeune registra a primeira ocasião em que uma menina foi espancada publicamente, enquanto um de seus familiares passava um sermão assustador aos presentes sobre o significado histórico do acontecimento: “este é o primeiro castigo a golpes (diz ele) que infligimos a alguém de nosso povo…” (ibidem, p. 54-5).

Os homens innus receberam seu treinamento sobre supremacia masculina pelo fato de que os franceses queriam inculcar-lhes o “instinto” da propriedade privada, para induzi-los a se tornarem sócios confiáveis no comércio de peles. A situação nas plantations era muito diferente, onde a divisão sexual do trabalho era imediatamente ditada pelas demandas da força de trabalho dos agricultores e pelo preço das mercadorias produzidas pelos escravos no mercado internacional.

Até a abolição do tráfico de escravos, como foi documentado por Barbara Bush e Marietta Morrissey, tanto as mulheres como os homens eram submetidos ao mesmo grau de exploração; os agricultores achavam mais lucrativo fazer trabalhar e “consumir” os escravos até a morte do que estimular sua reprodução. Nem a divisão sexual do trabalho, nem as hierarquias sexuais eram, então, pronunciadas. Os homens africanos não podiam decidir nada sobre o destino de suas companheiras e familiares, enquanto para as mulheres, longe de lhes ser dada consideração especial, esperava-se que elas trabalhassem nos campos assim como os homens, especialmente quando a demanda de açúcar e tabaco era alta, e elas estavam sujeitas aos mesmos castigos cruéis, mesmo quando estavam grávidas (Bush, 1990, p. 42-4).

Ironicamente, então, parecia que na escravidão as mulheres “conquistaram” uma dura igualdade com os homens de sua classe (Momsen, 1993). Entretanto, nunca foram tratadas de forma igual. Dava-se menos comida às mulheres; diferentemente dos homens, elas eram vulneráveis aos ataques sexuais de seus senhores; e eram-lhes infligidos castigos mais cruéis, já que, além da agonia física, tinham que suportar a humilhação sexual que sempre lhes acompanhavam, além dos danos aos fetos que traziam dentro de si quando estavam grávidas.

Uma nova página se abriu, por outro lado, depois de 1807, quando foi abolido o comércio de escravos e os fazendeiros do Caribe e dos Estados Unidos adotaram uma política de “criação de escravos”. Como destaca Hilary Beckles, com relação à ilha de Barbados, os proprietários de plantations tentavam controlar os hábitos reprodutivos das escravas desde o século XVII, “encorajando as a terem mais ou menos filhos num determinado lapso de tempo”, dependendo de quanto trabalho era necessário no campo. Porém, a regulação das relações sexuais e dos hábitos reprodutivos das mulheres tornou-se mais sistemática e intensa somente quando diminuiu o fornecimento de escravos africanos (Beckles, 1989, p. 92).

Na Europa, a coação de mulheres à procriação havia levado à imposição da pena de morte pelo uso de contraceptivos. Nas plantations, onde os escravos estavam se transformando numa mercadoria valiosa, a mudança para uma política de criação tornou as mulheres mais vulneráveis aos ataques sexuais, embora tenha levado a certas “melhorias” nas suas condições de trabalho: foram reduzidas as horas de trabalho, construíram-se casas de parto, ofereceram-se parteiras para assistirem o parto, expandiram-se os direitos sociais (por exemplo, de viagem e de reunião) (Beckles, 1989, p. 99-100; Bush, 1990, p. 135). No entanto, essas mudanças não eram capazes de reduzir os danos infligidos contra as mulheres pelo trabalho nos campos, nem a amargura que experimentavam por sua falta de liberdade. Com exceção de Barbados, a tentativa dos fazendeiros de expandir a força de trabalho por meio da “reprodução natural” fracassou e as taxas de natalidade nas plantations continuaram sendo “anormalmente baixas” (Bush, p. 136-37; Beckles, 1989, ibidem). Se este fenômeno foi uma consequência de uma categórica resistência à perpetuação da escravidão ou uma consequência da debilidade física produzida pelas duras condições a que estavam submetidas as mulheres escravizadas, ainda é matéria de debate (Bush, 1990, p. 143 e segs.). Entretanto, como afirma Bush, há boas razões para crer que o principal motivo do fracasso se deveu à recusa das mulheres a procriar, pois logo que a escravidão foi erradicada, mesmo quando suas condições econômicas se deterioraram de certa forma, as comunidades de escravos libertos começaram a crescer (Bush, 1990).82

A recusa das mulheres quanto à vitimização também reconfigurou a divisão sexual do trabalho, assim como ocorreu nas ilhas do Caribe, onde as mulheres escravizadas tornaram-se semilibertas vendedoras de produtos que elas cultivavam nas “roças” (chamadas de polink na Jamaica), entregues pelos fazendeiros aos escravos para que pudessem se sustentar. Os fazendeiros adotaram esta medida para economizar no custo da reprodução de mão de obra. Porém, o acesso às “roças” também demonstrou ser vantajoso para os escravos; deu-lhes maior mobilidade e a possibilidade de usar o tempo destinado para seu cultivo em outras atividades. O fato de poder produzir pequenos cultivos, que podiam ser consumidos ou vendidos, deu impulso à sua independência. As mais empenhadas no sucesso das “roças” foram as mulheres que comercializavam a colheita, reapropriando-se e reproduzindo – dentro do sistema de plantations – as principais ocupações que realizavam na África. Uma consequência disto foi que, em meados do séculos XVIII, as mulheres escravas no Caribe haviam forjado para si um lugar na economia das plantations, contribuindo para a expansão e, até mesmo, para a criação do mercado de alimentos da ilha. Fizeram isso tanto como produtoras de grande parte dos alimentos que os escravos e a população branca consumiam, quanto como feirantes e vendedoras ambulantes das colheitas que cultivavam, complementadas com bens tomados da venda de seu senhor ou trocados com outros escravos ou, ainda, dados por seus senhores para serem por elas vendidos.

Foi a partir dessa habilidade que as escravas também entraram em contato com as proletárias brancas, que muitas vezes haviam sido servas por dívidas, embora estas últimas tenham sido liberadas do trabalho sob comando unificado e se emancipado. Seu relacionamento, às vezes, podia ser hostil: as proletárias europeias, que também sobreviviam fundamentalmente do cultivo e da venda de sua colheita de alimentos, roubavam, por vezes, os produtos que as escravas levavam ao mercado ou tentavam impedir sua venda. No entanto, ambos os grupos de mulheres colaboraram também na construção de uma vasta rede de relações de compra e venda que escapavam às leis criadas pelas autoridades coloniais, que, de tempos em tempos, se preocupavam com o fato de que estas atividades pudessem deixar as escravas fora de seu controle.

Apesar da legislação introduzida para evitar que vendessem ou que limitava os lugares em que podiam fazê-lo, as mulheres escravizadas continuaram ampliando suas atividades no mercado e o cultivo de suas “roças”, que chegaram a considerar como próprias, de tal maneira que, no final do século XVIII, estavam formando um protocampesinato que praticamente detinha o monopólio nos mercados das ilhas. Desse modo, de acordo com alguns historiadores, até mesmo antes da emancipação, a escravidão no Caribe havia praticamente terminado. As escravas – por mais inacreditável que pareça – foram uma força fundamental neste processo, já que, apesar das tentativas das autoridades de limitar seu poder, deram forma, com sua determinação, ao desenvolvimento da comunidade escrava e das economias das ilhas.

As mulheres escravizadas do Caribe também tiveram impacto decisivo na cultura da população branca, especialmente na das mulheres brancas, por meio de suas atividades como curandeiras, videntes, especialistas em práticas mágicas e no “domínio” que exerciam sobre as cozinhas, e quartos, de seus senhores (Bush, 1990).

Não é de se surpreender que elas fossem vistas como o coração da comunidade escrava. Os visitantes impressionavam-se com seus cantos, seus turbantes, seus vestidos e sua maneira extravagante de falar, que, segundo se entende agora, eram os meios pelos quais contavam para satirizar seus senhores. As mulheres africanas e creoles influenciaram os costumes das mulheres brancas pobres, que, de acordo com a descrição de um contemporâneo, se comportavam como africanas, caminhando com os filhos amarrados aos quadris, enquanto equilibravam bandejas de produtos em suas cabeças (Beckles, 1989, p. 81). No entanto, sua principal conquista foi o desenvolvimento de uma política de autossuficiência, que tinha como base as estratégias de sobrevivência e as redes de mulheres. Estas práticas e os valores a elas ligados, que Rosalyn Terborg Penn (1995, p. 3-7) identificou como os princípios fundamentais do feminismo africano contemporâneo, redefiniram a comunidade africana da diáspora. Elas criaram não apenas as bases de uma nova identidade feminina africana, mas também as bases para uma nova sociedade comprometida – contra a tentativa capitalista de impor a escassez e a dependência como condições estruturais de vida – com a reapropriação e a concentração nas mãos das mulheres dos meios fundamentais de subsistência, começando pela terra, pela produção de alimentos e pela transmissão intergeracional de conhecimento e cooperação.

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Uma reunião festiva em uma fazenda caribenha. As mulheres eram o coração dessas reuniões, assim como era o coração da comunidade escrava e defensoras obstinadas da cultura trazida da África. Gravura de Louis Charles Ruotte (a partir de pintura de Agostino Brunias), Dança de negros na Ilha de São Domingos (c. 1773-1779).

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Mulheres escravizadas batalhavam para continuar as atividades que exerciam originalmente na África, tais como vender os produtos que cultivavam, o que lhes permitia dar melhor amparo a suas famílias e a obter alguma autonomia. Família de escravos negros, originários do Loango, no Suriname, do livro de John Gabriel Stedman, Narrative, of a Five Years’ Expedition, against the revolted Negroes of Surinam – from the year 1772, to 1777 (Londres, 1796), vol. II. (A partir de Barbara Bush, 1990).

O capitalismo e a divisão sexual do trabalho

Como essa breve história das mulheres e da acumulação primitiva mostrou, a construção de uma nova ordem patriarcal, que tornava as mulheres servas da força de trabalho masculina, foi de fundamental importância para o desenvolvimento do capitalismo.

Sobre esta base, foi possível impor uma nova divisão sexual do trabalho, que diferenciou não somente as tarefas que as mulheres e os homens deveriam realizar, como também suas experiências, suas vidas, sua relação com o capital e com outros setores da classe trabalhadora. Deste modo, assim como a divisão internacional do trabalho, a divisão sexual foi, sobretudo, uma relação de poder, uma divisão dentro da força de trabalho, ao mesmo tempo que um imenso impulso à acumulação capitalista.

Devemos enfatizar esse ponto, dada a tendência a atribuir o salto que o capitalismo introduziu na produtividade do trabalho exclusivamente à especialização das tarefas laborais. Na verdade, as vantagens que a classe capitalista extraiu da diferenciação entre trabalho agrícola e industrial e dentro do trabalho industrial – celebrada na ode de Adam Smith à fabricação de alfinetes – atenuam-se em comparação às extraídas da degradação do trabalho e da posição social das mulheres.

Conforme defendi, a diferença de poder entre mulheres e homens e o ocultamento do trabalho não remunerado das mulheres por trás do disfarce da inferioridade natural permitiu ao capitalismo ampliar imensamente “a parte não remunerada do dia de trabalho” e usar o salário (masculino) para acumular trabalho feminino. Em muitos casos, serviram também para desviar o antagonismo de classe para um antagonismo entre homens e mulheres. Dessa forma, a acumulação primitiva foi, sobretudo, uma acumulação de diferenças, desigualdade, hierarquias e divisões que separaram os trabalhadores entre si e, inclusive, alienaram a eles mesmos.

Como vimos, os trabalhadores homens foram frequentemente cúmplices deste processo, tendo em vista que tentaram manter seu poder com relação ao capital, por meio da desvalorização e da disciplina das mulheres, das crianças e das populações colonizadas pela classe capitalista. No entanto, o poder que os homens impuseram sobre as mulheres, em virtude de seu acesso ao trabalho assalariado e sua contribuição reconhecida na acumulação capitalista, foi pago pelo preço da autoalienação e da “desacumulação primitiva” de seus poderes individuais e coletivos.

Nos próximos capítulos, procuro avançar no exame deste processo de desacumulação a partir da discussão de três aspectos chave da transição do feudalismo para o capitalismo: a constituição do corpo proletário em uma máquina de trabalho, a perseguição das mulheres como bruxas e a criação dos “selvagens” e dos “canibais”, tanto na Europa quanto no Novo Mundo.

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Gravura alemã do início do século XVII, revelando o credo anabatista na partilha comunitária de bens.

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Mattheus Merian, Os quatro cavaleiros do Apocalipse (1630).

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Frontispício de De Humani Corporis Fabrica (Pádua, 1543), de Andreas Vesalius. O triunfo da ordem patriarcal dos homens da classe dominante mediante a constituição de um novo teatro anatômico não poderia ser mais completo. Sobre a mulher dissecada e apresentada ao público, o autor nos diz que “por medo de ser enforcada, ela declarou que estava grávida”, mas depois que se descobriu que ela não estava, ela foi então enforcada. A figura feminina ao fundo (talvez uma prostituta ou uma parteira) abaixa os olhos, possivelmente envergonhada frente a obscenidade da cena e a violência implícita.

Notas
1. ↑ Peter Blickle se opõe ao conceito de uma “guerra camponesa” devido à composição social dessa revolução, que incluía muitos artesãos, mineiros e intelectuais em suas fileiras. A Guerra Camponesa combinou sofisticação ideológica (expressa nos doze “artigos” promovidos pelos rebeldes) com uma poderosa organização militar. Os doze “artigos” incluíam: rejeição à servidão; redução dos dízimos; revogação das leis contra a caça clandestina; afirmação do direito de coletar lenha; diminuição dos serviços laborais; redução das rendas; afirmação dos direitos de uso das terras comunais; e abolição dos impostos de herança (Bickle, 1985, p. 195-201). A excepcional destreza militar demonstrada pelos rebeldes dependia, em parte, da participação na revolta de soldados profissionais, incluindo a participação dos lansquenetes – os célebres soldados suíços que, nessa época, eram a elite das tropas mercenárias na Europa. Os lansquenetes lideraram os exércitos camponeses, colocando sua experiência militar a serviço dos camponeses e, em diversas situações, se recusaram a atuar contra os rebeldes. Em uma ocasião, justificaram sua recusa com o argumento de que eles próprios também vinham do campesinato e de que dependiam dos camponeses para seu sustento em tempos de paz. Quando ficou claro para os príncipes germânicos que não se podia confiar neles, passaram a mobilizar tropas da Liga da Suábia (Schwäbischer Bund), trazidas de regiões mais afastadas, para quebrar a resistência camponesa. Sobre a história dos lansquenetes e sua participação na Guerra Camponesa, ver Reinhard Baumann, I Lanzichenacchi (1994, p. 237-256).
2. ↑ Politicamente, os anabatistas representaram uma fusão dos “movimentos sociais da Baixa Idade Média e o novo movimento anticlerical que se desencadeou a partir da Reforma”. Como os hereges medievais, os anabatistas condenavam o individualismo econômico e a cobiça, e apoiavam uma forma de comunalismo cristão. A tomada de Münster teve lugar sob a Guerra Camponesa, quando a agitação e as insurreições urbanas se estenderam de Frankfurt até Colônia e outras cidades do norte da Alemanha. Em 1531, as corporações tomaram o controle da cidade de Münster, rebatizando-a de Nova Jerusalém e, sob a influência de imigrantes anabatistas holandeses, instalaram um governo comunal baseado na partilha de bens. Como escreveu Po-Chia Hsia, os documentos da Nova Jerusalém foram destruídos e sua história só foi contada por seus inimigos. Não devemos supor, portanto, que os acontecimentos se deram tal como foram narrados. De acordo com os documentos disponíveis, as mulheres primeiro desfrutaram de um alto grau de liberdade na cidade – “podiam se divorciar de seus maridos incrédulos e formar novos matrimônios”, por exemplo. As coisas mudaram com a decisão do governo reformado de introduzir a poligamia em 1534, o que provocou uma “resistência ativa” entre as mulheres que, segundo se presume, foi reprimida com prisões e até execuções (Po-Chia Hsia, 1988, p. 58-59). Não está claro o motivo dessa decisão. Mas o episódio merece maior investigação, dado o papel decisivo que desempenharam as corporações na “transição” em relação às mulheres. Sabemos, de fato, que as corporações realizaram campanhas em vários países para remover as mulheres dos lugares de trabalho assalariado e nada indica que se opuseram à perseguição de bruxas.
3. ↑ Sobre o aumento do salário real e a queda de preços na Inglaterra, ver North e Thomas (1973, p. 74). Sobre os salários florentinos, Carlo M. Cipolla (1994, p. 206). Sobre a queda do valor da produção na Inglaterra, ver R. H. Britnel (1993, p. 156-71). Sobre a estagnação da produção agrária em distintos países europeus, B. H. Slicher Van Bath (1963, p. 160-70). Rodney Hilton sustenta que neste período se experimentou “uma contração das economias rurais e industriais […] provavelmente sentida em primeiro lugar pela classe dominante […]. Os rendimentos senhoriais e os lucros industriais e comerciais começaram a cair […]. A revolta nas cidades desorganizou a produção industrial e a revolta do campo fortaleceu a resistência camponesa ao pagamento da renda. A renda e os lucros caíram ainda mais” (Milton, 1985, p. 240-41, tradução nossa).
4. ↑ Marx (2006, T. I, p. 897).
5. ↑ Sobre Maurice Dobb e o debate sobre a transição ao capitalismo, ver Harvey J. Kaye (1984, p. 23-69).
6. ↑ Entre os críticos do conceito de “acumulação primitiva” tal como utilizado por Marx estão Samir Amin (1974) e Maria Mies (1986). Enquanto Samir Amin volta sua atenção para o eurocentrismo de Marx, Mies coloca ênfase em sua cegueira com relação à exploração das mulheres. Uma crítica distinta aparece em Yann Moulier Boutang (1998, p. 16-23), que aponta em Marx a origem da impressão (errônea) de que o objetivo da classe dominante na Europa era se liberar de uma força de trabalho que não necessitava. Boutang salienta que ocorreu exatamente o contrário: o objetivo da expropriação de terras era fixar os trabalhadores em seus empregos, e não incentivar a mobilidade. O capitalismo, como sublinha Moulier Boutang, sempre se preocupou principalmente em evitar a fuga do trabalho.
7. ↑ Michael Perelman assinala que o termo “acumulação primitiva” foi, na realidade, cunhado por Adam Smith. Foi logo rechaçado por Marx devido ao caráter ahistórico do uso que Smith deu ao termo. “Para sublinhar sua distância em relação a Smith, Marx entitulou o capítulo final do primeiro tomo de O Capital, consagrado ao estudo da acumulação primitiva, como ‘a assim chamada acumulação primitiva’, fazendo a expressão “assim chamada” preceder, pejorativamente, o termo “acumulação primitiva”. Fundamentalmente, Marx descartou a mítica acumulação ‘anterior’ a fim de centrar a atenção na experiência histórica real”. (Perelman, 1985, p. 25-6, tradução nossa).
8. ↑ Sobre a relação entre as dimensões histórica e lógica da “acumulação primitiva” e suas implicações para os movimentos políticos de hoje, ver: Massimo de Angelis, “Marx and Primitive Accumulation. The Continuous Character of Capital Enclosures”, em The Commoner: conulloner.org.uk; Fredy Perlman, The Continuing Appeal of Nationalism O apelo continuado do nacionalismo. Detroit: Black and Red, 1985; e Mitchel Cohen, “Fredy Perlman: Out in Front of a Dozen Dead Oceans” (manuscrito inédito).
9. ↑ Marx (2006, T. I: 939) Tradução nossa.
10. ↑ Marx (2006, T. I, p. 950).
11. ↑ Para uma descrição dos sistemas de encomienda, mita e catequil, ver (entre outros) André Gunder Frank (1978, p. 45); Steve J. Stern (1982); e Inga Clendinnen (1987). Gunder Frank descreveu a encomienda como “um sistema sob o qual eram concedidos aos proprietários de terra espanhóis direitos sobre o trabalho das comunidades indígenas”. Porém, em 1548, os espanhóis “começaram a substituir a encomienda de servicio pelo repartimiento (chamado de catequil no México e de mita no Peru), que obrigava os chefes da comunidade indígena a fornecer ao juez repartidor (juiz distribuidor) espanhol certa quantidade de dias de trabalho por mês […]. Por sua vez, o funcionário espanhol distribuía esse fornecimento de trabalho a empreendedores ‘qualificados’, contratantes de força de trabalho, que deveriam pagar aos trabalhadores certo salário mínimo” (1978, p. 45). Sobre os esforços dos espanhóis para submeter os trabalhadores no México e no Peru, por meio de diferentes etapas de colonização, e seus impactos no colapso catastrófico da população indígena, ver novamente Gunder Frank (ibidem, p. 43-9).
12. ↑ Para uma discussão sobre a “segunda servidão”, ver Immanuel Wallerstein (1974) e Henry Kamen (1971). Aqui é importante destacar que os camponeses, transformados em servos pela primeira vez, produziam agora para o mercado internacional de cereais. Em outras palavras, apesar do caráter aparentemente retrógrado da relação de trabalho que lhes foi imposta, sob o novo regime esses camponeses estavam integrados numa economia capitalista em desenvolvimento e na divisão de trabalho capitalista em escala internacional.
13. ↑ As workhouses, literalmente “casas de trabalho”, eram uma espécie de asilo para pobres, estabelecidas na Inglaterra no século XVII. N. T. E.
14. ↑ Os indentured servants eram obrigados a trabalhar por um determinado período de tempo, durante o qual recebiam casa, comida e, às vezes, uma escassa remuneração, com a qual pagavam seu traslado a outro país. N. T. E.
15. ↑ Faço aqui eco da frase de Marx no Tomo I do Capital: “A violência […] é ela mesma uma potência econômica” (Marx, 2006, p. 940). Muito menos convincente é a observação de Marx que acompanha a frase: “A violência é a parteira de toda velha sociedade que está prenhe de uma nova” (ibidem). Em primeiro lugar, as parteiras trazem vida ao mundo e não destruição. Essa metáfora também sugere que o capitalismo “evoluiu” a partir de forças gestadas no seio do mundo feudal – uma suposição que o próprio Marx refuta em sua discussão sobre a acumulação primitiva. Comparar a violência com as potências geradoras de uma parteira também coloca um véu de bondade sobre o processo de acumulação de capital, sugerindo necessidade, inevitabilidade e, em última análise, progresso.
16. ↑ A escravidão nunca foi abolida na Europa. Sobrevivia em certos nichos, basicamente como escravidão doméstica feminina. No final do século XV, entretanto, os portugueses começaram novamente a importar escravos da África. As tentativas de estabelecer a escravidão continuaram na Inglaterra, durante o século XVI, resultando (depois da introdução da assistência pública) na construção de workhouses e casas correcionais – no que a Inglaterra foi a pioneira na Europa.
17. ↑ Sobre esse ponto, ver Samir Amin (1974). Também é importante ressaltar a existência da escravidão europeia durante os séculos XVI e XVII (e depois) porque esse fato foi frequentemente “esquecido” pelos historiadores europeus. De acordo com Salvatore Bono, este esquecimento autoinduzido é o produto da “Partilha da África”, justificada como uma missão para pôr fim à escravidão no continente africano. Bono argumenta que as elites europeias não podiam admitir ter empregado escravos na Europa, o pretenso berço da democracia.
18. ↑ Immanuel Wallerstein (1974, p. 90-95) e Peter Kriedte (1978, p. 69-70).
19. ↑ Paolo Thea (1998) reconstituiu de forma poderosa a história dos artistas alemães que se posicionaram ao lado dos camponeses.
20. ↑ Durante os séculos XVI e XVII, os governantes europeus interpretaram e reprimiram cada protesto social pelo prisma da guerra campesina e do anabatismo. Os ecos da revolução anabatista foram sentidos na Inglaterra elisabetana e na França, inspirando severidade e uma rigorosa vigilância com relação a qualquer desafio à autoridade constituída. “Anabatista” tornou-se uma palavra maldita, um símbolo de opróbrio e intenção criminosa, como “comunista” nos Estados Unidos da década de 1950 e como “terrorista” nos dias de hoje. “Durante a Reforma, alguns dos melhores artistas do século XVI abandonaram seus ateliês para se unir aos camponeses em luta […]. Escreveram documentos inspirados nos princípios da pobreza evangélica, como o de compartilhar os bens e o da redistribuição da riqueza. Algumas vezes […] empunharam armas pela causa. A lista interminável de quem, depois das derrotas militares de maio e junho de 1525, encarou os rigores do Código Penal, aplicado de forma impiedosa pelos vencedores contra os vencidos, inclui nomes famosos. Entre eles estão Jorg Ratget, esquartejado em Pforzheim (Stuttgart), Philipp Dietman, decapitado, e Tilman Riemenschneider, mutilado — ambos em Wurzburg — Matthias Grunewald, perseguido na corte de Magonza, onde trabalhava. Os acontecimentos impactaram Holbein, o Jovem, a tal ponto que ele abandonou Basileia, uma cidade dividida pelo conflito religioso.” Na Suíça, na Áustria e no Tirol, os artistas também participaram da guerra camponesa, inclusive artistas famosos como Lucas Cranach (Cranach, o velho) e um grande número de pintores e gravadores menores (ibidem, p. 7). Thea afirma que a participação profundamente sentida dos artistas na causa dos camponeses também está demonstrada pela revalorização de temas rurais que retratam a vida campesina – camponeses dançando, animais e flora – na arte alemã do século XVI (ibidem, p. 12-15; 73, 79, 80). “O campo tinha se animado […], ele havia adquirido no levante uma personalidade que valia a pena representar”. (ibidem, p. 155).
21. ↑ Em algumas cidades-estados, mantiveram-se as autoridades aldeãs e os privilégios. Em várias comarcas, os camponeses “continuaram negando-se a pagar dívidas, impostos e serviços laborais”; “me deixavam gritar e não me davam nada”, queixava-se o abade de Schussenried, referindo-se a quem trabalhava em sua terra (Blickle, 1985, p. 172). Na Alta Suábia, apesar de a servidão não ter sido abolida, algumas das principais demandas dos camponeses em relação aos direitos de herança e matrimônio foram aceitas por meio do Tratado de Memmingen de 1526. “No Alto Reno, algumas comarcas também chegaram a acordos que eram positivos para os camponeses” (ibidem, p. 172-179). Em Berna e Zurique, na Suíça, a escravidão foi abolida. Negociaram-se melhorias para o “homem comum” no Tirol e Salzburgo (ibidem, p. 176-179). Porém, “a verdadeira filha da revolução” foi a assembleia territorial, instituída depois de 1525, na Alta Suábia, que assentou as bases para um sistema de autogoverno, que perdurou até o século XIX. Depois de 1525, surgiram novas assembleias territoriais, que “realizaram debilmente uma das demandas de 1525: que o homem comum fizesse parte das cortes territoriais, junto com a nobreza, o clero e os habitantes das cidades”. Blickle conclui que “onde quer que essa causa tenha triunfado, não podemos dizer que ali os senhores tenham coroado sua conquista militar com uma vitória política, já que o príncipe estava ainda atado ao consentimento do homem comum. Somente depois, durante a formação do Estado absoluto, o príncipe pôde liberar-de do consentimento” (ibidem, p. 181-82).
22. ↑ Referindo-se à crescente pauperização no mundo, ocasionada pelo desenvolvimento capitalista, o antropólogo francês Claude Meillassoux (1981, p. 140), em Mulheres, celeiros & capitais, afirmou que essa contradição anuncia uma futura crise para o capitalismo: “Em última instância, o imperialismo — como meio para reproduzir força de trabalho barata — está levando o capitalismo a uma grave crise, já que, embora existam milhões de pessoas no mundo […] que não participam diretamente do emprego capitalista […], quantos ainda podem, devido ao rompimento dos laços sociais, à fome e às guerras que causa, produzir para sua própria subsistência e alimentar seus filhos?”.
23. ↑ A dimensão da catástrofe demográfica causada pelo “intercâmbio colombiano” continua sendo debatida até hoje. As estimativas do declínio da população na América do Sul e Central, no primeiro século pós-colombiano variam muito, mas a opinião acadêmica contemporânea é quase unânime em comparar seus efeitos a um holocausto americano. André Gunder Frank escreve que “em pouco mais de um século, a população indígena caiu 90%, chegando a 95% no México, Peru e algumas outras regiões” (1978, p. 43). De forma semelhante, Noble David Cook diz que “talvez, nove milhões de pessoas viviam dentro dos limites delineados pelas fronteiras atuais do Peru. Um século depois do contato, o número de habitantes remanescentes era, mais ou menos, uma décima parte dos que estavam ali quando os europeus invadiram o mundo andino” (Cook, 1981, p. 116).
24. ↑ Em inglês, a travessia de barcos carregados de escravos da África até a América recebia o nome de Middle Passage. Os barcos começavam sua viagem na Europa, carregados de mercadoria que trocavam por escravos na costa da África. Logo empreendiam a viagem à América, carregados de escravos que vendiam para comprar mercadorias americanas, que seriam, por sua vez, vendidas na Europa. Isto é, desse circuito triangular, o tráfico de escravos ocupava o trajeto intermediário e, por isso, alguns textos traduzem a expressão por “passagem intermediária”. N. T. E.
25. ↑ Sobre as mudanças na natureza da guerra na Europa moderna, ver Cunningham e Grell (2000, p. 95-102); Kaltner (1998). Cunningham e Grell (2000, p. 95) escrevem: “Em 1490, um exército grande era formado por 20 mil homens, em 1550, tinha duas vezes esse tamanho, enquanto que, até o final da Guerra dos Trinta Anos, os principais Estados europeus tinham exércitos terrestres de cerca de 150 mil homens”.
26. ↑ A gravura de Albrecht Dürer não foi a única representação dos “Quatro Cavaleiros do Apocalipse”. Há também uma de Lucas Cranach (1522) e uma de Mattheus Merian (1630). As representações de campos de batalha retratando matanças de soldados e civis, vilarejos em chamas e filas de corpos enforcados são demasiadas para serem mencionadas. A guerra é, provavelmente, o tema principal na pintura dos séculos XVI e XVII, infiltrando-se em cada representação, até mesmo nas mais ostensivamente dedicadas a temas sacros.
27. ↑ Este desenlace põe em evidência os dois espíritos da Reforma: um popular e outro elitista, que logo se dividiram em linhas opostas. Enquanto a ala conservadora da reforma insistia nas virtudes do trabalho e da acumulação de riquezas, a ala popular exigia uma sociedade governada pelo “amor piedoso”, pela igualdade e pela solidariedade coletiva. Sobre as dimensões de classe da Reforma, ver Henry Heller (1986) e Po-Chia Hsia (1988).
28. ↑ Hoskins (1976, p. 121-23). Na Inglaterra, a Igreja pré-reforma havia sido proprietária de 25 a 30% da propriedade real nesse país. Henrique VIII vendeu 60% das suas terras (Hoskins, 1976, p. 121-3). Quem mais ganhou com o confisco e teve maior entusiasmo com o cercamento das terras adquiridas não foi a antiga nobreza, nem aqueles que dependiam dos espaços comuns para se manter, mas a pequena nobreza proprietária de terras (gentry) e os “homens novos”, especialmente advogados e comerciantes, que personificavam a avareza na imaginação campesina (Cornwall, 1977, p. 22-8). Era contra esses “homens novos” que os camponeses se inclinavam a extravasar sua fúria. A tabela XV (em Kridte 1983, p. 60) registra um excelente retrato da situação, ilustrando quem foram os vencedores e perdedores na grande transferência de terras produzida durante a Reforma Inglesa. Ela mostra que entre 20 e 25% da terra nas mãos da Igreja se transformou em propriedade da gentry. As colunas seguintes são as mais relevantes. Distribuição da terra por grupo social na Inglaterra e Gales: 1436 (em )* 1690 (em %) Grandes proprietários 15-20 15-20; Gentry 25 45-50; Pequenos proprietários 20 25-33; Igreja e Coroa 25-30 5-10; *Excluindo Gales. Sobre as consequências da Reforma na Inglaterra, no que concerne à propriedade da terra, ver também Christopher Hill (1958, p. 41), que escreve: Não é necessário idealizar as abadias como proprietárias indulgentes para admitir certa verdade nas acusações contemporâneas de que os novos compradores diminuíram os contratos de arrendamento, arruinaram os aluguéis e desalojaram os inquilinos […] “Não sabes”, disse John Palmer a um grupo de arrendatários que estava desalojando, “que a graça do rei degradou todas as casas dos monges, dos frades e das freiras? Portanto, não terá chegado o momento em que nós, gentlemen, degradaremos as casas desses pobres patifes?”.
29. ↑ Ver Midnight Notes (1990) Notas da meia-noite; também The Ecologist (1993) O Ecologista; e o debate em curso sobre “cercamentos” e “o comum” em The Commoner www.commoner.org.uk, especialmente o número 2 (setembro de 2001) e o número 3 (janeiro de 2002).
30. ↑ Antes de mais nada, “cercamento” queria dizer “envolver um pedaço de terra com cercas, canais ou outras barreiras ao livre trânsito de homens e animais, em que a cerca era a marca de propriedade e ocupação exclusiva de um terreno. Portanto, por meio do cercamento, o uso coletivo da terra, geralmente acompanhando por algum grau de propriedade comunal da terra, seria abolido, suplantado pela propriedade individual e pela ocupação isolada” (G. Slater, 1968, p. 1-2). Havia uma variedade de meios para se abolir o uso coletivo da terra nos séculos XV e XVI. As vias legais eram: a) a compra por uma pessoa de todos os lotes alugados e seus direitos acessórios; b) a emissão por parte do rei de uma licença especial para cercar ou a aprovação de uma lei de cercamento pelo Parlamento; c) um acordo entre o proprietário e os inquilinos, incorporado num decreto da Chancery Corte especializada em assuntos civis. N. T. E.; d) a realização de cercamentos parciais de terrenos baldios por parte dos lordes, sob as disposições dos Estatutos de Merton (1235) e Westminster (1285). Roger Manning destaca, no entanto, que esses “métodos legais […] escondiam, muitas vezes, o uso da força, a fraude e a intimidação contra os inquilinos” (Manning, 1998, p. 25). E. D. Fryde também escreve que “o assédio prolongado aos inquilinos, combinado com ameaças de despejo à mínima oportunidade legal” e a violência física foram usados para provocar despejos em massa, “particularmente durante os anos de desordem entre 1450 e 1485 isto é, no período da Guerra das Duas Rosas” (Fryde, 1996, p. 186). Em Utopia (1516), Thomas More expressou a angústia e a desolação geradas por essas expulsões em massa, quando falou de certas ovelhas, que haviam se tornado tão gulosas e selvagens que “comiam e engoliam os próprios homens”. “Ovelhas” – acrescentou – “que consomem e destroem e devoram campos inteiros, casa e cidades”.
31. ↑ Em The Invention of Capitalism (2000, p. 38 e segs.) A Invenção do Capitalismo, Michael Perelman ressaltou a importância dos “direitos consuetudinários” (por exemplo, a caça), afirmando que eram, muitas vezes, de vital importância, marcando a diferença entre a sobrevivência e a indigência total.
32. ↑ O ensaio de Garrett Hardin sobre A Tragédia dos Comuns (1968) foi um dos pilares da campanha ideológica de apoio à privatização da terra na década de 1970. A “tragédia”, na versão de Hardin, é a inevitabilidade do egoísmo hobbesiano como determinante do comportamento humano. Em sua opinião, num campo comum hipotético, cada pastor quer maximizar seu lucro sem levar em conta as repercussões de sua ação sobre os outros pastores, de tal maneira que “a ruína é o destino a que todos os homens se apressam, cada um perseguindo seu próprio interesse” (em Baden e Nooan eds., 1998, p.8-9).
33. ↑ A defesa dos cercamentos a partir da “modernização” tem uma longa história, mas o neoliberalismo lhe deu um novo impulso. Seu principal fomentador foi o Banco Mundial, que frequentemente exige aos governos da África, Ásia, América Latina e Oceania que privatizem suas terras comuns como condição para recebimento de empréstimos (Banco Mundial, 1989). Uma defesa clássica dos ganhos em produtividade derivados dos cercamentos pode ser encontrada em Una defensa clásica de Harriett Bradley (1968, 1918). A literatura acadêmica adotou um enfoque a partir de “custo-benefício” mais equânime, exemplificado pelos trabalhos de G. E. Mingay (1997) e Robert. S. Duplessis (1997, p. 65-70). A batalha sobre os cercamentos agora cruzou as fronteiras disciplinares e está sendo discutida também por especialistas em literatura. Um exemplo do cruzamento de fronteiras disciplinares está em Richard Burt e John Michael Archer (org.), Enclosure Acts. Sexuality, Property and Culture in Early Modern England (1994) — especialmente os ensaios de James R. Siemon, “Landlord Not King: Agrarian Change and Interarticulation” Senhor Feudal, não Rei: Mudança Agrária e Interarticulação; e William C. Carroll, “The Nursery of Beggary: Enclosure, Vagrancy, and Sedition in the Tudor-Stuart Period” A creche da mendicância: cercamento, vagabundagem e sedição na era Tudor-Stuart. William C. Carroll detectou que houve, no período Tudor, uma animada defesa dos cercamentos e uma crítica aos campos comuns levada a cabo por porta-vozes da própria classe que cercava. De acordo com esse discurso, os cercamentos fomentavam a empresa privada, que, por sua vez, aumentava a produção agrária, enquanto que os campos comuns eram os “semeadores e receptáculos de ladrões, delinquentes e mendigos” (Carroll, 1994, p. 37-8).
34. ↑ De Vries (1976, p. 42-3); Hoskins (1976, p. 11-2).
35. ↑ Os campos comuns eram os lugares onde se realizavam os festivais populares e outras atividades coletivas, como esportes, jogos e reuniões. Quando foram cercados, a sociabilidade que havia caracterizado a comunidade dos vilarejos foi gravemente debilitada. Entre os rituais que deixaram de existir estava a “Rogationtide perambulation”, uma procissão anual entre os campos, com o objetivo de benzer os futuros cultivos, que não pôde continuar a acontecer devido aos cercamentos (Underdown, 1985, p. 81).
36. ↑ Sobre a decomposição da coesão social, ver (entre outros) David Underdown (1985), Revel, Riot and Rebellion: Popular Politics and Culture in England, 1603-1660 Festas, revolta e rebelião: política e cultura popular na Inglaterra, 1603-1660, especialmente o capítulo 3, que também descreve os esforços empreendidos pela nobreza mais antiga para se distinguir dos novos ricos.
37. ↑ Kriedte (1983, p. 55); Briggs (1998, p. 289-316).
38. ↑ A indústria artesanal foi resultado da extensão da indústria rural no feudo, reorganizada por negociantes capitalistas com a finalidade de aproveitar a grande reserva de trabalho liberada pelos cercamentos. Com esta manobra, os negociantes tentaram alterar os altos salários e o poder das guildas urbanas. Foi assim que nasceu o “sistema doméstico” – um sistema pelo qual os capitalistas distribuíam entre as famílias rurais lã ou algodão para fiar ou tecer e frequentemente também os instrumentos de trabalho, e depois recolhiam o produto pronto. A importância do sistema doméstico e da indústria artesanal para o desenvolvimento da indústria britânica pode ser deduzida do fato de que a totalidade da indústria têxtil, o setor mais importante na primeira fase do desenvolvimento capitalista, foi organizada dessa maneira. A indústria artesanal apresentava duas vantagens fundamentais para os empregadores: evitava o perigo das “associações” e barateava o custo de trabalho, já que sua organização no lar fornecia aos trabalhadores serviços domésticos gratuitos e a cooperação de seus filhos e esposas, que eram tratadas como ajudantes e recebiam baixos salários como “auxiliares”.
39. ↑ O trabalho assalariado foi tão identificado com a escravidão que os “niveladores” (levellers), que defendiam a igualdade durante a Guerra Civil Inglesa no século XVII, excluíam os trabalhadores assalariados do direito ao voto, já que não os consideravam suficientemente independentes de seus empregadores para poder votar. “Por que uma pessoa livre haveria de escravizar-se a si mesma” perguntava o Zorro, um personagem em Mother Hubbard’s Tale, de Edmund Spenser (1591).
40. ↑ Herzog (1989, p. 45-52). A bibliografia sobre vagabundos é abundante. Entre os autores mais importantes sobre este tema estão A. Beier (1974) e B. Geremek, com a obra Poverty, A History (1994) Pobreza, uma história.
41. ↑ Fletcher (1973, p. 64-77); Cornwall (1977, p. 137-241); Beer (1982, p. 82-139). No início do século XVI, a pequena gentry participou de muitos motins, utilizando o ódio popular contra cercos, aquisições e reservas para resolver disputas com seus superiores. Porém, depois de 1549, “diminuiu a capacidade dirigente da pequena nobreza nas querelas sobre os cercos e os pequenos proprietários ou os artesãos, e aqueles que trabalhavam na indústria artesanal doméstica tomaram a iniciativa nos protestos agrários” (Manning, 1988, p. 312). Manning descreve o “forasteiro” como típica vítima de um motim contra os cercamentos. “Os comerciantes que tentavam comprar seu ingresso na aristocracia proprietária eram particularmente vulneráveis aos motins contra os cercos, assim como os fazendeiros que arrendavam terra. Em 24 dos 75 casos da Corte da Star Chamber, esses motins se dirigiram contra os novos proprietários e os fazendeiros. Outros seis casos incluíam proprietários ausentes, um perfil muito semelhante.” (Manning 1988, p. 50).
42. ↑ Manning (1988, p.96-7, 114-16, 281); Mendelson e Crawford (1998).
43. ↑ A crescente presença das mulheres nos levantes contra os cercos era influenciada pela crença popular de que a lei “não regia” as mulheres e de que estas podiam vencer os cercamentos com impunidade (Mendelson e Crawford, 1998, p. 386-87). Entretanto, a Corte da Star Chamber fez todo o possível para desacreditar a população sobre tal crença. Em 1605, um ano depois da lei sobre bruxaria de Jaime I, a Corte sancionou que “se as mulheres cometerem as ofensas de entrar sem autorização, amotinamento ou outra, e se uma ação é trazida contra elas ou seus maridos, eles pagarão multas e danos, mesmo que a entrada ou a ofensa seja cometida sem o consentimento de seus maridos” (Manning, 1988, p. 98).
44. ↑ Sobre esse tema, ver, entre outras, Maria Mies (1986).
45. ↑ Por volta do ano de 1600, o salário real na Espanha havia perdido 30
de seu poder de compra com relação a 1511 (Hamilton, 1965, p. 280). Sobre a Revolução dos Preços, ver, em particular, o trabalho já clássico de Earl J. Hamilton, American Treasure and the Price Revolution in Spain, 1501-1650 (1965) O tesouro americano e a Revolução dos Preços na Espanha, 1501-1650, que estuda o impacto que tiveram os metais preciosos americanos; David Hackett Fischer, em The Great Wave: Price Revolutions and the Rhythms of History (1996) A grande onda: Revoluções dos Preços e os ritmos da história, estuda os aumentos de preços desde a Idade Média até o presente, particularmente no capítulo 2 (66-113); e o livro compilado por Peter Ramsey, The Price Revolution in Sixteenth Century England (1971) A Revolução dos Preços na Inglaterra do século XVI.
46. ↑ Braudel (1966, Vol. I, p. 517-24).
47. ↑ Assim resume Peter Kriedte (1983, p. 54-5) os desenvolvimentos econômicos desse período: A crise aprofundou as diferenças de renda e propriedade. A pauperização e a proletarização cresceram de forma paralela à acumulação de riqueza […] Um trabalho sobre Chippenham, em Cambridgeshire, mostrou que as colheitas ruins de finais do século XVI e começo do XVII levaram a uma mudança decisiva. Entre 1544 e 1712, as fazendas de porte médio quase desapareceram. Ao mesmo tempo, a proporção de propriedades de noventa acres ou mais cresceu de 3% para 14%; as casas sem terra aumentaram de 32% para 63%.
48. ↑ Wallerstein (1974, p. 83); Le Roy Ladurie (1928-1929). O crescente interesse dos empresários capitalistas pelo empréstimo foi, talvez, o motivo subjacente na expulsão dos judeus da maioria das cidades e países da Europa nos séculos XV e XVI: Parma (1488), Milão (1489), Genebra (1490), Espanha (1492) e Áustria (1496). As expulsões e os pogroms continuaram durante um século ou mais. Até a corrente mudar de rumo com Rodolfo II, em 1577, era ilegal para os judeus viver em praticamente toda a Europa ocidental. Logo que o empréstimo se transformou em negócio lucrativo, esta atividade, antes declarada indigna de um cristão, foi reabilitada, como demonstra esse diálogo entre um camponês e um burguês rico, escrito de forma anônima, na Alemanha, por volta de 1521 (G. Strauss, p. 110-1): Camponês: O que me traz até você? É que gostaria de ver como passa seu tempo./Burguês: Como deveria passar meu tempo? Estou aqui sentado, contando meu dinheiro, não vê?/Camponês: Diga-me, burguês, quem te deu tanto dinheiro que passa todo seu tempo a contá-lo?/Burguês: Quer saber quem me deu meu dinheiro? Vou te contar. Um camponês bate em minha porta e me pede que lhe empreste dez ou vinte florins. Pergunto-lhe se possui um terreno de bons pastos ou um campo lindo para arar. Ele diz: “Sim, burguês, tenho uma boa pradaria e um bom campo, os dois juntos valem cem florins”. Eu lhe respondo: “Excelente! Entregue-me como garantia sua pradaria e seu campo e, se você se comprometer a pagar um florim por ano como juros, pode obter seu empréstimo de vinte florins”. Contente de ouvir a boa notícia, o camponês responde: “Com prazer, lhe darei essa garantia”. “Mas devo dizer”, replico, “que, se alguma vez deixar de pagar os juros a tempo, tomarei posse de sua terra e a tornarei minha propriedade”. E isto não preocupa o camponês, que prossegue, empenhando a mim seus pastos e seu campo como garantia. Eu empresto-lhe o dinheiro e ele paga os juros pontualmente durante um ou dois anos: logo vem uma colheita ruim e ele se atrasa em seus pagamentos. Confisco sua terra, desalojo-o e a pradaria e o campo são meus. E faço isso não só com os camponeses, mas também com os artesãos. Se um comerciante é dono de uma casa boa, empresto-lhe uma soma de dinheiro por ela e, dentro de pouco tempo, a casa me pertence. Desta maneira, adquiro uma grande quantidade de propriedades e riqueza e é por isso que passo todo meu tempo contando meu dinheiro./Camponês: E eu que pensava que só os judeus praticavam a usura! Agoro escuto que também os cristãos a praticam./Burguês: Usura? Quem está falando em usura? O que o devedor paga são os juros.
49. ↑ Com relação à Alemanha, Peter Kriedte (1983, p. 51-2) escreve: “Uma investigação recente mostra que, durante as três primeiras décadas do século XVI, um trabalhador da construção em Augsburgo Baviera podia manter adequadamente sua mulher e dois filhos com seu salário anual. A partir desse momento, seu nível de vida começou a piorar. Entre 1566 e 1575 e, desde 1585 até a eclosão da Guerra dos Trinta Anos, seu salário já não podia pagar o mínimo necessário para a subsistência de sua família”. Sobre o empobrecimento da classe trabalhadora europeia, provocado pelos cercamentos e pela Revolução dos Preços, ver também C. Lis & H. Soly (1979, p.72-9), em que afirmam que, na Inglaterra, “entre 1500 e 1600, os preços dos cereais aumentaram seis vezes, enquanto os salários aumentaram três vezes. Não é de surpreender que, para Francis Bacon, os trabalhadores e os camponeses não fossem nada além de “mendigos que vão de porta em porta”. Na França, na mesma época, a capacidade de compra dos camponeses e dos trabalhadores assalariados caiu 45%. “Em New Castle […], trabalho assalariado e pobreza eram considerados sinônimos” (ibidem, p.72-4).
50. ↑ Sobre o crescimento da prostituição no século XVI, ver Nickie Roberts (1992), Whores in History: Prostitution in Western Society As putas na história: Prostituição na Sociedade Ocidental.
51. ↑ Manning (1988); Fletcher (1973); Cornwall (1977); Beer (1982); Bercé (1990); Lombardini (1983).
52. ↑ Kamen (1971), Bercé (1990, 169-79); Underdown (1985). Como comenta David Underdown (1985, p. 117): “O papel proeminente das mulheres amotinadas pela comida foi comentado com frequência. Em Southampton, em 1608, um grupo de mulheres se negou a esperar enquanto a corporação debatia sobre o que fazer com um barco que estava sendo carregado com destino a Londres; o abordaram e se apossaram da carga. Supõe-se que as mulheres foram as amotinadas no incidente de Weymouth, em 1622, enquanto que em Dorchester, em 1631, um grupo (alguns deles internos de uma casa de trabalho) deteve uma carreta acreditando, erroneamente, que continha trigo; um deles queixou-se de um comerciante local que “despachou para além-mar os melhores frutos da terra, inclusive manteiga, queijo, trigo etc”. Sobre a presença das mulheres nos motins alimentares, ver também Sara Mendelson e Patricia Crawford (1998), que escrevem: “as mulheres tiveram um papel preponderante nos motins por cereal na Inglaterra”. Por exemplo, “em Maldon, em 1629, uma multidão de mais de cem mulheres e crianças abordaram os barcos para evitar que o cereal fosse despachado”. Eram liderados por uma tal “Capitã Ann Carter, que logo foi julgada e enforcada” por liderar o protesto (ibidem, p. 385-86).
53. ↑ Os comentários de um médico na cidade italiana de Bérgamo, durante a carestia de 1630, tinham um tom similar: O ódio e o terror engendrados por uma multidão enlouquecida de gente meio morta, que assedia as pessoas nas ruas, nas praças, nas igrejas, nas portas das casas, que torna a vida intolerável, além do fedor imundo que emana deles e do espetáculo constante dos moribundos […] só pode acreditar nisso que já tenha experimentado. (Citado por Carlo M. Cipolla, 1993, p. 129).
54. ↑ Sobre os protestos no século XVI e XVII na Europa, ver The Iron Century (1972) “O Século de Ferro”, de Henry Kamen, especialmente o capítulo 10 (331-85), “Popular Rebellion. 1550-1660” “Rebelião Popular, 1550-1660”. Segundo Kamen (1972, p.336), “A crise de 1595-1597 ocorreu em toda a Europa, com repercussões na Inglaterra, França, Áustria, Finlândia, Hungria, Lituânia e Ucrânia. Provavelmente, nunca antes na história da Europa coincidiram tantas rebeliões ao mesmo tempo”. Houve rebeliões em Nápoles, em 1595, 1620, 1647 (ibidem, p. 334-35, 350, 361-63). Na Espanha, as rebeliões estouraram em 1640, na Catalunha; em Granada, em 1648; em Córdoba e Sevilha, em 1652. Sobre os motins e rebeliões na Inglaterra nos séculos XVI e XVII, ver Cornwall (1977), Underdown (1985) e Manning (1988). Sobre as revoltas na Espanha e na Itália, ver também Braudel (1976, Vol. II, p. 738-39).
55. ↑ Sobre a vagabundagem na Europa, além de Beier e Geremek, ver Braudel (1976, T. II, p. 739-43); Kamen (1972, p. 390-94).
56. ↑ Sobre o aumento de delitos contra a propriedade depois da Revolução dos Preços, ver o gráfico da p. xx. Ver Richard J. Evans (1996, p. 35); Kamen (1972, p. 397-403); e Lis e Soly (1984). Lis e Soly (1984, p. 218), escrevem que “os dados disponíveis sugerem que, na Inglaterra, a criminalidade total aumentou de forma acentuada nos período elisabetano e na dinastia Stuart, especialmente entre 1590 e 1620”.
57. ↑ Na Inglaterra, dentre os momentos de sociabilidade e reprodução coletiva que foram aniquilados com a perda dos campos abertos e das terras comunais, se encontravam as procissões primaveris organizadas com a finalidade de benzer os campos – e que não puderam continuar a ser feitos, uma vez que foram barrados – e as danças que se realizavam em torno da Árvore de Maio no primeiro dia desse mês (Underdown, 1985).
58. ↑ Lis e Soly (1979, p. 92). Sobre a instituição da assistência pública, ver Geremek (1994), Poverty. A History Pobreza, uma história, especialmente o capítulo 4 (142-77): “A reforma da caridade”.
59. ↑ Yann Moulier Boutang, De L’eclavage au salariat (1998, p. 291-3) Da escravidão ao assalariado. Concordo apenas parcialmente com este autor, quando argumenta que a “ajuda aos pobres” não era tanto uma resposta à miséria produzida pela expropriação da terra e pela inflação dos preços, mas uma medida destinada a evitar a fuga dos trabalhadores e criar, assim, um mercado de trabalho local (1998). Como já mencionei, Moulier Boutang superestima o grau de mobilidade que os trabalhadores tinham à sua disposição, já que não considera a situação particular das mulheres. Mais ainda, diminui a importância do fato de que a assistência também fora o resultado de uma luta – uma luta que não pode ser reduzida à fuga do trabalho, mas incluía também assaltos, invasões de cidades por massas famintas de gente do campo (uma constante na França do século XVI) e outras formas de ataque. Não é coincidência que, nesse contexto, Norwich, centro da rebelião de Kett, tenha se tornado, pouco tempo depois de sua derrota, o centro e o modelo das reformas de assistência aos pobres.
60. ↑ O humanista espanhol Juan Luis Vives, conhecedor dos sistemas de ajuda aos pobres de Flandres e da Espanha, era um dos principais partidários da caridade pública. Em sua obra De Subvention Pauperum (1526) Do socorro aos pobres, sustentou que “a autoridade secular, não a Igreja, deve ser responsável pela ajuda aos pobres” (Geremek, 1994, p. 187). Vives ressaltou que as autoridades deviam encontrar trabalho para os saudáveis, insistindo que “os indisciplinados, os desonestos, os que roubam e os ociosos devem receber o trabalho mais pesado e com pior pagamento, a fim de que seu exemplo sirva para dissuadir os outros” (ibidem).
61. ↑ O principal trabalho sobre o surgimento das casas de trabalho e de correção é The Prison and the Factory: Origins of the Penitentiary System (1981) A prisão e a fábrica: as origens do sistema penitenciário, de Dario Melossi e Massimo Pavarini. Estes autores afirmam que o principal objetivo do encarceramento era quebrar o senso de identidade e solidariedade entre os pobres. Ver também Geremek (1994, p. 206-29). Sobre os esquemas de trabalho projetados pelos proprietários ingleses para encarcerar os pobres em seus distritos, ver Marx (1909, T. I, p. 793), op. cit. Para o caso da França, ver Foucault (1967), História da Loucura na Idade Clássica, especialmente o capítulo 2 (T. I, p. 75-125): “A Grande Internação”.
62. ↑ Enquanto Hackett Fischer (1996, p. 91-2) liga a diminuição da população na Europa, no século XVII, aos efeitos sociais da Revolução dos Preços, Peter Kriedte (1983, p. 63) apresenta um panorama mais complexo, Kriedte defende que o declínio demográfico se deu por uma combinação de fatores, tanto malthusianos, quanto sócio-econômicos. A diminuição foi, para este autor, uma resposta ao incremento populacional do início do século XVI e à apropriação da maior parte dos rendimentos agrícolas. Uma observação interessante a favor de meus argumentos acerca da ligação entre declínio demográfico e políticas estatais pró-natalidade foi feita por Robert S. Duplessis (1997, p. 143), que escreve que a recuperação que seguiu à crise populacional do século XVII foi muito mais rápida que nos anos posteriores à Peste Negra. Foi necessário um século para que a população começasse a crescer novamente depois da epidemia de 1348, enquanto, no século XVII, o processo de crescimento foi retomado em menos de cinquenta anos. Essas estimativas indicariam a presença, na Europa do século XVII, de uma taxa de natalidade muito mais alta que poderia ser atribuída ao feroz ataque a qualquer forma de contracepção.
63. ↑ “Biopoder” é um conceito usado por Foucault em sua História da Sexualidade, I, A vontade de saber (1978), para descrever a passagem de uma forma autoritária de governo para uma mais descentralizada, baseada no “fomento do poder da vida” na Europa durante o século XIX. O termo “biopoder” expressa a crescente preocupação, em nível estatal, pelo controle sanitário, sexual e penal dos corpos dos indivíduos, assim como a preocupação com o crescimento e os movimentos populacionais e sua inserção no âmbito econômico. De acordo com esse paradigma, a emergência do biopoder apareceu com a ascensão do liberalismo e marcou o fim do Estado jurídico e monárquico.
64. ↑ Faço essa distinção a partir da discussão dos conceitos foucaultianos de “população” e “biopoder” do sociólogo canadense Bruce Curtis. Curtis compara o conceito de “população relativa” (populousness), que se usava nos séculos XVI e XVII, com a noção de “população absoluta” (population), que se tornou o fundamento da ciência moderna da demografia no século XIX. Curtis destaca que populousness era um conceito orgânico e hierárquico. Quando os mercantilistas o usavam, estavam preocupados com a parte do corpo social que cria riqueza, isto é, com trabalhadores reais ou potenciais. O conceito posterior de “população” é atomístico. “A população consiste numa quantidade de átomos indiferenciados distribuídos por meio de um espaço e tempo abstratos” – escreve Curtis – “com suas próprias leis e estruturas”. O que procuro argumentar é que há, entretanto, uma continuidade entre essas duas noções, já que tanto no período mercantilista quanto no capitalismo liberal, a noção de população absoluta foi funcional à reprodução da força de trabalho.
65. ↑ O auge do mercantilismo se deu durante a segunda metade do século XVII. Seu domínio na vida econômica esteve associado aos nomes de William Petty (1623-1687) e Jean Baptiste Colbert, o Ministro da Fazenda de Luís XIV. No entanto, os mercantilistas do final do século XVII só sistematizaram ou aplicaram teorias que haviam sido desenvolvidas desde o século XVI. Jean Bodin na França e Giovanni Botero na Itália são considerados economistas protomercantilistas. Uma das primeiras formulações sistemáticas da teoria econômica mercantilista encontra-se em England’s Treasure by Forraign Trade (1622), de Thomas Mun.
66. ↑ Para uma discussão sobre a nova legislação contra o infanticídio, ver, entre outros, John Riddle (1997, p. 163-66); Merry Wiesner (1993, p. 52-3); e Mendelson e Crawford (1998, p. 149). Os últimos escrevem que “o infanticídio era um crime que, provavelmente, fora mais cometido pelas mulheres solteiras do que por qualquer outro grupo na sociedade. Um estudo do infanticídio no começo do século XVII mostrou que de sessenta mães, cinquenta e três eram solteiras e seis, viúvas”. As estatísticas mostram também que o infanticídio era punido de forma mais frequente do que a bruxaria. Margaret King (1991, p. 10) escreve que em Nuremberg foram “executadas quatorze mulheres por esse crime, entre 1578 e 1615, mas apenas uma bruxa. Entre 1580 e 1606, o parlamento de Ruão julgou quase tantos casos de infanticídio quanto de bruxaria, mas castigou o infanticídio com maior severidade. A Genebra calvinista mostra uma maior proporção de execuções por infanticídio do que por bruxaria; entre 1590 e 1630, nove mulheres das onze condenadas foram executadas por infanticídio, em comparação com apenas uma de trinta suspeitas por bruxaria”. Estas estimativas são confirmadas por Merry Wiesner (1993, p. 52), que escreve que “em Genebra, por exemplo, 25 de 31 mulheres acusadas de infanticídio durante o período de 1595 a 1712 foram executadas, em comparação com 19 de 122 acusadas de bruxaria”. Na Europa, mulheres foram executadas por infanticídio até o século XVIII.
67. ↑ Um artigo interessante sobre este tema é “The Witches Pharmakopeia” (1986), de Robert Fletcher.
68. ↑ A referência é de uma canção feminista italiana de 1971, intitulada “Aborto di Stato” Aborto de Estado. Esta canção faz parte do álbum “Canti de donne in lotta” Canções de mulheres em luta, lançado em 1974 pelo Grupo Musical do Comitê pelo Trabalho Doméstico, da cidade de Pádua.
69. ↑ Margaret L. King (1991, p. 78), Women of the Renaissance Mulheres do Renascimento. Sobre o fechamento dos bordéis na Alemanha, ver Merry Wiesner (1986, p. 174-85), Working Women in Renaissance Germany Mulheres trabalhadoras na Alemanha renascentista.
70. ↑ Um vasto catálogo dos lugares e anos em que as mulheres foram expulsas do artesanato pode ser encontrado em David Herlihy (1978-1991). Ver também Merry Wiesner (1986, p. 174-85).
71. ↑ Martha Howell (1986, p. 174-83). Howell (1986, p. 182) escreve: “As comédias e sátiras da época, por exemplo, retratavam com frequência as mulheres inseridas no mercado e nas oficinas como megeras, com caracterizações que não somente as ridicularizavam ou repreendiam por assumir papeis na produção mercadológica, mas frequentemente também chegavam a acusá-las de agressão sexual.”
72. ↑ Ver Underdown (1985a), “The Taming of the Scold: The Enforcement of Patriarchal Authority in Early Modern England” A domesticação das desbocadas: A imposição da autoridade patriarcal no início da Inglaterra Moderna, em Anthony Fletcher e John Stevenson (1985, p. 116-36); Mendelson e Crawford (1998, p. 69-71).
73. ↑ Sobre a perda de direitos das mulheres nos séculos XVI e XVII, na Europa, ver (entre outros) Merry Wiesner (1993, p. 33), que escreve que: A difusão do direito romano teve um efeito, em grande parte negativo, sobre o status legal civil das mulheres no início do período moderno, tanto por causa das perspectivas que os próprios juristas adotaram sobre as mulheres a partir do direito romano, quanto pela aplicação mais estrita das leis existentes que o direito romano possibilitou.
74. ↑ Se às obras de teatro e panfletos juntarmos também os registros da corte do período, Underdown (1985a, p. 119) conclui que “entre 1560 e 1640 […] estes registros revelam uma intensa preocupação com as mulheres que são uma ameaça visível para o sistema patriarcal. Mulheres discutindo e brigando com seus vizinhos, mulheres solteiras que recusam a se dedicar ao serviço doméstico, esposas que dominam seus maridos ou batem neles: todos aparecem com maior frequência que no período imediatamente anterior ou posterior. Não passa despercebido que esta também é a época em que as acusações de bruxaria atingiram um de seus picos”.
75. ↑ James Blaut (1992a) destaca que apenas umas poucas décadas depois de 1492 “a taxa de crescimento e mudança se acelerou dramaticamente e a Europa entrou num período de rápido desenvolvimento”. Ele diz (1992a, p. 38): A empresa colonial no século XVI produziu capital de diversas maneiras. Uma foi a mineração de ouro e prata. Uma segunda foi a agricultura de plantation, principalmente no Brasil. Uma terceira foi o comércio com a Ásia de especiarias, tecidos e muitas outras coisas. Um quarto elemento foi o lucro que retornou às casas europeias de uma variedade de empreendimentos produtivos e comerciais na América […] Um quinto foi a escravatura. A acumulação destas receitas foi massiva.
76. ↑ N. E. E.: “Roça”
77. ↑ Edição Ridendo Castigat Mores. Tradução de Nélson Jahr Garcia. Disponível em: www.ebooksbrasil.org/eLibris/tempestade.... Acesso em 30 de agosto de 2016.
78. ↑ Um caso emblemático é o das Bermudas, citado por Elaine Forman Crane (1990, p. 231-58). Crane afirma que umas tantas mulheres brancas nas Bermudas eram donas de escravos — geralmente, de outras mulheres — e graças ao trabalho deles puderam manter um certo grau de autonomia econômica.
79. ↑ June Nash (1980, p. 140) afirma que: “Houve uma mudança significativa em 1549, quando a origem racial se tornou um fator, junto com as uniões matrimoniais legalmente sancionadas, para a definição de direitos de sucessão. A nova lei estabelecia que nem os mulattos (descendentes de homem branco e mulher índia), nem os mestizos, nem as pessoas nascidas fora do casamento eram permitidas a possuir índios em encomienda […] Mestizo e ilegítimo se tornaram quase sinônimos”.
80. ↑ Uma coiota era metade mestiza e metade indígena. Ruth Behar (1987, p. 45).
81. ↑ As mais mortíferas eram as minas de mercúrio, como a de Huancavelica, em que milhares de trabalhadores morreram lentamente envenenados passando por sofrimentos horríveis. Como escreve David Noble Cook (1981, p. 205-06): Os trabalhadores na mina de Huancavelica enfrentavam tanto perigos imediatos quanto a longo prazo. A derrubadas, as inundações e as quedas devido a túneis escorregadios eram ameaças cotidianas. A alimentação pobre, a ventilação inadequada nas câmaras subterrâneas e a notável diferença de temperatura entre o interior da mina e o ar rarefeito dos Andes apresentavam perigos imediatos para a saúde […] Os trabalhadores que permaneciam durante longos períodos nas minas talvez padecessem do pior de todos os destinos. Pó e finas partículas eram liberados no ar devido aos golpes das ferramentas usadas para desgastar o mineral. Os índios inalavam o pó, que continha quatro substâncias perigosas: vapores de mercúrio, arsênico, pentóxido de arsênico e cinábrio. Uma exposição prolongada […] resultava em morte. Conhecido como “mal da mina”, quando avançava era incurável. Nos casos menos severos, as gengivas se ulceravam e ficavam carcomidas […].
82. ↑ Barbara Bush (1990, p. 141) destaca que, se as escravas queriam abortar, elas, sem dúvida, sabiam como fazê-lo, já que tinham à sua disposição o conhecimento que traziam da África.

Capítulo III
O grande Calibã – A luta contra o corpo rebelde

A vida não é mais do que um movimento dos membros (…) Pois o que é o coração, senão uma mola; e os nervos, senão outras tantas cordas; e as juntas, senão outras tantas rodas, imprimindo movimento ao corpo inteiro.

Hobbes, Leviatã, 1650.

Não obstante, serei uma criatura mais nobre no preciso momento em que minhas necessidades naturais me rebaixarem à condição de Animal, meu Espirito surgirá, se elevará, e voará até o trabalho dos anjos.

Cotton Mather, Diary, 1680-1708

(…) tenha alguma piedade de mim (…) pois meus amigos são muito pobres, e minha mãe está muito doente, e eu morrerei na próxima quarta-feira pela manhã, então espero que o senhor seja bom o suficiente para dar a meus amigos uma quantia suficiente de dinheiro para que paguem o caixão e a mortalha, para que possam retirar meu corpo da árvore em que vou morrer (…) e não seja covarde (…) espero que tenha consideração pelo meu pobre corpo, considere-o como se fosse o seu, o senhor gostaria que seu próprio corpo estivesse a salvo dos cirurgiões.

Carta de Richard Tobin, condenado à morte em Londres em 1739.

Uma das condições para o desenvolvimento capitalista foi o processo que Michel Foucault definiu como “disciplinamento do corpo”, que, a meu ver, consistia em uma tentativa do Estado e da Igreja de transformar as potencialidades dos indivíduos em força de trabalho. Este capítulo examina como este processo foi concebido e mediado no debate filosófico da época e as intervenções estratégicas geradas em torno dele.

No século XVI, nas regiões da Europa Ocidental mais afetadas pela Reforma Protestante e pelo surgimento da burguesia mercantil, observa-se a emergência, em todos os campos – no palco, no púlpito, na imaginação política e filosófica – de um novo conceito de pessoa. Sua encarnação ideal é o Próspero, de Shakespeare, em A Tempestade (1612), que combina a espiritualidade celestial de Ariel e a materialidade brutal de Calibã. Não obstante, sua figura demonstra certa ansiedade sobre o equilíbrio que se havia alcançado, o que impossibilita qualquer orgulho pela posição especial do “Homem” na Ordem dos Seres.1 Ao derrotar Calibã, Próspero deve admitir que “este ser de trevas é meu”, recordando assim a sua audiência que, sendo humanos, é verdadeiramente problemático que sejamos ao mesmo tempo o anjo e a besta.

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Xilogravura do século XV. “O ataque do diabo ao homem moribundo é um tema que domina toda a tradição popular medieval” (de Alfonso M. di Nola, 1987).

No século XVII, o que permanece em Próspero como apreensão subliminar se concretiza como conflito entre a Razão e as Paixões do Corpo, o que dá um novo sentido aos clássicos temas judaico-cristãos para produzir um paradigma antropológico inovador. O resultado é a reminiscência das escaramuças medievais entre anjos e demônios pela possessão das almas que partem para o além. No entanto, o conflito é agora encenado dentro da pessoa, que é apresentada como um campo de batalha no qual existem elementos opostos em luta pela dominação. De um lado estão as “Forças da Razão”: a parcimônia, a prudência, o senso de responsabilidade, o autocontrole. De outro lado, estão os “baixos instintos do corpo”: a lascívia, o ócio, a dissipação sistemática das energias vitais que cada um possui. Este combate se passa em diferentes frentes, já que a Razão deve manter-se atenta ante os ataques do ser carnal e evitar que (nas palavras de Lutero) a “sabedoria da carne” corrompa os poderes da mente. Nos casos extremos, a pessoa se converte em um terreno de luta de todos contra todos:

Não me deixes ser nada, se dentro da bússola do meu ser não encontro a Batalha de Lepanto: as Paixões contra a Razão, a Razão contra a Fé, a Fé contra o Demônio e a minha Consciência contra todos eles. (Thomas Browne, 1928, p. 76)

Ao longo desse processo, uma mudança ocorre no campo metafórico, enquanto a representação filosófica da psicologia se apropria de imagens do estado como entidade política para trazer à luz uma paisagem habitada por “governantes” e “sujeitos rebeldes”, “multidões” e “revoltas”, “cadeias” e “ordens imperiosas” e inclusive pelo carrasco (como diz Thomas Browne) (ibidem, p. 72).2 Como veremos, este conflito entre a Razão e o Corpo, descrito pelos filósofos como um enfrentamento desenfreado entre “o melhor” e “o mais baixo”, que não pode ser atribuído somente ao gosto pelo figurativo durante o Barroco, será purificado mais tarde para favorecer uma linguagem “mais masculina”3A reforma da linguagem – tema chave na filosofia dos séculos XVI e XVII, de Bacon a Locke – era uma das principais preocupações de Joseph Glanvil, que em sua Vanity of Dogmatizing (1665), depois de proclamar sua adesão à cosmovisão cartesiana, advoga por uma linguagem adequada para descrever os entes claros e distintos (Glanvil, 1970, p.xxvi-xxx). Como resume S. Medcalf, em sua introdução ao trabalho de Glanvil, uma linguagem adequada para descrever este mundo guarda uma ampla semelhança com as matemáticas, tem palavras de grande generalidade e clareza; apresenta uma imagem do universo de acordo com sua estrutura lógica; distingue claramente entre mente e matéria, e entre o subjetivo e o objetivo e “evita a metáfora como forma de conhecer e descrever, já que a metáfora depende da suposição de que o universo não está composto de seres completamente diferentes e por isso não pode ser descrito completamente em termos positivos e distintos […]” (ibidem).

. O discurso sobre a pessoa no século XVII imagina o desenvolvimento de uma batalha no microcosmos do indivíduo que sem dúvida se fundamenta na realidade da época. Este é um aspecto do processo mais geral de reforma social, a partir do qual, já na “Era da Razão”, a burguesia emergente tentou moldar as classes de acordo com as necessidades do desenvolvimento da economia capitalista.

Na tentativa de formar um novo tipo de indivíduo, a burguesia estabeleceu esta batalha contra o corpo que se converteu em sua marca histórica. De acordo com Max Weber, a reforma do corpo está no coração da ética burguesa porque o capitalismo faz da aquisição “o objetivo final da vida”, em vez de tratá-la como meio para satisfazer nossas necessidades; para tanto, necessita que percamos o direito a qualquer forma espontânea de desfrutar a vida (Weber, 1958, p. 53). O capitalismo tenta também superar nosso “estado natural” ao romper as barreiras da natureza e ao estender o dia de trabalho para além dos limites definidos pela luz solar, dos ciclos das estações e mesmo do corpo, tal como estavam constituídos na sociedade pré-industrial.

Marx também concebe a alienação do corpo como um traço distintivo da relação entre capitalista e trabalhador. Ao transformar o trabalho em uma mercadoria, o capitalismo faz com que os trabalhadores subordinem sua atividade a uma ordem externa sobre a qual não têm controle e com a qual não podem se identificar. Deste modo, o processo de trabalho se converte em um espaço de estranhamento: o trabalhador “apenas se sente ele mesmo fora do trabalho e, no trabalho, sente-se fora de si. Está em casa quando não trabalha e, quando trabalha, não o está” (Marx, 1961, p. 72). Por outro lado, no desenvolvimento de uma economia capitalista, o trabalhador se converte (ainda que não seja formalmente) em “livre dono” de “sua” força de trabalho, que (diferente do escravo) pode colocá-la à disposição do comprador por um período limitado de tempo. Isto implica no fato de que “possa dispor livremente de sua força de trabalho” (suas energias, suas faculdades) “como de sua própria mercadoria” (Marx, 1909, T. I. 186)4. Isto também conduz a um sentido de dissociação em relação ao corpo, que vem redefinido e reduzido a um objeto com o qual a pessoa deixa de estar imediatamente identificada.

A imagem de um trabalhador que vende livremente seu trabalho, ou que entende seu corpo como um capital que deva ser entregue a quem oferecer o melhor preço, se refere a uma classe trabalhadora já moldada pela disciplina do trabalho capitalista. Contudo, é apenas na segunda metade do século XIX que se pode vislumbrar um trabalhador como este – moderado, prudente, responsável, orgulhoso de possuir um relógio (Thompson, 1964) e que considera as condições impostas pelo modo de produção capitalista como “leis da natureza” (Marx, 1909, T. I, p. 809) –, um tipo que personifica a utopia capitalista e é ponto de referência para Marx.

A situação era completamente diferente no período da acumulação primitiva, quando a burguesia emergente descobriu que a “liberação de força de trabalho” – quer dizer, a expropriação das terras comuns do campesinato – não foi suficiente para forçar os proletários despossuídos a aceitar o trabalho assalariado. À diferença do Adão de Milton, que, ao ser expulso do Jardim do Éden, caminhou alegremente para uma vida dedicada ao trabalho5“Com trabalho devo ganhar / meu pão; com dano? O ócio teria sido pior; / Meu trabalho me manterá” é a resposta de Adão aos medos de Eva, diante da perspectiva de irem-se do jardim bendito do Éden (Paradise Lost, versos 1054-56, p. 579).

, os trabalhadores e artesãos expropriados não aceitaram trabalhar por um salário de forma pacífica. A maior parte das vezes se converteram em mendigos, vagabundos e criminosos. Seria necessário um longo processo para produzir mão-de-obra disciplinada. Durante os séculos XVI e XVII, o ódio contra o trabalho assalariado era tão intenso que muitos proletários preferiam arriscar-se a terminar na forca do que a se subordinarem às novas condições de trabalho (Hill, 1975, p. 219-39).6

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Trapeira e mendigo. Os camponeses e artesãos expropriados não concordaram pacificamente em trabalhar por um salário. Mais frequentemente viraram mendigos, errantes ou criminosos. Desenho de Louis-Léopold Boilly (1761-1845).

Esta foi a primeira crise capitalista, muito mais séria que todas as crises comerciais que ameaçaram os alicerces do sistema capitalista durante a primeira fase de seu desenvolvimento7. Como é bem sabido, a resposta da burguesia foi a multiplicação das execuções; a instituição de um verdadeiro regime de terror, implementado por meio da intensificação das penas (em particular aquelas que puniam os crimes contra a propriedade); e a introdução de “leis sangrentas” contra os vagabundos com a intenção de atar os trabalhadores aos trabalhos que lhes haviam sido impostos, da mesma maneira que, em sua época, os servos estiveram fixados na terra. Só na Inglaterra, 72 mil pessoas foram enforcadas por Henrique VIII durante os trinta e oito anos de seu reinado; e o massacre continuou até finais do século XVI. Na década de 1570, entre 300 e 400 “delinquentes” foram “devorados pelas forcas em um lugar ou outro de cada ano” (Hoskins, 1977, p. 9). Apenas em Devon, setenta e quatro pessoas foram enforcadas durante 1598 (ibidem).

No entanto, a violência das classes dominantes não se limitou a reprimir os transgressores. Também apontava para uma transformação radical da pessoa, pensada para erradicar do proletariado qualquer comportamento que não conduzisse à imposição de uma disciplina de trabalho mais estrita. As dimensões deste ataque podem ser vistas na legislação social que, em meados do século XVI foi introduzida na Inglaterra e na França. Proibiram-se os jogos, em particular aqueles que, além de serem inúteis, debilitavam o sentido de responsabilidade do indivíduo e a “ética do trabalho”. Fecharam-se tabernas e banhos públicos. Estabeleceram-se castigos para a nudez e também para outras formas “improdutivas” de sexualidade e sociabilidade. Era proibido beber, praguejar e insultar.8

Em meio a este vasto processo de engenharia social, começou a tomar forma uma nova concepção e uma nova política sobre o corpo. A novidade foi o ataque ao corpo como fonte de todos os males. Este foi tão bem estudado e com paixão igual a que, na mesma época, animava a investigação dos movimentos celestes.

Por que o corpo foi tão importante para a política estatal e o discurso intelectual? Alguém pode se sentir tentada a responder que esta obsessão pelo corpo refletia o medo que o proletariado inspirava na classe dominante9). Era o mesmo medo que sentiam igualmente o burguês e o nobre, que, onde quer que fossem, nas ruas ou em suas viagens, eram assediados por uma multidão ameaçadora que implorava ajuda ou se preparava para roubá-los. Era também o mesmo medo que sentiam aqueles que dirigiam a administração do Estado, cuja consolidação era continuamente minada – mas também determinada – pela ameaça dos distúrbios e das desordens sociais.

No entanto, isso não era tudo. Não se pode esquecer que o proletariado mendicante e revoltoso – que forçava os ricos a viajar em charretes para escapar de seus ataques ou a ir para a cama com duas pistolas de baixo do travesseiro – foi o mesmo sujeito social que aparecia, cada vez mais, como fonte de toda a riqueza. Era o mesmo proletariado sobre o qual os mercantilistas, os primeiros economistas da sociedade capitalista, nunca se cansaram de repetir (ainda que não sem o duvidar) que “quanto mais, melhor”, lamentando frequentemente a quantidade de corpos desperdiçados na forca10).

Muitas décadas se passaram antes que o conceito de valor do trabalho entrasse no panteão do pensamento econômico. No entanto, o fato de o trabalho (a “indústria”), mais do que a terra ou qualquer outra “riqueza natural”, ter se convertido na fonte principal de acumulação foi uma verdade bem compreendida em um tempo no qual o baixo nível de desenvolvimento tecnológico fez dos seres humanos o recurso produtivo mais importante. Como disse Thomas Mun (filho de um comerciante londrino e porta-voz da doutrina mercantilista):

[…] sabemos que nossas próprias mercadorias não nos rendem tanto lucro quanto nossa indústria […] Pois o ferro não é de grande valor se está nas minas, quando comparado com o uso e as vantagens que este aporta quando é extraído, testado, transportado, comprado, vendido, fundido em armamento, mosquetes […] forjado em âncoras, parafusos, palhetas, pregos e coisas similares, para ser usado em embarcações, casas, carroças, carros, arados e outros instrumentos de cultivo (Abbott, 1946, p. 2)

Até mesmo o Próspero de Shakespeare insiste neste feito econômico fundamental em um breve solilóquio discurso sobre o valor do trabalho, que ele direciona a Miranda após ela ter manifestado o desgosto absoluto que lhe produzia Calibã:

Contudo,

Não podemos dispensá-lo. Acende-nos o fogo,

Traz-nos lenha e nos presta serviços variados

De muita utilidade.

Shakespeare, A Tempestade, Ato I, Cena 2.

O corpo, então, passou ao primeiro plano das políticas sociais porque aparecia não apenas como uma besta inerte diante dos estímulos do trabalho, senão como um recipiente de força de trabalho, um meio de produção, a máquina de trabalho primária. Esta é a razão pela qual, nas estratégias que adotou o Estado com relação ao corpo, encontramos muita violência, mas também muito interesse; e o estudo dos movimentos e propriedades do corpo se converteu no ponto de partida para boa parte da especulação teórica da época – já utilizada, como por Descartes, para afirmar a imortalidade da alma; ou para investigar, como por Hobbes, as premissas da governabilidade social.

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A lição de anatomia na Universidade de Pádua. O teatro de anatomia revelou ao público um corpo desencantado e profanado. In De Fasciculo de Medicina, Veneza (1494).

Efetivamente, uma das principais preocupações da nova filosofia mecânica era a mecânica do corpo, cujos elementos constitutivos – desde a circulação do sangue até a dinâmica da fala, desde os efeitos das sensações até os movimentos voluntários e involuntários – foram separados e classificados em todos seus componentes e possibilidades. O Tratado do Homem (publicado em 1664)11 é um verdadeiro manual anatômico, ainda que a anatomia que realiza seja tanto psicológica quanto física. Uma tarefa fundamental do projeto de Descartes foi instituir uma divisão ontológica entre um domínio considerado puramente mental e outro puramente físico. Cada costume, atitude e sensação é, desta maneira, definida; seus limites são marcados, suas possibilidades equilibradas com tal meticulosidade que se pode ter a impressão de que o “livro da natureza humana” foi aberto pela primeira vez ou, de forma mais provável, que uma nova terra foi descoberta e os conquistadores estão se apressando em trazer um mapa de suas veredas, compilar a lista de seus recursos naturais, avaliar suas vantagens e desvantagens.

Neste aspecto, Hobbes e Descartes foram representantes de sua época. O cuidado que exibem na exploração dos detalhes da realidade corporal e psicológica reaparece na análise puritana das inclinações e talentos individuais12. Este último selou o começo de uma psicologia burguesa que, neste caso, estudava explicitamente todas as faculdades humanas desde o ponto de vista de seu potencial para o trabalho e sua contribuição para a disciplina. Outro signo da nova curiosidade pelo corpo e “de uma mudança com relação às formas de ser e os costumes de épocas anteriores que permitiram que o corpo pudesse se abrir” (segundo as palavras de um médico do século XVII), foi o desenvolvimento da anatomia como disciplina científica, depois de sua relegação à obscuridade intelectual durante a Idade Média (Wightman, 1972, p. 90-9; Galzigna, 1978).

Ao mesmo tempo que o corpo aparecia como o principal protagonista da cena filosófica e política, um aspecto surpreendente destas investigações foi a concepção degradada que se formara dele. O “teatro anatômico”13 expõe à vista pública um corpo desencantado e profanado, que apenas no princípio pode ser concebido como a morada da alma e que, em troca, é tratado como uma realidade separada (Galzigna, 1978, p. 163-64)14. Aos olhos do anatomista, o corpo é uma fábrica, tal qual mostra o título fundamental de Andrea Vesalius sobre seu trabalho da “indústria de dissecação”: De humani corporis fabrica (1543). Na filosofia mecanicista se descreve o corpo por analogia com a máquina, com frequência colocando a ênfase em sua inércia. O corpo é concebido como matéria bruta, completamente divorciada de qualquer qualidade racional: não sabe, não deseja, não sente. O corpo é puramente uma “coleção de membros” disse Descartes no seu Discurso do método de 1634 (1973, Vol. I, p. 152). Nicolás Malebrance, em Entretiens sur la métaphysique, sur la religion et sur la mort Diálogos sobre a metafísica, a religião e a morte (1688) faz eco disso e formula a pergunta decisiva : “Pode o corpo pensar?”; para responder imediatamente: “Não, sem dúvida alguma, pois todas as modificações de tal extensão consistem apenas em percepções, raciocínio, prazeres, desejos, sentimentos, em uma palavra, pensamentos” (Popkin, 1966, p. 280). Também para Hobbes, o corpo é um conglomerado de movimentos mecânicos que, ao necessitar de poder autônomo, opera a partir de uma causalidade externa, em um jogo de atrações e aversões onde tudo está regulado como em um autômato (Leviatã, Parte I, Capítulo VI).

No entanto, o que sustenta Michel Foucault sobre a filosofia mecanicista é correto, igualmente ao que afirma com relação às disciplinas sociais dos séculos XVII e XVIII (Foucault, 1977, p. 137). Neste período, encontramos uma perspectiva distinta do ascetismo medieval, onde a degradação do corpo tinha uma função puramente negativa, que buscava estabelecer a natureza temporal e ilusória dos prazeres terrenos e consequentemente a necessidade de renunciar ao corpo mesmo.

Na filosofia mecanicista se percebe um novo espírito burguês, que calcula, classifica, faz distinções e degrada o corpo só para racionalizar suas faculdades, o que aponta não apenas para intensificar sua sujeição, mas também para maximizar sua utilidade social (ibidem, p. 137-38). Longe de renunciar ao corpo, os teóricos mecanicistas tratavam de conceituá-lo, de tal forma que suas operações se fizessem inteligíveis e controláveis. Daí vem o orgulho (mais do que comiseração) com o qual Descartes insiste que “esta máquina” (como ele chama o corpo de maneira persistente no Tratado do Homem) é apenas um autômato robô e que sua morte não deve ser mais lamentada do que a quebra de uma ferramenta.15

Certamente, nem Hobbes nem Descartes dedicaram muita atenção aos assuntos econômicos e seria absurdo ler em suas filosofias as preocupações cotidianas dos comerciantes ingleses e holandeses. No entanto, não podemos evitar observar as importantes contribuições que suas especulações em torno da natureza humana fizeram à aparição de uma ciência capitalista do trabalho. A concepção de que o corpo era algo mecânico, vazio de qualquer teleologia intrínseca – as “virtudes ocultas” atribuídas ao corpo tanto pela magia natural, quanto pelas superstições populares da época – pretendia fazer inteligível a possibilidade de subordiná-lo a um processo de trabalho que dependia cada vez mais de formas de comportamento uniformes e previsíveis.

Uma vez que seus mecanismos foram desconstruídos e ele próprio foi reduzido a uma ferramenta, o corpo pode ser aberto à manipulação infinita de seus poderes e possibilidades. Fez-se possível investigar os vícios e os limites da imaginação, as virtudes do hábito, os usos do medo, como certas paixões podem ser evitadas ou neutralizadas e como podem ser utilizadas de forma mais racional. Neste sentido, a filosofia mecanicista contribuiu para incrementar o controle da classe dominante sobre o mundo natural, o que constitui o primeiro passo e também o mais importante, no controle sobre a natureza humana. Assim como a natureza, reduzida à “Grande Máquina” pode ser conquistada e (segundo as palavras de Bacon) “penetrada em todos seus segredos”, da mesma maneira o corpo, esvaziado de suas forças ocultas, pode ser “capturado em um sistema de sujeição”, onde seu comportamento pode ser calculado, organizado, pensado tecnicamente e “investido de relações de poder” (Foucault, 1977, p. 30).

Para Descartes existe uma identidade entre o corpo e a natureza, já que ambos estão compostos das mesmas partículas e ambos atuam obedecendo a leis físicas uniformes postas em marcha pela vontade de Deus. Desta maneira, o corpo cartesiano não apenas se empobrece e perde toda virtude mágica; na grande divisória ontológica que institui Descartes entre a essência da humanidade e suas condições acidentais, o corpo está divorciado da pessoa, está literalmente desumanizado. “Não sou este corpo”, insiste Descartes ao longo de suas Meditações (1641). E, efetivamente, em sua filosofia, o corpo conflui com um continuum mecânico de matéria que a vontade pode contemplar, agora sem travas, como objeto próprio de dominação.

Como veremos, Descartes e Hobbes expressam dois projetos diferentes com a realidade corporal. No caso de Descartes, a redução do corpo à matéria mecânica faz possível o desenvolvimento de mecanismos de autocontrole que sujeitam o corpo à vontade. Para Hobbes, em contraste, a mecanização do corpo serve de justificação para a submissão total do indivíduo ao poder do Estado. Em ambos, no entanto, o resultado é uma redefinição dos atributos corporais que, ao menos idealmente, fazem do corpo apropriado para a regularidade e o automatismo exigido pela disciplina do trabalho capitalista16. Ponho a ênfase no “idealmente” porque, nos anos em que Descartes e Hobbes escreviam seus tratados, a classe dominante tinha que se confrontar com uma corporalidade que era muito diferente da que aparecia nas prefigurações destes filósofos.

De fato, é difícil reconciliar os corpos insubordinados que rondam a literatura social do “século de ferro” com as imagens de relógios por meio dos quais Descartes e Hobbes representavam o corpo em seus trabalhos. Não obstante, ainda que aparentemente distanciadas dos assuntos cotidianos da luta de classes, é nas especulações destes filósofos que se encontram as primeiras conceitualizações da transformação do corpo em máquina de trabalho, o que constitui uma das principais tarefas da acumulação primitiva. Quando, por exemplo, Hobbes declara que “o coração [é] apenas uma mola […] e as articulações apenas muitas rodas”, percebemos em suas palavras um espírito burguês, no qual não apenas o trabalho é a condição e o motivo de existência do corpo, mas que também sente a necessidade de transformar todos os poderes corporais em força de trabalho.

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A concepção do corpo como um receptáculo de poderes mágicos derivava, em grande medida, da crença em uma correspondência entre o microcosmo do indivíduo e o macrocosmo do mundo celestial, como ilustra esta imagem do “homem do zodíaco” do século XVI.

Este projeto é chave para compreender porque tanta especulação filosófica e religiosa dos séculos XVI e XVII está composta de uma verdadeira vivissecção do corpo humano, por meio da qual se decidia quais de suas propriedades poderiam viver e quais, em troca, deveriam morrer. Tratava-se de uma alquimia social que não convertia metais correntes em ouro, mas sim poderes corporais em força de trabalho. A mesma relação que o capitalismo introduziu entre a terra e o trabalho estava começando a tomar o controle sobre a relação entre o corpo e o trabalho. Enquanto o trabalho começava a ser considerado como uma força dinâmica capaz de um desenvolvimento infinito, o corpo era visto como matéria inerte e estéril que apenas poderia se mover numa condição similar à relação que Newton estabelecera para a massa e o movimento, na qual a massa tendia à inércia a menos que se aplicasse sobre ela uma força. Do mesmo modo que a terra, o corpo tinha que ser cultivado e, antes de mais nada, decomposto em partes, de tal maneira que pudesse liberar seus tesouros escondidos. Pois, enquanto o corpo é a condição de existência da força de trabalho, é também seu limite, já que constitui o principal elemento de resistência à sua utilização. Não era suficiente, então, decidir que em si mesmo o corpo não tinha valor. O corpo tinha que viver para que a força de trabalho pudesse viver.

O que morreu foi o conceito do corpo como receptáculo de poderes mágicos que havia predominado no mundo medieval. Na realidade, este conceito foi destruído. Por trás da nova filosofia encontramos a vasta iniciativa do Estado, a partir da qual o que os filósofos classificaram como “irracional” foi considerado crime. Esta intervenção estatal foi o “subtexto” necessário da filosofia mecanicista. O “saber” apenas pode converter-se em “poder” se conseguir fazer cumprir suas prescrições. Isto significa que o corpo mecânico, o corpo-máquina, não poderia ter se convertido em modelo de comportamento social sem a destruição, por parte do Estado, de uma ampla gama de crenças pré-capitalistas, práticas e sujeitos sociais cuja existência contradizia a regulação do comportamento corporal prometido pela filosofia mecanicista. É por isso que, em plena “Idade da Razão” – a idade do ceticismo e da dúvida metódica – encontramos um ataque feroz ao corpo, firmemente apoiado por muitos dos que subscreviam a nova doutrina.

Assim é como devemos ler o ataque contra a bruxaria e contra a visão mágica do mundo que, apesar dos esforços da Igreja, seguia predominante em escala popular durante a Idade Média. O substrato mágico formava parte de uma concepção animista da natureza que não admitia nenhuma separação entre a matéria e o espírito, e deste modo imaginava o cosmos como um organismo vivo, povoado de forças ocultas, de onde cada elemento estava em relação “favorável” com o resto. De acordo com esta perspectiva, na qual a natureza era vista como um universo de signos e sinais marcados por afinidades invisíveis que tinham que ser decifradas (Foucault 1970, p. 26-7), cada elemento – as ervas, as plantas, os metais e a maior parte do corpo humano – escondia virtudes e poderes que lhe eram peculiares. É por isso que existia uma variedade de práticas desenhadas para se apropriar dos segredos da natureza e torcer seus poderes de acordo com a vontade humana. Desde a quiromancia até a adivinhação, desde o uso de feitiços até a cura receptiva, a magia abria uma grande quantidade de possibilidades. Havia feitiços para ganhar jogos de cartas, para interpretar instrumentos desconhecidos, para se tornar invisível, para conquistar o amor de alguém, para ganhar imunidade em uma guerra, para fazer as crianças dormirem (Thomas, 1971; Wilson, 2000).

A erradicação destas práticas era uma condição necessária para a racionalização capitalista do trabalho, dado que a magia aparecia como uma forma ilícita de poder e um instrumento para obter o desejado sem trabalhar, quer dizer, aparecia como a prática de uma forma de rechaço ao trabalho. “A magia mata a indústria”, se lamentava Francis Bacon, admitindo que nada parecia mais repulsivo que a suposição de que alguém poderia alcançar coisas com um punhado de recurso inúteis e não com o suor de sua própria testa (Bacon, 1870, p. 381)

Por outro lado, a magia se apoiava em uma concepção qualitativa do espaço e do tempo que impedia a normalização do processo de trabalho. Como podiam os novos empresários impor hábitos repetitivos a um proletariado ancorado na crença de que há dias de sorte e dias sem sorte, quer dizer, dias nos quais se pode viajar e outros nos quais não se deve sair de casa, dias bons para casar-se e outros nos quais qualquer iniciativa deve ser prudentemente evitada? Uma concepção do cosmos que atribuía poderes especiais ao indivíduo – o olhar magnético, o poder de tornar-se invisível, de abandonar o corpo, de submeter a vontade dos outros por meio de encantos mágicos – era igualmente incompatível com a disciplina do trabalho capitalista.

Não seria frutífero investigar se estes poderes eram reais ou imaginários. Pode-se dizer-se que todas as sociedades pré-capitalistas acreditaram neles e que, em tempos recentes, fomos testemunhas de uma revalorização de práticas que, na época a que nos referimos, tivessem sido condenadas por bruxaria. Este é, por exemplo, o caso do crescente interesse pela parapsicologia e o biofeedback, que se aplicam cada vez mais, inclusive na medicina convencional. O renovado interesse pelas crenças mágicas é possível hoje porque já não representam uma ameaça social.

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Frontispício da primeira edição do Doctor Faustus (1604) de Christopher Marlowe, que apresenta o mago conjurando o diabo desde o espaço protegido de seu círculo mágico.

A mecanização do corpo é até tal ponto constitutiva do indivíduo que, ao menos nos países industrializados, a crença em forças ocultas não coloca em perigo a uniformidade do comportamento social. Também se admite que a astrologia reapareça, com a certeza de que até mesmo o consumidor mais assíduo de cartas astrais consultará automaticamente o relógio antes de ir para o trabalho.

Sem dúvida esta não era a única opção para a classe dominante do século XVII que, nesta fase inicial e experimental do desenvolvimento capitalista, não havia alcançado o controle social necessário para neutralizar a prática da magia, e que tampouco podia integrar funcionalmente a magia na organização da vida social. Desde o seu ponto de vista, pouco importava se os poderes que as pessoas diziam ter, ou aspiravam ter, eram reais ou não, pois a mera existência de crenças mágicas era uma fonte de insubordinação social.

Tomemos, por exemplo, a difundida crença na possibilidade de encontrar tesouros escondidos com a ajuda de feitiços mágicos (Thomas, 1971, p. 234-37). Esta crença era certamente um obstáculo à instauração de uma disciplina do trabalho rigorosa e cuja aceitação fora inerente. Igualmente ameaçador foi o uso que as classes baixas fizeram das profecias que, particularmente durante a Revolução Inglesa (como já o haviam feito na Idade Média), serviram para formular um programa de luta (Elton, 1972, p. 142 e seg.). As profecias não são simplesmente a expressão de uma resignação fatalista. Historicamente têm sido um meio pelo qual os “pobres” têm expressado seus desejos com o fim de dotar de legitimidade seus planos e motivar-se para atuar. Hobbes reconheceu isto quando advertiu que “Não há nada que […] dirija tão bem os homens em suas deliberações como a previsão das consequências de suas ações; a profecia é muitas vezes a causa principal dos acontecimentos prognosticados” (Hobbes, “Behemot”, Works VI, p. 399).

Contudo, além dos perigos que apresentava a magia, a burguesia tinha que combater seu poder porque debilitava o princípio de responsabilidade individual, já que a magia relacionava as causas da ação social com as estrelas, o que estava fora de seu alcance e seu controle. Deste modo, mediante a racionalização do espaço e do tempo que caracterizou a especulação filosófica dos séculos XVI e XVII, a profecia foi substituída pelo cálculo de probabilidades, cuja vantagem, desde o ponto de vista capitalista, é que o futuro pode ser antecipado apenas enquanto se suponha que o futuro será como o passado e que nenhuma grande mudança, nenhuma revolução, alterará as condições nas quais os indivíduos tomam decisões. De maneira similar, a burguesia teve que combater a suposição de que é possível estar em dois lugares ao mesmo tempo, a fixação do corpo no espaço e no tempo, quer dizer, a identificação espaço-temporal do indivíduo¸ é uma condição essencial para a regularidade do processo de trabalho17.

A incompatibilidade da magia com a disciplina do trabalho capitalista e com a exigência de controle social é uma das razões pelas quais o Estado lançou uma campanha de terror contra a magia – um terror aplaudido sem reservas por muitos dos que hoje em dia são considerados fundadores do racionalismo científico: Jean Bodin, Mersenne, o filósofo mecanicista e membro da Royal Society, Richard Boyle, e o mestre de Newton, Isaac Barrow18. Até mesmo o materialista Hobbes, mantendo a distância, deu sua aprovação. “Quanto às bruxas”, escreveu (1963, p. 67), “não creio que sua bruxaria contenha em si nenhum poder efetivo: mas é justo que as castiguem pela falsa crença que têm de ser a causa do malefício e, ademais, por seu propósito de fazê-lo se puderem”. Defendeu que se se eliminassem estas superstições, “os homens estariam mais dispostos do que estão à obediência cívica” (ibidem).

Hobbes estava bem assessorado. As fogueiras nas quais as bruxas e outros praticantes da magia morreram, e as câmaras nas quais se executaram suas torturas, foram um laboratório no qual tomou forma e sentido a disciplina social, e onde muitos conhecimentos sobre o corpo foram adquiridos. Com as fogueiras se eliminaram aquelas superstições que faziam obstáculo à transformação do corpo individual e social em um conjunto de mecanismos previsíveis e controláveis. E foi aí, novamente, onde nasceu o uso científico da tortura, pois foram necessários o sangue e a tortura para “criar um animal” capaz de um comportamento regular, homogêneo e uniforme, marcado a fogo com o sinal das novas regras (Nietzsche, 1965, p. 189-90).

Um elemento significativo, neste contexto, foi a condenação do aborto e da contracepção como um maleficium, o que deixou o corpo feminino – o útero foi reduzido a uma máquina para a reprodução do trabalho – nas mãos do Estado e da profissão médica. Voltarei a este ponto no capítulo sobre a caça às bruxas, no qual eu sustento que a perseguição das bruxas foi o ponto culminante da intervenção estatal contra o corpo proletário na era moderna.

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A câmara de tortura. Gravura de 1809 por Manet, in Joseph Lavalee, Histoires des Inquisitions Religieuses d’Italie, d’Espagne et de Portugal.

É necessário insistir que apesar da violência empregada pelo Estado, o disciplinamento do proletariado continuou lentamente ao longo do século XVII, assim como durante o século XVIII, frente a uma forte resistência que nem sequer o medo da execução pôde superar. Um exemplo emblemático desta resistência é analisado por Peter Linebaugh em “The Tyburn Riots Against the Surgeons” “As revoltas de Tyburn contra os cirurgiões”. Segundo Linebaugh, no início do século XVIII, durante uma execução em Londres, os familiares e amigos do condenado lutaram pra evitar que os assistentes dos cirurgiões se apropriassem do cadáver com o fim de usá-lo em estudos anatômicos (Linebaugh, 1975). A batalha foi feroz, porque o medo de ser dissecado não era menor que o medo da morte. A dissecação eliminava a possibilidade de que o condenado pudesse recuperar os sentidos após um enforcamento mal feito, tal e como ocorria frequentemente na Inglaterra do século XVIII (ibidem, p. 102-04). Entre a população se difundiu uma concepção mágica do corpo segundo a qual este continuava vivo depois da morte e esta o enriquecia com novos poderes. Acreditava-se que os mortos tinham o poder de “regressar” e levar a cabo sua última vingança contra os vivos. Acreditava-se também que um cadáver tinha virtudes curativas. Deste modo, multidões de enfermos se reuniam ao redor das forcas, esperando dos membros dos mortos efeitos tão milagrosos quanto aqueles atribuídos pelo toque do rei (ibidem, p. 109-10).

A dissecação aparecia, assim, como uma infâmia maior, uma segunda morte, ainda mais definitiva, e os condenados passavam seus últimos dias assegurando-se de que seu corpo não seria abandonado nas mãos dos cirurgiões. A batalha, que se dava aos pés da forca, colocava à mostra tanto a violência predominante na racionalização científica do mundo como o choque de dois conceitos opostos do corpo. Por um lado, temos o conceito do corpo ao qual se confere poderes depois da morte; o corpo não inspira repulsão e não é tratado como algo apodrecido ou alheio. Por outro, o corpo é considerado morto ainda que, todavia, esteja vivo, já que é concebido como um instrumento mecânico que pode ser desmantelado como se se tratasse de uma máquina. “Nas forcas, junto à cruz das ruas Tyburn e Edware”, escreve Peter Linebaugh, “encontramos a conexão entre a história dos pobres de Londres e a história da ciência inglesa”. Esta não foi uma coincidência; tampouco foi uma coincidência que o progresso da anatomia dependesse da capacidade dos cirurgiões para arrebatar os corpos pendurados em Tyburn19. O curso da racionalização científica estava intimamente ligado à tentativa, por parte do Estado, de impor seu controle sobre uma força de trabalho que não estava disposta a colaborar.

Esta tentativa foi ainda mais importante, como determinante das novas práticas com relação ao corpo, que o desenvolvimento da tecnologia. Tal como sustenta David Dickson, a conexão entre a nova visão científica do mundo e a crescente mecanização da produção apenas pode se sustentar como uma metáfora (Dickson, 1979, p. 24). Certamente, o relógio e os mecanismos automáticos que tanto intrigavam Descartes e seus contemporâneos (por exemplo, as estátuas movidas hidraulicamente) eram modelos para uma nova ciência e para as especulações da filosofia mecanicista sobre os movimentos do corpo. Certo é também que, a partir do século XVII, as analogias anatômicas provinham das oficinas de produção: os braços eram considerados como alavancas, o coração como uma bomba, os pulmões como fole, os olhos como lentes, o punho como um martelo (Munford, 1962, p. 32). No entanto, estas metáforas mecânicas não refletiam a influência da tecnologia como tal, senão o feito de que a máquina estava se convertendo no modelo de comportamento social.

A força inspiradora da necessidade de controle social é evidente até mesmo no campo da astronomia. Um exemplo clássico é o de Edmond Halley (o secretário da Royal Society) que, concomitantemente à aparição em 1695 do cometa que logo receberia seu nome, organizou clubes em toda Inglaterra para demonstrar a previsibilidade dos fenômenos naturais e dissipar a crença popular de que os cometas anunciavam as desordens sociais. O caminho da racionalização científica confluiu com o disciplinamento do corpo social de maneira ainda mais evidente nas ciências sociais. Podemos ver, efetivamente, que seu desenvolvimento teve como premissas a homogeneização do comportamento social e a construção de um indivíduo prototípico ao que se esperava que todos se ajustassem. Nos termos de Marx, este é um “indivíduo abstrato”, construído de maneira uniforme, como uma média social, e sujeito a uma descaracterização radical, de tal modo que todas as suas faculdades apenas podem ser apreendidas a partir de seus aspectos mais normalizados. A construção deste novo indivíduo foi a base para o desenvolvimento do que William Petty chamaria mais tarde (usando a terminologia hobbesiana) de Aritmética Política – uma nova ciência que estudaria cada forma de comportamento social em termos de Números, Pesos e Medidas. O projeto de Petty se realizou com o desenvolvimento da estatística e da demografia (Wilson, 1966; Cullen, 1975) que efetuam sobre o corpo social as mesmas operações que a anatomia efetua sobre o corpo individual: dissecação à população e estudam seus movimentos – das taxas de natalidade às taxas de mortalidade, das estruturas geracionais até as ocupacionais – em seus aspectos mais massificados e regulares. Também é possível observar que, desde o ponto de vista do processo de abstração pela qual passa o indivíduo na transição ao capitalismo, o desenvolvimento da “máquina humana” foi o principal salto tecnológico, o passo mais importante no desenvolvimento das forças produtivas que teve lugar no período de acumulação primitiva. Podemos observar, em outras palavras, que a primeira máquina desenvolvida pelo capitalismo foi o corpo humano e não a máquina à vapor, nem tampouco o relógio.

Contudo, se o corpo é uma máquina, surge imediatamente um problema: como fazê-lo trabalhar? Das teorias da filosofia mecânica derivam dois modelos diferentes de governo do corpo. De um lado, temos o modelo cartesiano que, a partir da suposição de um corpo puramente mecânico, postula a possibilidade de que no indivíduo se desenvolvam mecanismos de autodisciplina, autocontrole (self-management) e autorregulação que tornem possíveis as relações de trabalho voluntárias e o governo baseado no consentimento. De outro lado, está o modelo hobbesiano que, ao negar a possibilidade de uma razão livre do corpo, externaliza as funções de mando, consignando-as à autoridade absoluta do Estado.

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Um exemplo revelador na nova concepção mecânica do corpo nesta xilogravura alemã do século XVI, na qual um camponês é representado como nada mais do que um meio de produção: seu corpo composto inteiramente de utensílios agrícolas.

O desenvolvimento de uma teoria do autocontrole, a partir da mecanização do corpo, é o centro de atenção da filosofia de Descartes, quem (recordemos) não completou sua formação intelectual na França do absolutismo monárquico e sim na Holanda burguesa, eleita como morada na medida em que combinava mais com seu espírito. As doutrinas de Descartes possuem um duplo objetivo: negar que o comportamento humano possa ver-se influenciado por fatores externos (tais como as estrelas ou as inteligências celestiais) e liberar a lama de qualquer condicionamento corporal, fazendo-a capaz assim de exercer uma soberania ilimitada sobre o corpo.

Descartes acreditava que podia levar a cabo ambas as tarefas a partir da demonstração da natureza mecânica do comportamento animal. Nada, dizia em seu Le Monde (1633) O Mundo, causa mais erros do que a crença de que os animais têm alma como nós. Por isso, quando preparava seu Tratado do Homem, dedicou muitos meses a estudar a anatomia de órgãos dos animais; toda manhã ia ao matadouro para observar o corte das bestas.20 Fez, inclusive, muitas vivissecções, consolado possivelmente por sua crença de que, tratando-se apenas de seres inferiores “despojados de Razão”, os animais que ele dissecava não podiam sentir nenhuma dor (Rosenfield, 1968, p. 8)21.

Poder demonstrar a brutalidade dos animais era fundamental para Descartes; porque ele estava convencido de que poderia encontrar aí a resposta para suas perguntas sobre a localização, a natureza e o alcance do poder que controlava a conduta humana. Acreditava que em um animal dissecado poderia encontrar a prova de que o corpo só é capaz de realizar ações mecânicas e involuntárias; e que, portanto, o corpo não é constitutivo da pessoa; a essência humana reside, então, em faculdades puramente imateriais. Para Descartes o corpo humano é, também, um autômato, mas o que diferencia o “homem” da besta e confere a “ele” domínio sobre o mundo circundante é a presença do pensamento. Deste modo, a alma, que Descartes desloca do cosmos e da esfera da corporalidade, retorna ao centro de sua filosofia dotada de um poder infinito na forma de razão e vontade individuais.

Situado em um mundo sem alma e em um corpo máquina, o homem cartesiano podia então, como Próspero, romper sua varinha mágica para se converter não apenas no responsável por seus atos, mas também, aparentemente, no centro de todos os poderes. Ao se dissociar de seu corpo, o eu racional se desvinculava certamente de sua realidade corpórea e da natureza. Sua solidão, sem dúvida, seria a de um rei: no modelo cartesiano de pessoa não há um dualismo igualitário entre a cabeça pensante e o corpo máquina, há apenas uma relação de senhor/escravo, já que a tarefa principal da vontade é dominar o corpo e o mundo natural. No modelo cartesiano da pessoa se vê, então, a mesma centralização das funções de mando que neste mesmo período estava se dando no Estado: assim como a tarefa do Estado era governar o corpo social, na nova subjetividade a mente se converteu em soberana.

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J. Case, Compendium Anatomicum (1696). Em contraste com o “homem mecânico” há esta imagem do “homem vegetal”, na qual os vasos sanguíneos são vistos como ramos, crescendo a partir do corpo humano.

Descartes reconhece que a supremacia da mente sobre o corpo não se alcança facilmente, já que a razão deve afrontar suas contradições internas. Assim, em As paixões da alma (1650), ele nos apresenta a perspectiva de uma batalha constante entre as faculdades baixas e altas da alma que ele descreve quase em termos militares, apelando para a nossa necessidade de ser valentes e obter as armas adequadas para resistir aos ataques de nossas paixões. Devemos estar preparados para derrotas temporais, pois talvez nossa vontade não seja sempre capaz de mudar ou deter nossas paixões. Pode-se, no entanto, neutralizá-las desviando sua atenção para outra coisa, ou pode-se restringir os movimentos do corpo que elas provocam no corpo. Pode, em outras palavras, evitar que as paixões se convertam em ações (Descartes, 1973, Vol. I, p. 354-55).

Com a instituição de uma relação hierárquica entre a mente e o corpo, Descartes desenvolveu as premissas teóricas para a disciplina do trabalho requerida para o desenvolvimento da economia capitalista. A supremacia da mente sobre o corpo implica que a vontade pode (em princípio) controlar as necessidades, as reações e os reflexos do corpo; que pode impor uma ordem regular sobre suas funções vitais e forçar o corpo a trabalhar de acordo com especificações externas, independentemente de seus desejos.

Ainda mais importante é que a supremacia da vontade permite a interiorização dos mecanismos de poder. Por isso, a contrapartida da mecanização do corpo é o desenvolvimento da Razão como juiz, inquisidor, gerente (manager) e administrador. Aqui encontramos as origens da subjetividade burguesa baseada no autocontrole (self-management), a propriedade de si, a lei e a responsabilidade, com os corolários da memória e da identidade. Aqui encontramos também as origens dessa proliferação de “micropoderes” que Michel Foucault descreveu em sua crítica do modelo jurídico-discursivo do Poder (Foucault, 1977). Sem dúvida, o modelo cartesiano mostra que o Poder pode ser descentralizado, difundido através do corpo social apenas na medida em que volta a centrar-se na pessoa, que é então reorganizada como um micro Estado. Em outras palavras, ao difundir-se, o Poder não perde sua força – quer dizer, seu conteúdo e seus propósitos – senão que simplesmente adquire a colaboração do Eu em sua ascensão.

Dentro deste contexto, deve considerar-se a tese proposta por Brian Easlea: o principal benefício que o dualismo cartesiano ofereceu à classe capitalista foi a defesa cristã da imortalidade da alma e a possibilidade de derrotar o ateísmo implícito na magia natural, que estava carregada de implicações subversivas (Easlea, 1980, p. 132 e seg.). Para apoiar esta perspectiva, Easlea sustenta que a defesa da religião foi uma questão central no cartesianismo, que, particularmente em sua versão inglesa, nunca esqueceu que “sem espírito não há Deus; nem Bispo, nem Rei” (ibidem, p. 202). O argumento de Easlea é atrativo; sua insistência nos elementos “reacionários” do pensamento de Descartes fazem que seja possível que responda às perguntas que ele mesmo formula: Porque o controle do cartesianismo na Europa foi tão forte que, inclusive depois que a física newtoniana dissipara a crença em um mundo natural, carente de poderes ocultos, e mesmo depois do advento da tolerância religiosa, continuará dando forma à visão dominante do mundo? Em minha opinião, a popularidade do cartesianismo entre as classes médias e altas estava diretamente relacionada com o programa de domínio de si promovido pela filosofia de Descartes. Em suas implicações sociais, este programa foi tão importante para a elite contemporânea a Descartes que a relação hegemônica entre os seres humanos e a natureza se legitimou a partir do dualismo cartesiano.

O desenvolvimento do autocontrole (isto é, do domínio de si, do desenvolvimento próprio) se tornou um requisito fundamental em um sistema socioeconômico capitalista no qual se pressupunha que cada um fosse proprietário de si mesmo, o que se converteu em fundamento das relações sociais, e que a disciplina já não dependia exclusivamente da coerção externa. O significado social da filosofia cartesiana recaia, em parte, no fato de que provia uma justificação intelectual. Deste modo, a teoria de Descartes sobre o autocontrole derrota, mas também recupera, o lado ativo da magia natural. Deste modo, substitui o poder imprevisível do mago (construído a partir da manipulação sutil das influências e correspondências astrais) por um poder muito mais rentável – um poder para o qual nenhuma alma tem que ser confiscada –, gerado apenas a partir da administração e da dominação dos corpos de outros seres. Não podemos dizer, então, como disse Easlea (repetindo uma crítica formulada por Leibniz), que o cartesianismo não pode traduzir seus princípios em um conjunto de regulações práticas, quer dizer, que não pode demonstrar aos filósofos – sobretudo aos comerciantes e fabricantes – como poderiam beneficiar-se com ele em sua tentativa de controlar a matéria do mundo (ibidem, p. 151).

Se o cartesianismo falhou ao dar uma tradução tecnológica a seus preceitos, proveu no entanto informações valiosas em relação ao desenvolvimento da “tecnologia humana”. Sua compreensão da dinâmica do autocontrole levaria à construção de um novo modelo de pessoa, na qual o indivíduo funcionava ao mesmo tempo como senhor e como escravo. Como interpretava tão bem os requerimentos da disciplina do trabalho capitalista, no final do século XVII a doutrina de Descartes já havia se difundido pela Europa e sobrevivido inclusive à chegada da biologia vitalista e à crescente obsolescência do paradigma mecanicista.

As razões do triunfo de Descartes se veem com maior clareza quando comparamos sua explicação de pessoa com a de Thomas Hobbes, seu rival inglês. O monismo biológico de Hobbes rechaçava o postulado de uma mente imaterial ou alma, que havia constituído a base do conceito cartesiano de pessoa e, com isso, a suposição cartesiana de que a vontade humana pode se libertar do determinismo corpóreo e instintivo22. Para Hobbes, o comportamento humano era um conglomerado de ações reflexas que seguiam leis naturais precisas e obrigavam ao indivíduo a lutar incessantemente pelo poder e pela dominação sobre outros (1963, p. 141 e seg.). Daí a guerra de todos contra todos (em um hipotético estado de natureza), e a necessidade de um poder absoluto que garantisse, por meio do medo e do castigo, a sobrevivência do indivíduo na sociedade.

As leis da natureza (tais como as da justiça, equidade, modéstia, piedade e, em definitivo, faça aos outros o que quer que façam por você) são por si mesmas – quando não existe o temor a um determinado poder que motive sua vigilância – , contrarias às nossas paixões naturais, às quais não nos induzem à parcialidade, ao orgulho, à vingança e a coisas semelhantes (ibidem, p. 173).

Como é bem sabido, a doutrina política de Hobbes causou escândalo entre seus contemporâneos, que a consideraram perigosa e subversiva, ao ponto de que, ainda que fosse algo que desejasse fortemente, Hobbes nunca foi admitido na Royal Society (Bowle, 1952, p. 163).

Apesar de Hobbes, de toda maneira, se impôs o modelo de Descartes, que expressava a tendência já existente a democratizar os mecanismos de disciplina social atribuindo à vontade individual a função de mando que, no modelo hobbesiano, havia sido deixada unicamente nas mãos do Estado. Tal como muito críticos de Hobbes sustentaram, as bases da disciplina pública devem estar arraigadas nos corações dos homens, pois na ausência de uma legislação interna os homens se dirigem inevitavelmente à revolução (citado em Bowle, 1951, p. 97-8). “Para Hobbes”, que se queixava de Henry Moore, “não existe a liberdade da vontade e, portanto, não existe remorso da consciência ou da razão, apenas existe a vontade de quem tem a maior espada” (citado em Easlea, 1980, p. 159). Mais explícito foi Alexander Ross, que observou que “o freio da consciência é o que retém os homens frente à rebelião, não existe força exterior mais poderosa […] não existe um juiz tão severo, nem um torturador tão cruel quanto uma consciência acusadora” (citado em Bowle, 1952, p. 167).

É evidente que a crítica contemporânea ao ateísmo e ao materialismo de Hobbes não estava motivada por preocupações religiosas. A visão de Hobbes sobre o indivíduo enquanto uma máquina movida apenas por seus apetites e aversões não foi rechaçada porque eliminara o conceito da criatura humana feita à imagem de Deus, e sim porque descartava a possibilidade de uma forma de controle social que não dependia exclusivamente do domínio férreo do Estado. Aqui está, em minha opinião, a diferença principal entre a filosofia de Hobbes e o cartesianismo. Esta distinção, no entanto, não pode ser vista se insistimos nos elementos feudais da filosofia de Descartes, e particularmente em sua defesa da existência de Deus, como tudo o que isto supõe como aval do poder estatal. Se efetivamente privilegiamos o Descartes feudal, perdemos de vista o feito de que a eliminação do elemento religioso em Hobbes (isto é, a crença na existência das substâncias incorpóreas) era na realidade uma resposta à democratização implícita no modelo cartesiano do autocontrole, de que Hobbes sem dúvida desconfiava. Tal como havia demonstrado o ativismo das seitas puritanas durante a Guerra Civil Inglesa, o autocontrole podia transformar-se facilmente em uma proposta subversiva. O chamado dos puritanos a converter a gestão do comportamento próprio em consciência individual, e a fazer da consciência própria o juiz final da verdade, havia se radicalizado nas mãos dos sectários para se converter em uma recusa anárquica da autoridade estabelecida23 e de dezenas de pregadores mecanicistas que, em nome da “luz da consciência”, haviam se oposto à legislação do Estado e da propriedade privada, deviam ter convencido Hobbes de que o chamado da “Razão” era uma perigosa arma de dois gumes24.

O conflito entre o “teísmo” cartesiano e o “materialismo” hobbesiano se resolveu com o tempo em uma assimilação recíproca, no sentido de que (como sempre na história do capitalismo) a descentralização dos mecanismos de comando, através de sua localização no indivíduo, foi finalmente alcançada apenas na medida em que houve uma centralização no poder do Estado. Para colocar essa resolução nos termos em que estava pautado o debate durante a Guerra Civil Inglesa, “nem os Escavadores, nem o absolutismo”, e sim uma bem calculada mistura de ambos, onde a democratização do comando recairia sobre as costas de um Estado sempre pronto, como o Deus Newtoniano, para impor novamente a ordem sobre as almas que avançavam demasiadamente longe nas formas da autodeterminação. O xis da questão foi expresso lucidamente por Joseph Glanvil, membro cartesiano da Royal Society quem, em uma polêmica com Hobbes, sustentou que o problema fundamental era o controle da mente sobre o corpo. Isto, no entanto, não implicava simplesmente o controle da classe dominante (a mente por excelência) sobre o corpo-proletariado, e sim, o que é igualmente importante, o desenvolvimento da capacidade de autocontrole dentro da pessoa.

Como demonstrou Foucault, a mecanização do corpo não apenas supôs a repressão dos desejos, das emoções e de outras formas de comportamento que tinham que ser erradicadas. Também supôs o desenvolvimento de novas faculdades no indivíduo, que apareceriam como outras em relação ao corpo e que se converteriam em agentes de sua transformação. O produto desta alienação do corpo foi, em outras palavras, o desenvolvimento da identidade individual, concebida precisamente como “alteridade” em relação ao corpo e em perpétuo antagonismo com ele.

A aparição deste alter ego e a determinação de um conflito histórico entre a mente e o corpo representam o nascimento do indivíduo na sociedade capitalista. Fazer do próprio corpo uma realidade alheia que se deve avaliar, desenvolver e manter na linha com o fim de obter dele os resultados desejados, se convertia em uma característica típica do indivíduo moldado pela disciplina do trabalho capitalista.

Como assinalamos, entre as “classes baixas”, o desenvolvimento do autocontrole (self-management) como autodisciplina foi, durante muito tempo, objeto de especulação. A escassa autodisciplina que se esperava das “pessoas comuns” pode julgar-se pelo fato de que, já na Inglaterra no século XVIII, havia 160 crimes que eram punidos com a pena de morte (Linebaugh, 1992) e, todo ano, milhares de “pessoas comuns” eram transportadas às colônias ou condenadas às galés. Além disso, quando a população apelava à razão, era para apresentar demandas antiautoritárias, já que o domínio de si (self-mastery) em escala popular significava a rejeição da autoridade estabelecida, mais do que a interiorização das normas sociais.

Efetivamente, durante o século XVII, o domínio de si foi uma prerrogativa burguesa. Como assinala Easlea, quando os filósofos falavam do “homem” como um ser racional, faziam referência exclusiva a uma pequena elite composta por homens adultos, brancos e de classe alta. “A grande multidão dos homens”, escreveu Henry Power, um seguidor inglês de Descartes, “se parece mais com o autômato de Descartes, já que carecem de qualquer poder de raciocinar e apenas podem ser chamados homens enquanto metáfora” (Easlea, 1980, p. 140)25). Os da “melhor classe” concordavam que o proletariado era de uma raça diferente. Em seus olhos, desconfiados pelo medo, o proletariado parecia com uma “grande besta”, um “monstro de muitas cabeças”, selvagem, vociferante, dado a qualquer excesso (Hill, 1975, p. 181 e seg.; Linebaugh e Rediker, 2000). Também, no plano individual, o vocabulário ritual identificava as massas como seres puramente instintivos. Assim, na literatura isabelina Elisabetana, o mendigo é sempre “vigoroso” e “robusto”, “grosseiro”, “irascível” e “desordenado” – tais são as palavras que aparecem vez ou outra nas discussões sobre a classe baixa.

Neste processo, o corpo não apenas perdeu todas as conotações naturalistas neste processo, como também começou a emergir uma função-corpo, no sentido de que o corpo se converteu em um termo puramente relacional, que já não significava nenhuma realidade específica, mas sim, qualquer impedimento ao domínio da Razão. Isto significa que enquanto o proletariado se converteu em um “corpo”, o corpo se tornou “o proletariado” e, em particular, na débil e irracional fêmea (a “mulher em nós”, como dizia Hamlet) ou no “selvagem” africano, definido puramente por sua função limitadora, isto é, por sua “alteridade” com respeito à Razão, e tratado como um agente de subversão interna.

No entanto, a luta contra esta “grande besta” não esteve dirigida apenas contra “as pessoas de classe baixa”. Também foi interiorizada pelas classes dominantes em sua batalha contra seu próprio “estado natural”. Como vimos, assim como Próspero, a burguesia também teve que reconhecer que “este ser de trevas é meu”, isto é, que Calibã era parte de si mesma (Brown, 1988; Tyllard, 1961, p. 34-5). Esta consciência impregna a produção literária dos séculos XVI e XVII. A terminologia é reveladora. Inclusive aqueles que não seguiam Descartes viram o corpo como uma besta que, de forma constante, tinha que ser mantida sob controle. Seus instintos foram comparados com “súditos”, destinados a serem “governados”, e os sentidos foram considerados uma prisão para a alma racional. “Oh, quem surgirá desta masmorra / Uma alma escravizada de tantas formas?”, perguntou Andrew Marvell em seu “Diálogo entre a alma e o corpo”:

Com parafusos de ossos, que se levantam agrilhoados

nos pés; e nas mãos algemadas.

Aqui cegos de um olho; e ali

surdos com o tamborilar de uma orelha.

Uma alma pendurada, como por uma corrente

de nervos e artérias e veias.

(Citado por Hill, 1964b, p. 345)

O conflito entre os apetites e a razão foi um tema central na literatura elisabetana (Tillayrd, 1961, p. 75), enquanto que entre os puritanos começou a ganhar força a ideia de que o “Anticristo” estava presente em todos os homens. Ao mesmo tempo, os debates sobre a educação e sobre a “natureza do homem”, correntes entre a “gente de classe média”, se centravam ao redor do conflito entre o corpo e a alma, colocando a pergunta crucial sobre se os seres humanos são agentes voluntários ou involuntários.

Contudo, a definição de uma nova relação com o corpo não permaneceu em uma esfera puramente ideológica. Muitas práticas que começaram a aparecer na vida cotidiana assinalavam as profundas transformações que estavam ocorrendo neste âmbito: o uso de talheres, o desenvolvimento da vergonha com respeito à nudez, o advento dos “modos” das “boas maneiras” que tentavam regular como se deveria rir, caminhar, bocejar, como se comportar à mesa e quando se podia cantar, brincar, jogar (Elias, 1978, p. 129 e segs.). Na medida em que o indivíduo se dissociava cada vez mais do corpo, este último se convertia em um objeto de observação constante, como se se tratasse de um inimigo. O corpo começou a inspirar medo e repugnância. “O corpo do homem está cheio de sujeira”, declarou Jonathan Edwards, cuja atitude é típica da experiência puritana, na qual a subjugação do corpo é uma prática cotidiana (Greven, 1977, p. 67). Eram particularmente repugnantes aquelas funções corporais que diretamente enfrentavam os “homens” com sua “animalidade”. Tal foi o caso de Cotton Mather, que, em seu diário, confessou quão humilhado se sentiu um dia quando, urinando contra uma parede, viu um cachorro fazer o mesmo:

Pensei em que coisas vis e baixas são os filhos de homens neste estado mortal. Até que ponto nossas necessidades naturais nos degradam e nos colocam, em certo sentido, no mesmo patamar que os mesmos cães […] Por conseguinte, resolvi como deveria ser minha prática ordinária, quando decido responder a uma ou outra necessidade da natureza, o fazer dela uma oportunidade para dar forma em minha mente a algum pensamento sagrado, nobre, divino. (Ibidem)

Como parte da grande paixão médica da época, a análise dos excrementos – a partir do qual se extraíram múltiplas deduções sobre as tendências psicológicas do indivíduo (seus vícios e virtudes) (Hunt, 1970, p. 143-46) – deve ser rastreado desde a concepção do corpo como um receptáculo de sujeira e perigos ocultos. Claramente, esta obsessão pelos excrementos humanos refletia em parte o desgosto que a classe média começava a sentir pelos aspectos não produtivos do corpo – um desgosto acentuado inevitavelmente em um ambiente urbano onde os excrementos apresentavam um problema logístico, além de aparecerem como puro resíduo. Contudo, nesta obsessão podemos ler também a necessidade burguesa de regular e purificar a máquina corporal de qualquer elemento que pudesse interromper sua atividade e ocasionar “tempos mortos” para o trabalho. Os excrementos eram tão analisados e degradados, ao mesmo tempo, porque eram o símbolo dos “humores enfermos” que se acreditava viverem nos corpos e aos quais se atribuíam todas as tendências perversas dos seres humanos. Para os puritanos, os excrementos se converteram no signo visível da corrupção da natureza humana, uma forma de pecado original que tinha que ser combatido, subjugado, exorcizado. Daí o uso de purgantes, eméticos e enemas (lavagens intestinais) que se administravam às crianças e aos “possuídos” para expulsar deles os feitiços (Thorndike 1958, p. 553 e segs.).

Neste intento obsessivo por conquistar o corpo em seus mais íntimos segredos, se vê refletida na mesma paixão com que, nestes mesmos anos, a burguesia tratou de conquistar – poderíamos dizer “colonizar” – esse ser alheio, perigoso e improdutivo que a seus olhos era o proletariado. Pois o proletariado era o Grande Calibã da época. O proletariado era esse “ser material bruto e por si mesmo desordenado” que Petty recomendava que fosse entregue às mãos do Estado, que, em sua prudência, “deveria melhorar, administrar e configurar para seu proveito” (Furniss, 1957, p. 17 e segs.).

Como Calibã, o proletariado personificava os “humores enfermos” que se escondiam no corpo social, começando pelos monstros repugnantes da vagabundagem e do alcoolismo. Aos olhos de seus senhores, sua vida era pura inércia, mas ao mesmo tempo era paixão descontrolada e fantasia desenfreada, sempre pronta para explodir em violentos tumultos. Acima de tudo, era indisciplina, falta de produtividade, incontinência, desejo de satisfação física imediata; sua utopia não era uma vida de trabalho e sim o país de Cocanha (Burke, 1978; Graus, 1987)26, onde as casas eram feitas de açúcar, os rios de leite e onde não apenas se podia obter o que se desejava sem esforço, como se recebia dinheiro por comer e beber:

Por dormir uma hora

de sono profundo

sem caminhar

ganha-se seis francos;

e por beber bem

ganha-se uma pistola;

este país é alegre,

ganha-se dez francos por dia

por fazer amor.

(Burke, 1978, p. 190).

A ideia de transformar este ser ocioso, que sonhava a vida como um grande carnaval, em um trabalhador incansável, deve ter parecido uma empreitada desesperadora. Literalmente significou “colocar o mundo de pernas pra cima”, mas de uma maneira totalmente capitalista, um mundo onde a inércia do poder se converteria na falta de desejo e de vontade própria, onde a vis erótica se tornaria vis lavorativa e onde a necessidade seria experimentada apenas como carência, abstinência e penúria eterna.

Daí esta batalha contra o corpo, que caracterizou os primórdios do desenvolvimento capitalista e que continua, de diversas formas, até nossos dias. Vem deste contexto também a mecanização do corpo, que foi o projeto da nova Filosofia Natural e o ponto focal dos primeiros experimentos na organização do Estado. Se fizermos um apanhado desde a caça às bruxas até as especulações da Filosofia Mecanicista, incluindo as investigações meticulosas dos talentos individuais pelos puritanos, veremos que um único fio condutor une os caminhos aparentemente divergentes da legislação social, da reforma religiosa e da racionalização científica do universo. Esta foi uma tentativa de racionalizar a natureza humana, cujos poderes tinham que ser reconduzidos e subordinados ao desenvolvimento e à formação da mão de obra.

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Pieter Bruegel, O país da Cocanha (1567).

Como vimos, neste processo o corpo foi progressivamente politizado, desnaturalizado e redefinido como o “outro”, o objeto limite da disciplina social. Deste modo, o nascimento do corpo no século XVII também marcou seu fim, uma vez que uma vez que o conceito de corpo cessaria de definir uma realidade orgânica específica, e se tornaria, no lugar disso, um significante das relações de classe e das fronteiras movediças, continuamente redesenhadas, nas quais se produzem essas relações no mapa da exploração humana.

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Lucas Cranach, A fonte da juventude (1546).

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Jan Luyken, A execução de Anne Hendricks por bruxaria, em Amsterdam, 1571.

Notas
1. ↑ Próspero é um “homem novo”. Didaticamente, suas desgraças são atribuídas por Shakespeare ao seu interesse excessivo por livros de magia, aos quais finalmente renuncia em troca de uma vida mais ativa em seu reino, onde seu poder virá não de sua magia, mas de governar seus súditos. Contudo, já na ilha de seu exílio, suas atividades prefiguram uma nova ordem mundial, na qual o poder não se ganha com uma varinha mágica, e sim por meio da escravidão de muitos Calibãs em colônias distantes. O tratamento explorador de Próspero para com Calibã antecipa o papel do futuro senhor de plantação, que não poupará torturas e tormentas para forçar seus subordinados a trabalhar.
2. ↑ “Cada homem é seu pior inimigo e, de certo modo, seu próprio carrasco”, escreve Thomas Browne. Também Pascal, em Pensée, declara que: “Guerra interna do homem entre a razão e as paixões. Se ele tivesse apenas razão sem paixões […] Se ele tivesse apenas paixões sem razão […] Contudo, posto que existem uma e outra, não se pode estar sem conflito […]. Deste modo, se está sempre dividido e sempre se é contrário a si mesmo” (Pensée: 412, p.130). Sobre o conflito entre Paixões e Razão, e sobre as “correspondências” entre o “microcosmos” humano e “o corpo político” (body politic) na literatura isabelina Elisabetana, ver Tillyard (1961, p.75-9; 94-9).
3. ↑ A reforma da linguagem – tema chave na filosofia dos séculos XVI e XVII, de Bacon a Locke – era uma das principais preocupações de Joseph Glanvil, que em sua Vanity of Dogmatizing (1665), depois de proclamar sua adesão à cosmovisão cartesiana, advoga por uma linguagem adequada para descrever os entes claros e distintos (Glanvil, 1970, p.xxvi-xxx). Como resume S. Medcalf, em sua introdução ao trabalho de Glanvil, uma linguagem adequada para descrever este mundo guarda uma ampla semelhança com as matemáticas, tem palavras de grande generalidade e clareza; apresenta uma imagem do universo de acordo com sua estrutura lógica; distingue claramente entre mente e matéria, e entre o subjetivo e o objetivo e “evita a metáfora como forma de conhecer e descrever, já que a metáfora depende da suposição de que o universo não está composto de seres completamente diferentes e por isso não pode ser descrito completamente em termos positivos e distintos […]” (ibidem).

4. ↑ Marx não distingue entre trabalhadores e trabalhadoras em sua discussão sobre a “liberação da força de trabalho”. Há, no entanto, uma razão para manter o masculino na descrição deste processo. Ainda quando foram “liberadas” das terras comuns, as mulheres não foram conduzidas pela trilha do mercado de trabalho assalariado.
5. ↑ “Com trabalho devo ganhar / meu pão; com dano? O ócio teria sido pior; / Meu trabalho me manterá” é a resposta de Adão aos medos de Eva, diante da perspectiva de irem-se do jardim bendito do Éden (Paradise Lost, versos 1054-56, p. 579).

6. ↑ Como assinala Christopher Hill, até o século XV, o trabalho assalariado pode ter aparecido como uma liberdade conquistada, porque as pessoas tinham acesso às terras comuns e possuíam terras próprias, não dependendo somente do salário. No entanto, no século XVI, aqueles que trabalhavam por um salário haviam sido expropriados; além do mais, os empregadores alegavam que os salários eram apenas complementares, mantendo-os em seu nível mais baixo. Deste modo, trabalhar pelo pagamento significava descer até a base da pirâmide social e as pessoas lutavam desesperadamente para evitar tal destino (Hill, 1975, p.220-22). Já no século XVII, o trabalho assalariado era ainda considerado uma forma de escravidão, tanto que os Levellers excluíam os trabalhadores assalariados do direito ao voto, já que não os consideravam suficientemente independentes para poder eleger livremente seus representantes (Macpherson, 1962, p.107-59).
7. ↑ Em 1622, quando Jacob I pediu a Thomas Mun que investigasse as causas da crise econômica que havia golpeado o país, este finalizou seu informe imputando a culpa dos problemas da nação à ociosidade dos trabalhadores ingleses. Referiu-se em particular à “lepra generalizada do nosso tocar gaita, do nosso falar de qualquer jeito, de nossos festins, de nossas discussões e o tempo que perdemos no ócio e no prazer” que, em sua perspectiva, colocava a Inglaterra em desvantagem na competição comercial com os laboriosos holandeses (Hill, 1975, p.125).
8. ↑ Wright (1960, p.80-3); Thomas (1971); Van Ussel (1971, p.25-92); Riley (1973, p.19 e seg.); e Underdown (1985, p.7-72).
9. ↑ O medo que as classes baixas (os “vis”, os “miseráveis”, na gíria da época) inspiravam na classe dominante pode medir-se na história relatada em Social England Illustrated (1903). Em 1580, Francis Hitchcock, em um panfleto intitulado “Presente de Ano Novo para Inglaterra”, elevou a proposta de recrutar os pobres do país na Marinha, argumentando que “as pessoas miseráveis são […] aptas a participar de uma rebelião ou tomar partido por quem quiser invadir esta nobre ilha […] reúnem as condições para prover de soldados ou de guerreiros à fortuna dos homens ricos. Pois eles podem indicar com seus dedos “ali está”, “é aquele” e “ele tem”, e desta maneira alcançar o martírio de muitas pessoas ricas por sua fortuna […]” A proposta de Hitchcock foi, no entanto, derrotada; se objetou que se os pobres da Inglaterra fossem recrutados na Marinha, roubariam os barcos e se tornariam piratas (Social England Illustrated, 1903, p.58-6
10. ↑ Eli F. Heckscher escreve que “em seu trabalho teórico mais importante, A Treatise of Taxes and Contributions (1662), Sir William Petty propôs substituir todas as penas por trabalhos forçado, ‘o que aumentaria o trabalho e o tesouro público’”. “Por que não perguntava Petty castigar os ladrões insolventes com a escravidão, em vez de morte? Enquanto forem escravos podem ser tão forçados, por tão pouco, o quanto a natureza o permita, convertendo-se assim em homens agregados à Nação e não em um a menos” (Heckscher, 1962, II, p. 297). Na França, Colbert exortou a Corte de Justiça a condenar à galé tantos convictos quanto fosse possível, a fim de “manter este corpo necessário ao Estado” (ibidem, p.298-99
11. ↑ O Tratado do Homem (Traité de l’Homme), publicado doze anos depois da morte de Descartes como L’Homme O Homem de René Descartes (1664), abre o “período maduro” do filósofo. Aplicando a física de Galileu a uma investigação dos atributos do corpo, Descartes tentou explicar todas as funções fisiológicas como matéria em movimento. “Desejo que considerem”, escreveu Descartes no final do Tratado (1972, p.113), “que todas as funções que atribuí a esta máquina […] se deduzam naturalmente […] da disposição de seus órgãos – tal e como os movimentos de um relógio ou outro autômato se deduzem da organização dos contrapesos e rodas”.
12. ↑ Um princípio puritano consistia em que Deus dotou o “homem” de dons especiais que o fazem apto para uma vocação particular, daí a necessidade de um autoexame meticuloso para esclarecer a vocação para a qual fomos designados (Morgan, 1966, p.72-3; Weber, 1958, p.47 e seg.).
13. ↑ Como mostrou Giovanna Ferrai, uma das principais inovações introduzidas pelo estudo da anatomia na Europa do século XVI foi o “teatro anatômico”, onde se organizava a dissecação como uma cerimônia pública, sujeita a normas similares às que regulavam as funções teatrais:
Tanto na Itália como no exterior, as lições públicas de anatomia se haviam convertido, na época moderna, em cerimônias ritualizadas que se realizavam em lugares especialmente destinados a elas. Sua semelhança com as funções teatrais é imediatamente visível se se tem em conta algumas de suas características: a divisão das lições em fases distintas […] a implantação de uma entrada de pagamento e a interpretação de música para entreter a audiência, as regras introduzidas para regular o comportamento dos assistentes e o cuidado colocado na “produção”. W.S. Heckscher sustenta inclusive que muitas técnicas gerais de teatro foram desenhadas originalmente tendo em mente as funções das lições de anatomia públicas(Ferrari, 1987, p. 82-3).
14. ↑ Segundo Mario Galzigna, da revolução epistemológica realizada pela anatomia no século XVI surge o paradigma mecanicista. O corte anatômico rompe o laço entre micro e macrocosmos, e apresenta o corpo tanto como uma realidade separada como um elemento de produção; nas palavras de Vesalio: uma fábrica.
15. ↑ Também em As paixões da Alma (Artigo VI), Descartes minimiza “a diferença que existe entre um corpo vivente e um morto” (Descartes 1973, T. I, ibidem): “[…] podemos julgar que o corpo de um homem vivo se diferencia do de um homem morto tanto quanto um relógio de outro autômato (quer dizer, uma maquina que se move a si mesma), quando se dá corda e contém dentro de si o princípio corporal destes movimentos […] se diferencia do mesmo relógio ou de outra máquina quando está quebrada e quando o princípio de seu movimento deixa de atuar”.
16. ↑ De particular importância, neste contexto, foi o ataque à “imaginação”, (vis imaginativa) que na magia natural dos séculos XVI e XVII era considerada uma força poderosa por meio da qual o mago podia afetar o mundo circundante e trazer “saúde ou enfermidade, não apenas a seu próprio corpo, mas também a outros corpos” (Easlea, 1980, p. 94 e seg.). Hobbes dedicou um capítulo do Leviatã a demonstrar que a imaginação é apenas um “sentido em decadência”, similar nisso à memória, sendo que esta se torna gradualmente debilitada pelo traslado dos objetos de nossa percepção (Parte I, Capítulo 2); também pode encontrar-se uma crítica da imaginação em Religio Medici (1642), de Sir Thomas Browne.
17. ↑ Escreve Hobbes (1963, p.72): “Consequentemente, ninguém pode conceber uma coisa sem situá-la em algum lugar, provida de uma determinada magnitude e suscetível de dividir-se em partes; não é possível que uma coisa esteja neste lugar e em outro ao mesmo tempo; nem que duas ou mais coisas estejam, ao mesmo tempo, em um mesmo e idêntico lugar”.
18. ↑ Entre os partidários da caça às bruxas se encontrava Sir Thomas Browne, um médico, e segundo dizem, um dos primeiros defensores da “liberdade científica”, cujo trabalho aos olhos de seus contemporâneos “apresentava um perigoso aroma de ceticismo” (Gosse, 1905, p.25). Thomas Browne contribuiu pessoalmente à morte de duas mulheres acusadas de serem “bruxas”, que, não fosse sua intervenção, teriam sido salvas da forca, já que as acusações contra elas eram absurdas (Gosse, 1905, p.147-49). Para uma análise detalhada deste julgamento, ver Gilbert Geis e Ivan Bunn (1997).
19. ↑ Em todos os países da Europa do século XVI nos quais floresceu a anatomia, as autoridades aprovaram estatutos que permitiam que os corpos dos executados fossem usados nos estudos anatômicos. Na Inglaterra, “o Colégio Médico ingressou no campo da anatomia em 1565, quando Elizabeth I concedeu o direito de apropriar-se dos corpos de delinquentes dissecados” (O’Malley, 1964). Sobre a colaboração entre as autoridades e os anatomistas em Bolonha, durante os séculos XVI e XVII, ver Giovanna Ferrari (1984, p.59, 60, 64, 87-8), que assinala que não apenas os executados, mas também todos os “piores” entre os que morriam no hospital eram separados para os anatomistas. Em um caso, uma condenada à prisão perpétua foi trocada por uma condenada à morte para satisfazer a demanda dos acadêmicos.
20. ↑ De acordo com o primeiro biógrafo de Descartes, Monsieur Adrien Baillet, durante sua estadia em Amsterdam em 1629, enquanto preparava seu Tratado do Homem, Descartes visitou os matadouros da cidade e fez dissecções de diferentes partes dos animais:
[…] começou a execução do seu plano estudando anatomia, à qual se dedicou todo o inverno que esteve em Amsterdã. Declarou ao Padre Marsenne que, em seu entusiasmo para conhecer sobre este tema, havia visitado um açougueiro, quase diariamente, com a finalidade de presenciar a matança; e que ele o havia permitido que levasse a sua casa os órgãos animais que quisesse, para dissecá-los com maior tranquilidade. Com frequência fez o mesmo em outros lugares onde esteve posteriormente, sem encontrar nada pessoalmente vergonhoso ou que não estivesse à altura de sua posição, em uma prática que em si mesma era inocente e que podia produzir resultados muito úteis. Por isso se riu de certa pessoa maliciosa e invejosa que […] havia tratado de fazê-lo passar por um criminoso e o havia acusado de “ir pelos povoados para ver como matavam os cervos” […] Não deixou de observar o que Versalius, e os mais experientes entre os outros autores, haviam escrito sobre anatomia. Contudo, aprendeu de uma maneira mais segura, dissecando pessoalmente animais de diferentes espécies. (Descartes, 1972; xiii-xiv).
Em uma carta a Mersenne de 1633, escreveu: “Eu anatomizo agora as cabeças de diversos animais para explicar em que consiste a imaginação, a memória […]” (Cousin, 1824-26, Vol. IV, p.255). Também em uma carta de 20 de janeiro relata em detalhe experimentos de dissecção: “Após ter aberto o peito de um coelho vivo […] de maneira que o tronco e o coração da aorta se vejam facilmente […] Seguindo a dissecção desse animal vivo, eu corto essa parte do coração que chamamos de sua ponta” (ibidem, Vol. VII, 350). Finalmente, em junho de 1640, em resposta a Marsenne, que lhe havia perguntado por que os animais sentem dor se não possuem alma, Descartes assegurou que eles não sentem, pois dor existe apenas quando há entendimento, que é ausente nas bestas (Rosenfield, 1968, p. 8).
Este argumento insensibilizou muitos contemporâneos cientificistas de Descartes sobre a dor que a vivissecção causava nos animais. Assim é como Nicolas de la Fontaine descrevia a atmosfera criada em Port Royal pela crença no automatismo dos animais: “Apenas havia um solitário que não falasse em autômato […] Ninguém dava importância ao fato de golpear um cachorro; com a maior indiferença lhe davam pauladas, rindo daqueles que se compadeciam de tais bestas como se estas tivessem sentido dor de verdade. Se dizia que eram relógios, que aqueles gritos que lançavam ao ser golpeados não eram mais que o ruído de um pequeno impulso que haviam colocado em marcha, mas que de modo algum havia nele sentimento. Cravavam os pobres bichos sobre tábuas pelas quatro patas para cortá-los em vida e ver a circulação do sangue, que era grande matéria de discussão” (Rosenfield, 1968, p.54).
21. ↑ A doutrina de Descartes sobre a natureza mecânica dos animais representava uma inversão total com respeito à concepção dos animais que havia prevalecido durante a Idade Média e até o século XVI, quando eram considerados seres inteligentes, responsáveis, com uma imaginação particularmente desenvolvida e inclusive com capacidade de falar. Como Eward Westermark, e mais recentemente Esther Cohen mostraram, em alguns países da Europa se julgavam os animais, e às vezes eram executados publicamente por crimes que haviam cometido. Um advogado era designado para eles e o processo – julgamento, condenação e execução – era realizado com todas as formalidades legais. Em 1565, os cidadãos de Arles, por exemplo, pediram a expulsão das lagostas de seu povoado e, em outro caso, foram excomungados os vermes que infestavam uma paróquia. O ultimo julgamento de um animal teve lugar na França, em 1845. Os animais também eram aceitos na corte como testemunhas para o compurgatio. Um homem que havia sido condenado por assassinato compareceu ante a corte com seu gato e seu galo, em presença deles jurou que era inocente e foi liberado (Westermarck, 1924; 254 e seg.; Cohen, 1986).
22. ↑ Foi-se dito que a perspectiva anti-mecanicista de Hobbes, na realidade, concedia mais poderes e dinamismo ao corpo que a versão cartesiana. Hobbes rechaça a ontologia dualista de Descartes e em particular a noção da mente como substância imaterial e incorpórea. A visão do corpo e da mente como um continuum monista dá conta das operações mentais recorrendo a princípios físicos e fisiológicos. No entanto, não menos que Descartes, ele retira o poder do organismo humano, assim como lhe nega movimento próprio e reduz as mudanças corporais a mecanismos de ação e reação. Por exemplo, para Hobbes, a percepção dos sentidos é o resultado de uma ação-reação, já que os órgãos e os sentidos opõem resistência aos impulsos atômicos que vêm do objeto externo; a imaginação é um sentido em decadência. Igualmente, a razão não é outra coisa além de uma máquina de fazer cálculos. Hobbes, não menos que Descartes, concebe as operações do corpo como termos de uma causalidade mecânica, sujeitas às mesmas leis que regulam o mundo da matéria inanimada.
23. ↑ Tal como Hobbes lamentava em Behemoth (1962, p.190):
Depois que a Bíblia foi traduzia ao inglês, cada homem, melhor dizendo, cada criança e cada moça, que podia ler inglês, pensava que podia falar com Deus Todo Poderoso e que compreendia o que ele dizia quando havia lido as Escrituras uma ou duas vezes, vários capítulos por dia. A reverência e a obediência devidas à Igreja Reformada e aos bispos e pastores foi abandonada, e cada homem se converteu em juiz da religião e intérprete das escrituras.
Também assinala (1962, p.194) que “uma quantidade de homens costumava ir às suas paróquias e cidades em dia de trabalho, abandonando suas profissões” para escutar aos pregadores mecanicistas.
24. ↑ É exemplar a “Law of Righteousness” (1649), de Gerrard Winstanley, onde o mais célebres dos Escavadores pergunta (Winstanley, 1941, p. 197):
Por acaso a luz da Razão fez a terra para que alguns homens monopolizem em bolsas e estábulos, enquanto outros são oprimidos pela pobreza? Acaso a luz da Razão fez esta lei, que se um homem não tem abundância de terra para dar àqueles a quem tomou emprestado, aquele que empresta deve levar o outro como prisioneiro e fazer que seu corpo passe fome em um quarto fechado? Por acaso a luz da Razão fez esta lei que uma parte da humanidade mate e enforque a outra parte, em vez de colocar-se no seu lugar?
25. ↑ É tentador sugerir que essa suspeita a respeito da humanidade das “classes baixas” pode ser a razão pela qual, entre os primeiros críticos do mecanicismo cartesiano, poucos objetaram à visão mecânica do corpo humano. Como assinala L. C. Rosenfield: “Esta é uma das coisas estranhas de toda a discussão, nenhum dos ardentes defensores da alma animal, neste primeiro período, levantou seu garrote para evitar que o corpo humano fosse contaminado pelo mecanicismo”. (Rosenfield, 1968, p.25
26. ↑ F. Graus (1967) afirma que “O nome ‘Cocanha’ apareceu pela primeira vez no século XIII (se supõe que Cucaniensis vem de Kucken) e parece ter sido usado como paródia”, já que o primeiro contexto no qual foi encontrado é uma sátira de um monastério inglês da época de Eduardo II (Graus, 1967, p.9). Graus discute a diferença entre o conceito medieval de “País das Maravilhas” e o conceito moderno de Utopia, argumentando que:
Na época moderna, a ideia básica de construção do mundo ideal significa que a Utopia deve estar povoada por seres ideais que se desfizeram de seus defeitos. Os habitantes de Utopia estão caracterizados por sua justiça e inteligência […] Por outro lado, as visões utópicas da Idade Média começam a partir do homem tal e como é e buscam realizar seus desejos atuais. (Ibidem, p.6)
Em “Cocanha” (Schalaraffenland), por exemplo, há comida e bebida em abundância, não há desejo de “alimentar-se” prudentemente, e sim de comer com gulodice, tal qual se havia desejado fazer na vida quotidiana:
Nesta “Cocanha” […] também há uma fonte da juventude, na qual homens e mulheres entram por um lado para saírem pelo outro como belos jovens e meninas. Logo o relato continua com sua atitude de “Mesa dos Desejos”, que tão bem reflete a simples visão de uma vida ideal (Graus, 1967, p.7 e 8).
Em outras palavras, o ideal de “Cocanha” não encarna nenhum projeto racional nem uma noção de “progresso”, é, no entanto, muito mais “concreto”, “se apoia decididamente no entorno da aldeia” e “retrata um estado de perfeição não alcançado na época moderna” (Graus, ibidem).

Capítulo IV
A grande caça às bruxas na Europa

Une bête imparfaite, sans foy, sans crainte, sans costance1.

(Ditado francês do século XVII sobre as mulheres)

Down from the waist they are centaurs,

though women all above.

But to the girdle do the gods inherit;

beneath is all the fiends’.

There’s hell, there’s darkness,

there’s the sulfurous pit

burning, scalding, stench, consumption!2

(Shakespeare, Rei Lear, 1606)

Vocês são as verdadeiras hienas que nos encantam com a brancura de suas peles e, quando a loucura nos colocou a seu alcance, vocês se lançaram sobre nós. Vocês são as traidoras da Sabedoria, o impedimento da Indústria […], os impedimentos da Virtude e os aguilhões que nos instigam a todos os vícios, à impiedade e à ruína. Vocês são o Paraíso dos Néscios, a praga do Sábio e o Grande Erro da Natureza.

(Walter Charleton, Ephesian Matron, 1659)

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1 Introdução 2 A época de queima de bruxas e a iniciativa estatal 3 Crenças diabólicas e mudanças no modo de produção 4 Caça às bruxas e revolta de classes 5 A caça às bruxas, a caça às mulheres e a acumulação do trabalho 6 A caça às bruxas e a supremacia masculina: a domesticação das mulheres 7 A caça às bruxas e a racionalização capitalista da sexualidade 8 A caça às bruxas e o Novo Mundo 9 A bruxa, a curandeira e o nascimento da ciência moderna

Introdução

A caça às bruxas aparece raramente na história do proletariado. Até hoje, continua sendo um dos fenômenos menos estudados na história da Europa3 ou, talvez, da história mundial, se consideramos que a acusação de adoração ao Demônio foi levada ao “Novo Mundo” pelos missionários e conquistadores como uma ferramenta para a subjugação das populações locais.

O fato de que a maior parte das vítimas, na Europa, tenham sido mulheres camponesas talvez possa explicar o motivo da indiferença dos historiadores com relação a tal genocídio; uma indiferença que beira a cumplicidade, já que a eliminação das bruxas das páginas da história contribuiu para banalizar sua eliminação física na fogueira, sugerindo que foi um fenômeno com um significado menor, quando não uma questão de folclore.

Inclusive, os estudiosos da caça às bruxas (no passado eram quase exclusivamente homens) foram frequentemente dignos herdeiros dos demonólogos do século XVI. Ainda que deplorassem o extermínio das bruxas, muitos insistiram em retratá-las como tolas miseráveis, que sofriam com alucinações. Desta maneira, sua perseguição poderia poderia ser explicada como um processo de “terapia social”, que serviu para reforçar a coesão amistosa (Midelfort, 1972, p. 3), ou poderia ser descrita em termos médicos como um “pânico”, uma “loucura”, uma “epidemia”, todas caracterizações que tiram a culpa dos caçadores das bruxas e despolitizam seus crimes.

Os exemplos da misoginia que inspirou a abordagem acadêmica da caça às bruxas são abundantes. Como apontou Mary Daly, já em 1978, boa parte da literatura sobre este tema foi escrita de “um ponto de vista favorável à execução das mulheres”, o que desacredita as vítimas da sua perseguição, retratando-as como fracassos sociais (mulheres “desonradas” ou frustradas no amor) ou até mesmo como pervertidas que se divertiam zombando dos seus perseguidores masculinos com suas fantasias sexuais. Daly (1978, p. 213) cita o exemplo da obra The History of Psychiatry, de F. G. Alexander e S. T. Selesnick onde lemos que:

[…] as bruxas acusadas, frequentemente, davam razão a seus perseguidores. Uma bruxa mitigava sua culpa confessando suas fantasias sexuais em audiência pública; ao mesmo tempo, alcançava certa gratificação erótica ao se ater a todos os detalhes diante de seus acusadores masculinos. Estas mulheres, gravemente perturbadas do ponto de vista emocional, eram particularmente suscetíveis à sugestão de que abrigavam demônios e diabos e estavam dispostas a confessar sua convivência com espíritos malignos, da mesma maneira que hoje em dia os indivíduos perturbados, influenciados pelas manchetes dos jornais, fantasiam ser assassinos procurados.

Tanto na primeira como na segunda geração de especialistas acadêmicos na caça às bruxas, podemos encontrar exceções a essa tendência de acusar as vítimas. Entre eles, devemos lembrar de Alan Macfarlane (1970), E. W. Monter (1969, 1976, 1977) e Alfred Soman (1992). Mas somente com o advento do movimento feminista, o fenômeno da caça às bruxas emergiu da clandestinidade a que foi confinado, graças à identificação das feministas com as bruxas, que logo foram adotadas como símbolo da revolta feminina (Bovenschen, 1978, p. 83 e segs.)4

Uma expressão desta identificação foi a criação de WITCH (bruxa), uma rede de grupos feministas autônomos que teve um papel importante na fase inicial do movimento de liberação das mulheres nos Estados Unidos. Como relata Robin Morgan, em Sisterhood is Powerful (1970), WITCH nasceu durante o Halloween de 1968 em Nova York, ainda que rapidamente se formaram “aquelarres” em outras cidades. O que a figura da bruxa significou para estas ativistas pode se ser entendido através de um panfleto escrito pelo aquelarre de Nova York que, depois de recordar que as bruxas foram as primeiras praticantes do controle de natalidade e do aborto, afirma:

As bruxas sempre foram mulheres que se atreveram a ser corajosas, agressivas, inteligentes, não conformistas, curiosas, independentes, sexualmente liberadas, revolucionárias […] WITCH vive e ri em cada mulher. Ela é a parte livre de cada uma de nós […] Você é uma Bruxa pelo fato de ser mulher, indomável, desvairada, alegre e imortal (Morgan, 1970, p. 605-06).

Entre as escritoras feministas estadunidenses que de uma forma mais consciente identificaram a história das bruxas com a luta pela liberação das mulheres estão Mary Daly (1978), Starhawk (1982) e Barbara Ehrenreich e Deidre English, cujo Witches, Midwives and Nurses: A History of Women Healers (1973) foi para muitas feministas,incluindo eu mesma, a primeira aproximação à história da caça às bruxas.. As feministas reconheceram rapidamente que centenas de milhares de mulheres não poderiam ter sido massacradas e submetidas às torturas mais cruéis se não tivessem proposto um desafio à estrutura de poder. Também se deram conta de que essa guerra contra as mulheres, que se manteve durante um período de pelo menos dois séculos, constituiu um ponto decisivo na história das mulheres na Europa, o “pecado original” no processo de degradação social que as mulheres sofreram com a chegada do capitalismo, o que o conforma, portanto, como um fenômeno ao qual devemos retornar de forma reiterada se quisermos compreender a misoginia que ainda caracteriza a prática institucional e as relações entre homens e mulheres.

Ao contrário das feministas, os historiadores marxistas, salvo raras exceções – inclusive quando se dedicam ao estudo da “transição ao capitalismo” – relegaram a caça às bruxas ao esquecimento, como se carecesse de relevância para a história da luta de classes. As dimensões do massacre deveriam, entretanto, ter levantado algumas suspeitas: em menos de dois séculos, centenas de mulheres foram queimadas, enforcadas e torturadas5. Deveria parecer significativo que a caça às bruxas foi contemporânea ao processo de colonização e extermínio das populações do Novo Mundo, aos cercamentos ingleses, ao começo do tráfico de escravos, à promulgação de “leis sangrentas” contra vagabundos e mendigos, e que alcançaram seu ponto culminante no interregno entre o fim do feudalismo e a “guinada” capitalista, quando os camponeses na Europa alcançaram o ponto máximo do seu poder, ao mesmo tempo que sofreram a maior derrota da sua história. Até agora, no entanto, este aspecto da acumulação primitiva tem permanecido como um verdadeiro mistério.6

A época de queima de bruxas e a iniciativa estatal

O que ainda não foi reconhecido é que a caça às bruxas constituiu um dos acontecimentos mais importantes do desenvolvimento da sociedade capitalista e da formação do proletariado moderno. Isto porque o desencadeamento de uma campanha de terror contra as mulheres, não igualada por nenhuma outra perseguição, debilitou a capacidade de resistência do campesinato europeu frente ao ataque lançado pela aristocracia latifundiária e o Estado, em uma época na qual a comunidade camponesa já começava a se desintegrar sob o impacto combinado da privatização da terra, do aumento dos impostos e da extensão do controle estatal sobre todos os aspectos da vida social. A caça às bruxas aprofundou a divisão entre mulheres e homens, inculcou nos homens o medo do poder das mulheres e destruiu um universo de práticas, crenças e sujeitos sociais cuja existência era incompatível com a disciplina do trabalho capitalista, redefinindo assim os principais elementos da reprodução social. Neste sentido, de um modo similar ao ataque contemporâneo à “cultura popular” e o “Grande Internamento” de pobres e vagabundos em hospícios em workhouses,7 a caça às bruxas foi um elemento essencial da acumulação primitiva e da “transição” ao capitalismo.

Mais adiante veremos que tipos de medo a caça às bruxas conseguiu espalhar, em favor da classe dominante europeia, e que efeitos teve na posição das mulheres na Europa. Nesse ponto, quero reforçar que, contrariamente à visão propagada pelo Iluminismo, a caça às bruxas não foi o último suspiro de um mundo feudal agonizante. É bem consagrado que a “supersticiosa” Idade Média não perseguiu nenhuma bruxa – o próprio conceito de “bruxaria” não tomou forma até a Baixa Idade Média e nunca houve juízos e execuções massivas durante a “Idade das Trevas”, apesar de a magia ter impregnado a vida cotidiana e de que, desde o Império Romano tardio, havia sido temida pela classe dominante como ferramenta de insubordinação entre os escravos.8

Nos séculos VII e VIII, o crime de maleficium foi introduzido nos códigos dos novos reinos teutônicos, tal como aconteceu com o código romano. Esta era a época da conquista árabe que, aparentemente, agitou os corações dos escravos na Europa ante a expectativa de liberdade, animando-os a tomar as armas contra seus donos.9 Dessa forma, essa inovação legal pode ter sido uma reação ao medo gerado entre as elites pelo avanço dos “sarracenos”, que, de acordo com o que se acreditava, eram grandes especialistas nas artes mágicas (Chejne, 1983, p. 115-32). Porém, naquela época, só eram castigadas por maleficium aquelas práticas mágicas que infligiam dano às pessoas e às coisas, e a Igreja só usou esta expressão para criticar os que acreditavam nos atos de magia.10

A situação mudou por volta da metade do século XV. Nesta época de revoltas populares, epidemias e de crise feudal incipiente, tiveram lugar os primeiros julgamentos de bruxas (no sul da França, na Alemanha, Suíça e Itália), as primeiras descrições do sabá (Monter, 1976, p. 18)11 e o desenvolvimento da doutrina sobre a bruxaria, na qual a feitiçaria foi declarada uma forma de heresia e o crime máximo contra Deus, a Natureza e o Estado (Monter, 1976, p. 11-7). Entre 1435 e 1487 foram escritos vinte e oito tratados sobre bruxaria (Monter, 1976, p. 19), culminando, às vésperas da viagem de Colombo, na publicação, em 1486, do tristemente célebre Malleus Maleficarum (O martírio dos bruxos) que, de acordo com uma nova bula papal sobre a questão, a Summis Desiderantes (1484) de Inocêncio VIII, afirmava que a Igreja considerava a bruxaria como uma nova ameaça. Entretanto, o clima intelectual que predominou durante o Renascimento, especialmente na Itália, seguiu caracterizado pelo ceticismo perante tudo que fosse ligado ao sobrenatural. Os intelectuais italianos, de Ludovico Ariosto até Giordano Bruno e Nicolau Maquiavel, olharam com ironia para as histórias clericais sobre os atos do diabo, enfatizando, por outro lado (especialmente no caso de Bruno), o poder nefasto do ouro e do dinheiro. “Non incanti ma contanti” (“não encantos, mas sim moedas”) é o lema de um personagem de uma das comédias de Bruno, que resume a perspectiva da elite intelectual e dos círculos aristocráticos da época (Parinetto, 1998, p. 29-99).

Foi depois de meados do século XVI, nas mesmas décadas em que os conquistadores espanhóis subjugaram as populações americanas, que começou a aumentar a quantidade de mulheres julgadas como bruxas e, além disso, a iniciativa da perseguição passou da Inquisição às cortes seculares (Monter 1976, p. 26). A caça às bruxas alcançou seu ápice entre 1580 e 1630, ou seja, numa época em que as relações feudais já estavam dando lugar às instituições econômicas e políticas típicas do capitalismo mercantil. Foi neste longo “Século de Ferro” que, praticamente por meio de um acordo tácito entre países a princípio em guerra entre si, se multiplicaram as fogueiras, ao passo que o Estado começou a denunciar a existência de bruxas e a tomar a iniciativa da sua perseguição.

Foi a Constitutio Criminalis Carolina — o Código Legal Imperial promulgado pelo católico Carlos V em 1532 — que estabeleceu que a bruxaria seria penalizada com a morte. Na Inglaterra protestante, a perseguição foi legalizada por meio de três Atos do Parlamento aprovados, respectivamente, em 1542, 1563 e 1604, sendo que esta última introduziu a pena de morte inclusive na ausência de dano a pessoas ou a coisas. Depois de 1550, na Escócia, Suíça, França e nos Países Baixos Espanhóis, também foram aprovadas leis e ordenanças que fizeram da bruxaria um crime capital e incitaram a população a denunciar as suspeitas de bruxaria. Estas foram republicadas nos anos seguintes, para aumentar a quantidade de pessoas que podiam ser executadas e, novamente, para fazer da bruxaria por si só, e não dos danos que supostamente provocava, um crime grave.

Os mecanismos da perseguição confirmam que a caça às bruxas não foi um processo espontâneo, “um movimento vindo de baixo, ao qual as classes governantes e administrativas estavam obrigadas a responder” (Larner, 1983, p. 1). Como Christina Larner demonstrou no caso da Escócia, a caça às bruxas requeria uma vasta organização e administração oficial.12 Antes que os vizinhos se acusassem entre si ou que comunidades inteiras fossem presas do “pânico”, teve lugar um firme adoutrinamento, no qual as autoridades expressaram publicamente sua preocupação com a propagação das bruxas e viajaram de aldeia em aldeia para ensinar as pessoas a reconhecê-las, em alguns casos levando consigo listas de mulheres suspeitas de serem bruxas e ameaçando castigar aqueles que as dessem asilo ou lhes oferecessem ajuda. (Larner, 1983, p. 2).

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O sabá das bruxas. A primeira e a mais famosa de uma série de gravuras produzidas pelo artista alemão Hans Baldung Grien, a partir de 1510, explorando pornograficamente o corpo feminino sob a aparência de uma denúncia.

Na Escócia, a partir do Sínodo de Aberdeen (1603), os ministros da Igreja Presbiteriana receberam ordens para perguntar a seus paroquianos, sob juramento, se suspeitavam que alguma mulher fosse bruxa. Nas igrejas, foram colocadas urnas para permitir aos informantes o anonimato; então, depois que uma mulher caísse sob suspeita, o ministro exortava os fiéis, do púlpito, a testemunharem contra ela, estando proibido oferecer qualquer assistência (Black, 1971, p. 13). Em outros países, também se provocavam denúncias. Na Alemanha, esta era a tarefa dos “visitantes” designados pela Igreja Luterana com o consentimento dos príncipes alemães (Strauss, 1975, p. 54). Na Itália setentrional, eram os ministros e as autoridades que alimentavam suspeitas e se asseguravam de que resultassem em denúncias; também certificavam-se de que as acusadas ficassem completamente isoladas, forçando-as, entre outras coisas, a levar cartazes nas suas vestimentas para que as pessoas se mantivessem distante delas (Mazzali, 1998, p. 112).

A caça às bruxas foi também a primeira perseguição, na Europa, que usou propaganda multimídia com o objetivo de gerar uma psicose em massa entre a população. Uma das primeiras tarefas da imprensa foi alertar o público sobre os perigos que as bruxas representavam, por meio de panfletos que publicizavam os juízos mais famosos e os detalhes de seus feitos mais atrozes. Para este trabalho, foram recrutados artistas, entre eles o alemão Hans Bandung, a quem devemos alguns dos mais mordazes retratos de bruxas. Mas foram os juristas, magistrados e demonólogos, frequentemente encarnados na mesma pessoa, os que mais contribuíram na perseguição. Foram eles que sistematizaram os argumentos, responderam aos críticos e aperfeiçoaram a maquinaria legal que, por volta do final do século XVI, deu um formato padronizado, quase burocrático, aos juízos, o que explica as semelhanças entre as confissões para além das fronteiras nacionais. No seu trabalho, os homens da lei contaram com a cooperação dos intelectuais de maior prestígio da época, incluindo filósofos e cientistas que ainda hoje são elogiados como os pais do racionalismo moderno. Entre eles estava o teórico político inglês Thomas Hobbes, que, apesar de seu ceticismo sobre a existência da bruxaria, aprovou a perseguição como forma de controle social. Outro inimigo feroz das bruxas — obsessivo no seu ódio a elas e nos seus apelos para um derramamento de sangue — foi Jean Bodin, o famoso advogado e teórico político francês, a quem o historiador Trevor Roper chama de “o Aristóteles e o Montesquieu do século XVI”. Bodin, a quem se atribui o primeiro tratado sobre a inflação, participou de muitos juízos e escreveu um livro sobre “provas” (Demomania, 1580), no qual insistia que as bruxas deveriam ser queimadas vivas, em vez de serem “misericordiosamente” estranguladas antes de serem atiradas às chamas; que deveriam ser cauterizadas, de forma que sua carne apodrecesse antes de morrer; e que seus filhos também deveriam ser queimados.

Bodin não foi um caso isolado. Neste “século de gênios” — Bacon, Kepler, Galileu, Shakespeare, Pascal, Descartes — que foi testemunho do triunfo da revolução copernicana, do nascimento da ciência moderna e do desenvolvimento do racionalismo científico, a bruxaria tornou-se um dos temas de debate favoritos das elites intelectuais europeias. Juízes, advogados, estadistas, filósofos, cientistas e teólogos se preocuparam com o “problema”, escreveram panfletos e demonologias, concluíram que este era o crime mais vil e exigiram sua punição.13

Não pode haver dúvida, então, de que a caça às bruxas foi uma iniciativa política de grande importância. Reforçar este ponto não significa minimizar o papel que a Igreja Católica teve na perseguição. A Igreja Católica forneceu o arcabouço metafísico e ideológico para a caça às bruxas e estimulou a perseguição à elas, da mesma forma que anteriormente havia estimulado a perseguição aos hereges. Sem a Inquisição, sem as numerosas bulas papais que exortavam as autoridades seculares a procurar e castigar as “bruxas” e, sobretudo, sem os séculos de campanhas misóginas da Igreja contra as mulheres, a caça às bruxas não teria sido possível. Mas, ao contrário do que sugere o estereótipo, a caça às bruxas não foi somente um produto do fanatismo papal ou das maquinações da Inquisição Romana. No seu apogeu, as cortes seculares conduziram a maior parte dos juízos, enquanto, nas regiões nas quais a Inquisição operava (Itália e Espanha), a quantidade de execuções permaneceu comparativamente mais baixa. Depois da Reforma Protestante, que debilitou o poder da Igreja Católica, a Inquisição começou inclusive a conter o fervor das autoridades contra as bruxas, ao mesmo tempo que intensificava a perseguição aos judeus (Milano, 1963, p. 287-89)14. Além disso, a Inquisição sempre dependeu da cooperação do Estado para levar adiante as execuções, já que o clero queria evitar a vergonha do derramamento de sangue. A colaboração entre a Igreja e o Estado foi ainda maior nas regiões em que a Reforma levou o Estado a se tornar a Igreja (como na Inglaterra) ou a Igreja a se tornar Estado (como em Genebra, e, em menor grau, na Escócia). Nesses casos, um ramo do poder legislava e executava, e a ideologia religiosa revelava abertamente suas conotações políticas.

A natureza política da caça às bruxas também fica demonstrada pelo fato de que tanto as nações católicas quanto as protestantes, em guerra entre si quanto a todos as outras temáticas, se uniram e compartilharam argumentos para perseguir as bruxas. Não é um exagero dizer assim que a caça às bruxas foi o primeiro terreno de unidade na política dos novos Estados-nação europeus, o primeiro exemplo de unificação europeia depois do cisma provocado pela Reforma. Isto porque, atravessando todas as fronteiras, a caça às bruxas se disseminou da França e Itália para a Alemanha, Suíça, Inglaterra, Escócia e Suécia.

Que medos instigaram semelhante política combinada de genocídio? Por que se desencadeou semelhante violência? E por que foram as mulheres seus alvos principais?

Crenças diabólicas e mudanças no modo de produção

Devemos destacar de imediato que, até o dia de hoje, não existem respostas seguras a essas perguntas. Um obstáculo fundamental no caminho para encontrar uma explicação reside no fato de que as acusações contra as bruxas foram tão grotescas e inacreditáveis que não podem ser comparadas com nenhuma outra motivação ou crime15. Como dar conta do fato de que, durante mais de dois séculos, em distintos países europeus, centenas de milhares de mulheres foram julgadas, torturadas, queimadas vivas ou enforcadas, acusadas de ter vendido seu corpo e alma ao demônio e, por meios mágicos, assassinado inúmeras crianças, sugado seu sangue, fabricado poções com sua carne, causado a morte de seus vizinhos, destruindo gado e cultivos, provocado tempestades e realizado muitas outras abominações? (De todo modo, ainda hoje, alguns historiadores nos pedem que acreditemos que a caça às bruxas foi completamente razoável no contexto da estrutura de crenças da época!)

Um problema que se acrescenta a isso é que não contamos com o ponto de vista das vítimas, já que tudo o que restou das suas vozes são as confissões redigidas pelos inquisidores, geralmente obtidas sob tortura e, por melhor que escutemos — como foi feito por Carlo Ginzburg (1991) — o que vem à tona para além do folclore tradicional, por entre as fissuras das confissões que se encontram nos arquivos, não contamos com nenhuma forma de determinar sua autenticidade. Além disso, o extermínio das bruxas não pode ser explicado como sendo um simples produto da cobiça, já que nenhuma recompensa comparável às riquezas das Américas poderia ter sido obtida com a execução e o confisco dos bens de mulheres que eram pobres em sua maioria.16

É por esta razão que alguns historiadores, como Brian Levack, se abstiveram de apresentar uma teoria explicativa, contentando-se em identificar os pré-requisitos para a caça às bruxas — por exemplo, a mudança no procedimento legal de um sistema acusatório privado para um público durante a Baixa Idade Média; a centralização do poder estatal; e o impacto da Reforma e da Contrarreforma na vida social (Levack, 1987).

Não existe, entretanto, a necessidade de tal agnosticismo, nem temos que decidir se os caçadores de bruxas acreditavam realmente nas acusações que dirigiram contra suas vítimas ou se as empregavam cinicamente como instrumentos de repressão social. Se consideramos o contexto histórico no qual se produziu a caça às bruxas, o gênero e a classe dos acusados, bem como os efeitos da perseguição, podemos concluir que a caça às bruxas na Europa foi um ataque à resistência que as mulheres apresentaram contra a difusão das relações capitalistas e ao poder que obtiveram em virtude de sua sexualidade, seu controle sobre a reprodução e sua capacidade de curar.

A caça às bruxas foi também instrumento da construção de uma nova ordem patriarcal na qual os corpos das mulheres, seu trabalho, seus poderes sexuais e reprodutivos foram colocados sob o controle do Estado e transformados em recursos econômicos. O que quer dizer que os caçadores de bruxas estavam menos interessados no castigo de qualquer transgressão específica do que na eliminação de formas generalizadas de comportamento feminino que já não toleravam e que tinham que se tornar abomináveis aos olhos da população. O fato de que as acusações nos julgamentos referiam-se frequentemente a acontecimentos que tinham se dado havia várias décadas, de que a bruxaria fosse transformada em um crimen exceptum, ou seja, um crime que deveria ser investigado por meios especiais, incluindo a tortura, e de que eram puníveis inclusive na ausência de qualquer dano comprovado a pessoas e coisas, são todos fatores que indicam que o alvo da caça às bruxas — como ocorre frequentemente com a repressão política nas épocas de intensa mudança e conflito social — não eram crimes socialmente reconhecidos, mas práticas anteriormente aceitas de grupos de indivíduos que tinham que ser erradicados da comunidade por meio do terror e da criminalização. Neste sentido, a acusação de bruxaria cumpriu uma função similar à que cumpre o crime de “lesa-majestade” — que, de forma significativa, foi introduzida no código legal inglês no mesmo período — e a acusação de “terrorismo” atualmente. A própria obscuridade da acusação — o fato de que era impossível comprová-la, ao mesmo tempo em que evocava o máximo horror — implicava que pudesse ser utilizada para castigar qualquer forma de protesto, com a finalidade de gerar suspeita inclusive sobre os aspectos mais corriqueiros da vida cotidiana.

Uma primeira ideia sobre o significado da caça às bruxas na Europa pode ser encontrada na tese proposta por Michael Taussig, no seu clássico trabalho The Devil and Commodity Fetishism in South America (1980) O demônio e o fetichismo da mercadoria na América do Sul. Neste livro, o autor sustenta que as crenças diabólicas surgem nos períodos históricos em que um modo de produção é substituído por outro. Nestes períodos, não somente as condições materiais de vida são transformadas radicalmente, mas também os fundamentos metafísicos da ordem social — por exemplo, a concepção de como se cria o valor, do que gera vida e crescimento, do que é “natural” e do que é antagônico aos costumes estabelecidos e às relações sociais (Taussig, 1980, p. 17 e segs.). Taussig desenvolveu sua teoria a partir do estudo das crenças de trabalhadores rurais colombianos e mineiros de estanho bolivianos, numa época em que, em ambos países, estavam surgindo certas relações monetárias que, aos olhos do povo, estavam associadas com a morte e inclusive com o diabólico, comparadas com as formas de produção mais antigas, que ainda persistiam, orientadas à subsistência. Desse modo, nos casos analisados por Taussig, eram os pobres que suspeitavam da adoração ao demônio por parte dos mais ricos. Ainda assim, sua associação entre o diabo e a forma- mercadoria nos faz lembrar também que, por detrás da caça às bruxas, esteve a expansão do capitalismo rural, que incluiu a abolição de direitos consuetudinários e a primeira onda de inflação na Europa moderna. Estes fenômenos não somente levaram ao crescimento da pobreza, da fome e do deslocamento social (Le Roy Ladurie, 1974, p. 208), mas também transferiram o poder para as mãos de uma nova classe de “modernizadores” que viram com medo e repulsa as formas de vida comunais que haviam sido típicas da Europa pré-capitalista. Foi graças à iniciativa desta classe protocapitalista que a caça às bruxas alçou voo, tanto como uma “plataforma na qual uma ampla gama de crenças e práticas populares […] podiam ser perseguidas” (Normand e Roberts, 2000, p. 65), quanto como uma arma com a qual se podia derrotar a resistência à reestruturação social e econômica.

É significativo que a maioria dos julgamentos por bruxaria na Inglaterra tenham ocorrido em Essex, região em que a maior parte da terra foi cercada durante o século XVI17, enquanto nas Ilhas Britânicas, onde a privatização da terra não ocorreu e tampouco foi parte da agenda, não existem registros de caça às bruxas. Os exemplos mais marcantes, neste contexto, são a Irlanda e as Terras Altas Ocidentais da Escócia, onde não é possível encontrar nenhum rastro da perseguição, provavelmente porque em ambas as regiões ainda predominavam os laços de parentesco e um sistema coletivo de posse da terra, que impediram as divisões comunais e o tipo de cumplicidade com o Estado que tornou possível a caça às bruxas. Desta maneira, enquanto nas Terras Baixas da Escócia, que passaram por um processo de conversão à religião anglicana e de privatização, e onde a economia de subsistência foi desaparecendo sob o impacto da reforma presbiteriana, a caça às bruxas custou 4 mil vítimas, o equivalente a 1% da população feminina, nas Terras Altas da Escócia e na Irlanda, as mulheres estiveram a salvo na época da queima de bruxas.

Que a difusão do capitalismo rural, com todas suas consequências (expropriação da terra, aprofundamento das diferenças sociais, deterioração das relações coletivas), tenha sido um fator decisivo no contexto de caça às bruxas é algo que também se pode provar pelo fato de que a maioria dos acusados eram mulheres camponesas pobres — cottars,18 trabalhadoras assalariadas — enquanto que os que as acusavam eram abastados e prestigiosos membros da comunidade, muitas vezes seus próprios empregadores ou senhores de terra, ou seja, indivíduos que formavam parte das estruturas locais de poder e que, com frequência, tinham laços estreitos com o Estado central. Somente na medida em que a perseguição avançou e o medo de bruxas — assim como o medo de ser acusada de bruxaria ou de “associação subversiva” — foi disseminado entre a população, as acusações começaram a vir também dos vizinhos. Na Inglaterra, as bruxas eram normalmente mulheres velhas que viviam da assistência pública, ou mulheres que sobreviviam indo de casa em casa mendigando pedaços de comida, um jarro de vinho ou de leite; se estavam casadas, seus maridos eram trabalhadores diaristas, mas, na maioria das vezes, eram viúvas e viviam sozinhas. Sua pobreza se destaca nas confissões. Era em tempos de necessidade que o diabo aparecia para elas, para assegurar-lhes que a partir daquele momento “nunca mais deveriam pedir”, mesmo que o dinheiro que lhes seria entregue em tais ocasiões rapidamente se transformasse em cinzas, um detalhe talvez relacionado com a experiência da hiperinflação que era comum na época (Larner, 1983, p. 95; Mandrou, 1968, p. 77). Quanto aos crimes diabólicos das bruxas, eles não nos parecem mais que a luta de classes desenvolvida na escala do vilarejo: o “mau-olhado”, a maldição do mendigo a quem se negou a esmola, a inadimplência no pagamento do aluguel, a demanda por assistência pública (Macfarlane, 1970, p. 97; Thomas, 1971, p. 565; Kittredge, 1929, p. 163). As distintas formas pelas quais a luta de classes contribuiu na criação da figura da bruxa inglesa podem ser observadas nas acusações contra Margaret Harkett, uma velha viúva de sessenta e cinco anos enforcada em Tyburn em 1585:

Ela colheu uma cesta de peras no campo do vizinho sem pedir autorização. Quando pediram que as devolvesse, atirou-as no chão com raiva; desde então, nenhuma pera cresceu no campo. Mais tarde, o criado de William Goodwin negou-se a lhe dar levedura, ao que seu tonel para fermentar cerveja secou. Ela foi golpeada por um oficial de justiça que a havia visto roubando madeira do campo do senhor; o oficial enlouqueceu. Um vizinho não lhe emprestou um cavalo; todos os seus cavalos morreram. Outro pagou-lhe menos do que ela havia pedido por um par de sapatos; logo morreu. Um cavalheiro disse ao seu criado que não lhe desse leitelho; ao que não puderam fazer nem manteiga nem queijo. (Thomas, 1971, p. 556)

Encontramos o mesmo padrão de relatos no caso das mulheres que foram “apresentadas” ante a corte em Chelmsford, Windsor e Osyth. A Mãe Waterhouse, enforcada em Chelmsford em 1566, era uma “mulher muito pobre”, descrita como alguém que mendigava um pouco de bolo ou manteiga e “brigada” com muitos dos seus vizinhos (Rosen, 1969, p. 76-82). Elizabeth Stile, Mãe Devell, Mãe Margaret e Mãe Dutton, executadas em Windsor no ano de 1579, também eram viúvas pobres; Mãe Margaret vivia num abrigo, como a sua suposta líder, Mãe Seder, e todas saiam para mendigar, supostamente vingando-se no caso de recusa (ibidem, p. 83-91). Quando lhe negaram um pouco de levedura, Elizabeth Francis, uma das bruxas de Chelmsford, amaldiçoou uma vizinha, que, mais tarde, teve com uma forte dor de cabeça. Mãe Staunton cochichou de forma suspeita enquanto se afastava de um vizinho que lhe negou levedura, ao que o filho do vizinho adoeceu gravemente (ibidem, p. 96). Ursula Kemp, enforcada em Osyth no ano de 1582, tornou coxa uma tal de Grace depois que esta não lhe deu um pouco de queijo; também fez com que se inchasse o traseiro do filho de Agnes Letherdale, depois que esta lhe negou um punhado de areia para polir. Alice Newman amaldiçoou de morte Johnson, o cobrador de impostos dos pobres, depois que este se negou a lhe dar doze centavos; também castigou um tal Butler, que não lhe deu um pedaço de carne (ibidem, p. 119). Encontramos um padrão similar na Escócia, onde as acusadas também eram cottars pobres, que ainda possuíam um pedaço de terra próprio, mas que mal sobreviviam, frequentemente despertando a hostilidade de seus vizinhos por terem empurrado seu gado para pastar na terra deles ou por não terem pago o aluguel (Larner, 1983).

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Uma imagem clássica da bruxa inglesa: velha, decrépita, rodeada de animais e de suas cupinchas, e ainda mantendo uma postura provocadora. De The Wonderful Discoveries of the Witchcrafts of Margaret and Phillip Flowers, 1619.

Caça às bruxas e revolta de classes

Como podemos ver a partir desses casos, a caça às bruxas se desenvolveu em um ambiente no qual os “de melhor estirpe” viviam num estado de constante temor frente às “classes baixas”, das quais certamente se podia esperar que abrigassem pensamentos malignos, porque nesse período estavam perdendo tudo o que tinham.

Não surpreende que este medo se expressasse como um ataque na forma de magia popular. A batalha contra a magia sempre acompanhou o desenvolvimento do capitalismo, até os dias de hoje. A premissa da magia é que o mundo está vivo, é imprevisível e que existe uma força em todas as coisas, “água, árvores, substâncias, palavras […]” (Wilson, 2000, p. xvii). Desta maneira, cada acontecimento é interpretado como a expressão de um poder oculto que deve ser decifrado e desviado de acordo com a vontade de cada um. As implicações que isto tem na vida cotidiana vêm descritas, provavelmente com certo exagero, na carta que um sacerdote alemão enviou depois de uma visita pastoral a um vilarejo em 1594:

O uso de encantamentos está tão difundido que não há homem ou mulher que comece ou faça algo […] sem primeiro recorrer a algum sinal, encantamento, ato de magia ou método pagão. Por exemplo, durante as dores de parto, quando se pega ou se solta a criança […] quando se levam os animais ao campo […] quando um objeto foi perdido ou não conseguiram encontrá-lo [ …] ao fechar as janelas à noite, quando alguém adoece ou uma vaca comporta-se de forma estranha, recorrem imediatamente ao adivinho para perguntar-lhe quem os roubou, quem os enfeitiçou ou para obter um amuleto. A experiência cotidiana dessa gente nos mostra que não há limite para o uso das superstições […] Aqui, todos participam das práticas supersticiosas, com palavras, nomes, rimas, usando os nomes de Deus, da Santíssima Trinidade, da Virgem Maria, dos doze Apóstolos […] Estas palavras são pronunciadas tanto abertamente como em segredo; estão escritas em pedaços de papel, engolidos, levados como amuletos. Também fazem sinais, ruídos e gestos estranhos. E, depois, fazem magia com ervas, raízes e ramos de certas árvores; têm seu dia e lugar especial para todas essas coisas. (Strauss, 1975, p. 21)

Como aponta Stephen Wilson em The Magical Universe (2000, p. xviii) O universo mágico, as pessoas que praticavam esses rituais eram majoritariamente pobres que lutavam para sobreviver, sempre tentando evitar o desastre e com o desejo, portanto, de “aplacar, persuadir e inclusive manipular estas forças que controlam tudo […] para se manter longe de danos e do mal, e para obter o bem, que consistia na fertilidade, no bem-estar, na saúde e na vida”. Mas aos olhos da nova classe capitalista, esta concepção anárquica e molecular da difusão do poder no mundo era insuportável. Ao tentar controlar a natureza, a organização capitalista do trabalho devia rejeitar o imprevisível que está implícito na prática da magia, assim como a possibilidade de se estabelecer uma relação privilegiada com os elementos naturais e a crença na existência de poderes a que somente alguns indivíduos tinham acesso, não sendo, portanto, facilmente generalizáveis e exploráveis. A magia constituía também um obstáculo para a racionalização do processo de trabalho e uma ameaça para o estabelecimento do princípio da responsabilidade individual. Sobretudo, a magia parecia uma forma de rejeição do trabalho, de insubordinação, e um instrumento de resistência de base ao poder. O mundo devia ser “desencantado” para poder ser dominado.

Por volta do século XVI, o ataque contra a magia já estava no seu auge e as mulheres eram os alvos mais prováveis. Mesmo quando não eram feiticeiras/magas experientes, chamavam-nas para marcar os animais quando adoeciam, para curar seus vizinhos, para ajudar-lhes a encontrar objetos perdidos ou roubados, para lhes dar amuletos ou poções para o amor ou para ajudar-lhes a prever o futuro. Embora a caça às bruxas estivesse dirigida a uma ampla variedade de práticas femininas, foi principalmente devido a essas capacidades — como feiticeiras, curandeiras, encantadoras ou adivinhas — que as mulheres foram perseguidas,19 pois, ao recorrerem ao poder da magia, debilitavam o poder das autoridades e do Estado, dando confiança aos pobres em sua capacidade para manipular o ambiente natural e social e, possivelmente, subverter a ordem constituída.

Por outro lado, é de se duvidar que as artes mágicas que as mulheres praticaram durante gerações tivessem sido ampliadas até o ponto de se converterem em uma conspiração demoníaca, se não tivessem ocorrido num contexto de intensa crise e luta social. A coincidência entre crise socioeconômica e caça às bruxas foi apontada por Henry Kamen, que observou que foi “exatamente no período em que houve o aumento de preços mais importante (entre o final do século XVI e a primeira metade do século XVII) que houve o maior número de acusações e perseguições” (Kamen, 1972, p. 249).20

Ainda mais significativa é a coincidência entre a intensificação da perseguição e a eclosão das revoltas urbanas e rurais. Tais revoltas foram as “guerras camponesas” contra a privatização da terra, que incluíram as insurreições contra os “cercamentos” na Inglaterra (em 1549, 1607, 1628, 1631), quando centenas de homens, mulheres e crianças, armados com forquilhas e pás, começaram a destruir as cercas erguidas ao redor das terras comunais, proclamando que “a partir de agora nunca mais precisaremos trabalhar”. Na França, entre 1593 e 1595, ocorreu a revolta dos croquants contra os dízimos, os impostos excessivos e o aumento do preço do pão, um fenômeno que causou fome extrema em massa em amplas áreas da Europa.

Durante estas revoltas, muitas vezes, eram as mulheres que iniciavam e dirigiam a ação. Um exemplo disso foi a revolta ocorrida em Montpellier, no ano de 1645, que foi iniciada por mulheres que tentavam proteger seus filhos da fome, assim como a revolta de Córdoba, em 1652, que também foi promovida por mulheres. Além disso, as mulheres — depois que as revoltas foram esmagadas e muitos dos homens foram encarcerados ou massacrados — persistiram no propósito de levar adiante a resistência, ainda que fosse de forma subterrânea. Isto é o que pode ter acontecido no sudoeste da Alemanha, onde, duas décadas após o fim da Guerra dos Camponeses, começou a se desenvolver a caça às bruxas. Ao escrever sobre a questão, Eric Midelfort rejeitou a tese da existência de uma conexão entre esses dois fenômenos (Midelfort, 1972, p. 68). Todavia, tal autor não questionou se havia relações familiares ou comunitárias, como as que Le Roy Ladurie encontrou em Cevennes,21 entre, por um lado, os milhares de camponeses que, de 1476 até 1525, se levantaram continuamente empunhando armas contra o poder feudal, mas acabaram brutalmente derrotados, e, por outro, as inúmeras mulheres que, menos de duas décadas mais tarde, foram levadas à fogueira na mesma região e nos mesmo vilarejos. Contudo, podemos imaginar que o feroz trabalho de repressão conduzido pelos príncipes alemães e as centenas e centenas de camponeses crucificados, decapitados e queimados vivos, sedimentaram ódios insaciáveis e planos secretos de vingança, sobretudo entre as mulheres mais velhas, que haviam testemunhado e recordavam esses acontecimentos e que, por isso, eram mais inclinadas a tornar pública, de diversas maneiras, sua hostilidade contra as elites locais.

A perseguição às bruxas se desenvolveu nesse terreno. Foi uma guerra de classes levada a cabo por outros meios. Não podemos deixar de ver, nesse contexto, uma conexão entre o medo da revolta e a insistência dos acusadores no sabá ou na Sinagoga das Bruxas,22 a famosa reunião noturna, na qual supostamente se reuniam milhares de pessoas, vindo, muitas vezes, de lugares muito distantes. Não há como determinar se, ao evocar os horrores do sabá, as autoridades miravam para formas de organização reais. Mas não há dúvida de que, na obsessão dos juízes por estas reuniões diabólicas, além do eco da perseguição aos judeus, escutamos o eco das reuniões secretas que os camponeses realizavam à noite, nas colinas desertas e nos bosques, para planejar suas revoltas.23 A historiadora italiana Luisa Muraro escreveu sobre estas reuniões na obra La Signora del Gioco A Senhora do Jogo, um estudo sobre os julgamentos das bruxas que ocorreram nos Alpes Italianos no começo do século XVI:

Durante os julgamentos em Val di Fiemme, uma das acusadas disse espontaneamente aos juízes que, uma noite, enquanto estava nas montanhas com sua sogra, viu um grande fogo ao longe. “Fuja, fuja”, gritou sua avó, “esse é o fogo da Senhora do Jogo”. “Jogo” (gioco), em muitos dialetos do norte da Itália, é o nome mais antigo para o sabá (nos julgamentos de Val di Fiemme, ainda se menciona a uma figura feminina que dirigia o jogo) […] Em 1525, na mesma região, houve um levante campesino. Eles exigiam a eliminação de dízimos e tributos, liberdade para caçar, menos conventos, hospitais para os pobres, o direito de cada vilarejo eleger seu sacerdote […] Incendiaram castelos, conventos e casas do clero. Porém, foram derrotados, massacrados e os que sobreviveram foram perseguidos durante anos por vingança das autoridades.

Muraro conclui:

O fogo da senhora do jogo desaparece ao longe, enquanto que, no primeiro plano, estão os fogos da revolta e as fogueiras da repressão […] Só podemos supor que os camponeses se reuniam secretamente à noite ao redor de uma fogueira para se esquentar e conversar […] e que aqueles que sabiam guardavam sigilo sobre estas reuniões proibidas, apelando à velha lenda […] Se as bruxas tinham segredos, esse deve ter sido um deles. (Muraro, 1977, p. 46-7).

A revolta de classe, somada à transgressão sexual, era um elemento central nas descrições do sabá, retratado como uma monstruosa orgia sexual e como uma reunião política subversiva, que culminava com a descrição dos crimes que os participantes haviam cometido e com o diabo dando instruções às bruxas para se rebelarem contra seus senhores. Também é significativo que o pacto entre a bruxa e o diabo era chamado de conjuratio, como os pactos que os escravos e trabalhadores em luta faziam frequentemente (Dockes, 1982, p. 222; Tigar e Levy, 1977, p. 136), e o fato de que, na visão dos acusadores, o diabo representava uma promessa de amor, poder e riquezas pelas quais uma pessoa estava disposta a vender sua alma, ou seja, infringir todas as leis naturais e sociais.

A ameaça de canibalismo, que era um tema central na morfologia do sabá, recorda também, segundo Henry Kamen, a morfologia das revoltas, já que os trabalhadores rebeldes às vezes demonstravam seu desprezo por aqueles que vendiam seu sangue, ameaçando comê-los24. Kamen menciona o que ocorreu no povoado de Romans (em Delfinado, na França), no inverno de 1580, quando os camponeses rebelados contra os dízimos proclamaram que “em menos de três dias, se venderá carne cristã” e, então, durante o carnaval, “o líder dos rebeldes, vestido com pele de urso, comeu iguarias que se fizeram passar por carne cristã” (Kamen, 1972, p. 334; Le Roy Ladurie, 1981, p. 189-216). Noutra ocasião, em Nápoles, no ano de 1585, durante um protesto contra os altos preços do pão, os rebeldes mutilaram o corpo do magistrado responsável pelo aumento e colocaram à venda pedaços da sua carne (Kamen, 1972, p. 335). Kamen aponta que comer carne humana simbolizava uma inversão total dos valores sociais, indo ao encontro da imagem da bruxa como personificação da perversão moral que sugerem muitos dos rituais atribuídos à prática da bruxaria: a missa celebrada ao contrário, as danças em sentido anti-horário (Clark, 1980; Kamen, 1972). De fato, a bruxa era um símbolo vivo do “mundo ao contrário”, uma imagem recorrente na literatura da Idade Média, vinculada a aspirações milenares de subversão da ordem social.

A dimensão subversiva e utópica do sabá das bruxas é destacada também, de um ângulo diferente, por Luciano Parinetto, que, em Streghe e Potere (1998) Bruxas e poder, insistiu na necessidade de realizar uma interpretação moderna desta reunião, fazendo-se uma leitura de seus aspectos transgressores do ponto de vista do desenvolvimento de uma disciplina capitalista do trabalho. Parinetto aponta que a dimensão noturna do sabá era uma violação à regularização capitalista contemporânea do tempo de trabalho, bem como um desafio à propriedade privada e à ortodoxia sexual, já que as sombras noturnas confundiam as distinções entre os sexos e entre “o meu e o seu”. Parinetto sustenta também que o voo, a viagem, um elemento importante nas acusações contra as bruxas, deve ser interpretado como um ataque à mobilidade dos imigrantes e dos trabalhadores itinerantes, um fenômeno novo, refletido no medo que pairava contra os vagabundos, que tanto preocupavam as autoridades nesse período. Parinetto conclui que, considerado em sua especificidade histórica, o sabá noturno aparece como uma demonização da utopia encarnada na rebelião contra os senhores e como uma ruptura dos papéis sexuais, representando também um uso do espaço e do tempo contrário à nova disciplina capitalista do trabalho.

Nesse sentido, há uma continuidade entre a caça às bruxas e a perseguição precedente dos hereges que castigou formas específicas de subversão social com o pretexto de impor uma ortodoxia religiosa. De forma significativa, a caça às bruxas se desenvolveu primeiro nas zonas onde a perseguição aos hereges foi mais intensa (no sul da França, na Cordilheira do Jura, no norte da Itália). Em algumas regiões da Suíça, numa fase inicial, as bruxas eram chamadas pela expressão herege ou vaudois (“valdenses”) (Monter, 1976, p. 22; Russell, 1972, p. 34 e segs.)25. Além disso, os hereges também foram queimados na fogueira como traidores da verdadeira religião e foram acusados de crimes que logo entraram no decálogo da bruxaria: sodomia, infanticídio, adoração aos animais. Em certa medida, se trata de acusações habituais que a Igreja sempre lançou contra as religiões rivais. Mas, como vimos, a revolução sexual foi um ingrediente essencial do movimento herético, desde os cátaros até os adamitas.

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Hereges valdenses, tal como representados no Tractatus contra sectum Valdensium, de Johannes Tinctoris (c. 1460). A caça às bruxas se desenvolveu primeiro nas regiões em que a perseguição aos hereges havia sido mais intensa. No primeiro período, em algumas áreas da Suíça, as bruxas eram conhecidas como waudois.

Os cátaros, em particular, desafiaram a degradada visão das mulheres que tinha a Igreja e defendiam a rejeição ao matrimônio e inclusive à procriação, que consideravam uma forma de enganar a alma. Também adotaram a religião maniqueísta, que, de acordo com alguns historiadores, foi responsável pela crescente preocupação da Igreja, na Baixa Idade Média, com a presença do diabo no mundo e pela visão da bruxaria como uma espécie de contra-Igreja por parte da Inquisição. Desta maneira, não há como duvidar da continuidade entre a heresia e a bruxaria, ao menos nesta primeira etapa da caça às bruxas. No entanto, a caça às bruxas se deu em um contexto histórico distinto, que havia sido transformado de forma dramática, primeiro pelos traumas e deslocamentos produzidos pela Peste Negra — um divisor de águas na história europeia — e, mais tarde, no século XV, pela profunda mudança nas relações de classe que trouxe consigo a reorganização capitalista da vida econômica e social. Inevitavelmente, então, até mesmo os elementos de continuidade visíveis (por exemplo, o banquete noturno promíscuo) tinham um significado diferente do que tiveram seus antecessores na luta da Igreja contra os hereges.

A caça às bruxas, a caça às mulheres e a acumulação do trabalho

A diferença mais importante entre a heresia e a bruxaria é que esta última era considerada um crime feminino. Isto pode ser notado especialmente no momento em que a perseguição alcançou seu ponto máximo, no período compreendido entre 1550 e 1650. Em um momento anterior, os homens chegaram a representar cerca de 40% dos acusados e um número menor deles continuou sendo processado posteriormente, sobretudo vagabundos, mendigos, trabalhadores itinerantes, assim como ciganos e padres de classe baixa. Já no século XVI, a acusação de adoração ao demônio se tornou um tema comum nas lutas políticas e religiosas; quase não houve bispo ou político que, no momento de maior exaltação, não fosse acusado de praticar bruxaria. Protestantes acusavam católicos, especialmente o papa, de servir ao demônio; o próprio Lutero foi acusado da prática de magia, como também o foram John Knox na Escócia, Jean Bodin na França e muitos outros. Os judeus também foram seguidamente acusados de adorar ao demônio e, muitas vezes, foram retratados com chifres e garras. Mas o fato mais notável é que mais de 80% das pessoas julgadas e executadas na Europa, nos séculos XVI e XVII pelo crime de bruxaria, foram mulheres. De fato, mais mulheres foram perseguidas por bruxaria neste período do que por qualquer outro crime, exceto, de forma significativa, o de infanticídio.

O fato de que a figura da bruxa fosse uma mulher também era enfatizado pelos demonólogos, que se regozijavam por Deus ter livrado os homens de tamanho flagelo. Como fez notar Sigrid Brauner (1995), os argumentos que se usaram para justificar esse fenômeno foram mudando. Enquanto os autores do Malleus Maleficarum explicavam que as mulheres tinham mais tendência à bruxaria devido à sua “luxúria insaciável”, Martinho Lutero e os escritores humanistas ressaltaram as debilidades morais e mentais das mulheres como origem dessa perversão. De todo modo, todos apontavam as mulheres como seres diabólicos.

Outra diferença entre as perseguições aos hereges e às bruxas é que as acusações de perversão sexual e infanticídio contra estas tinham um papel central e estavam acompanhadas pela virtual demonização das práticas contraceptivas.

A associação entre contracepção, aborto e bruxaria apareceu pela primeira vez na Bula de Inocêncio VIII (1484), que se queixava de que

através de seus encantamentos, feitiços, conjurações, além de outras superstições execráveis e sortilégios, atrocidades e ofensas horrendas, as bruxas destroem as crias das mulheres […] Elas impedem a procriação dos homens e a concepção das mulheres; daí que nem os maridos podem realizar o ato sexual com suas mulheres nem as mulheres podem realizá-lo com seus maridos (Kors e Peters, 1972, p. 107-08).

A partir desse momento, os crimes reprodutivos ocuparam um lugar de destaque nos julgamentos. No século XVII, as bruxas foram acusadas de conspirar para destruir a potência geradora de humanos e animais, de praticar abortos e de pertencer a uma seita infanticida dedicada a assassinar crianças ou ofertá-las ao demônio. Também na imaginação popular, a bruxa começou a ser associada à imagem de uma velha luxuriosa, hostil à vida nova, que se alimentava de carne infantil ou usava os corpos das crianças para fazer suas poções mágicas — um estereótipo que, mais tarde, seria popularizado pelos livros infantis.

Qual foi a razão de tal mudança na trajetória que vai da heresia à bruxaria? Em outras palavras, por que, no transcurso de um século, os hereges tornaram-se mulheres e por que a transgressão religiosa e social foi redefinida como, predominantemente, um crime reprodutivo?

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Bruxas assando crianças. Do Compendium Maleficarum, 1608, de Francesco Maria Guazzo.

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O drama da mortalidade infantil é bem expresso nesta imagem de Hans Holbein, o Jovem, A dança da morte, uma série de 41 desenhos impressos na França, em 1538.

Na década de 1920, a antropóloga inglesa Margaret Murray propôs, em The Witch-Cult in Western Europe (1921) O culto à bruxaria na Europa ocidental, uma explicação que foi recentemente utilizada pelas ecofeministas e praticantes da “Wicca”. Murray defendeu que a bruxaria foi uma religião matrifocal, na qual a Inquisição centrou sua atenção depois da derrota das heresias, estimulada por um novo medo à desviação doutrinal. Em outras palavras, as mulheres processadas como bruxas pelos demonólogos eram (de acordo com esta teoria) praticantes de antigos cultos de fertilidade destinados a propiciar partos e reprodução — cultos que existiram nas regiões do Mediterrâneo durante milhares de anos, mas aos quais a Igreja se opôs por representarem ritos pagãos, além de constituírem uma ameaça ao seu poder26. Entre os fatores mencionados na defesa dessa perspectiva, estão: a presença de parteiras entre as acusadas; o papel que as mulheres tiveram na Idade Média como curandeiras comunitárias e o fato de que, até o século XVI, o parto fosse considerado um “mistério” feminino. Entretanto, essa hipótese não é capaz de explicar a sequência cronológica da caça às bruxas, nem de nos dizer por que estes cultos da fertilidade se tornaram tão abomináveis aos olhos das autoridades a ponto de levar ao extermínio das mulheres que praticavam a antiga religião.

Uma explicação distinta é a que aponta a proeminência dos crimes reprodutivos nos julgamentos por bruxaria como uma consequência das altas taxas de mortalidade infantil, que eram típicas dos séculos XVI e XVII, devido ao crescimento da pobreza e a desnutrição. As bruxas, segundo se sustenta, eram acusadas pelo fato de que morriam muitas crianças, porque elas morriam subitamente, morriam pouco depois de nascer ou porque eram vulneráveis a uma grande gama de enfermidades. Esta explicação, entretanto, não vai muito longe. Ela não dá conta do fato de que as mulheres que eram chamadas de bruxas também eram acusadas de impedir a concepção e não é capaz de situar a caça às bruxas no contexto da política econômica e institucional do século XVI. Desta maneira, perde de vista a significativa conexão entre o ataque às bruxas e o desenvolvimento de uma nova preocupação, entre os estadistas e economistas europeus, com a questão da reprodução e do tamanho da população, a rubrica sob a qual se discutia a questão da extensão da força de trabalho naquela época. Como vimos anteriormente, a questão do trabalho se tornou especialmente urgente no século XVII, quando a população na Europa começou a entrar em declínio novamente, fazendo surgir o espectro de um colapso demográfico similar ao que se deu nas colônias americanas nas décadas que se seguiram à conquista colonial. Com este plano de fundo, parece plausível que a caça às bruxas fosse, pelo menos em parte, uma tentativa de criminalizar o controle da natalidade e de colocar o corpo feminino, o útero, a serviço do aumento da população e da acumulação da força de trabalho.

Essa é uma hipótese; o que podemos afirmar com certeza é que a caça às bruxas foi promovida por uma classe política que estava preocupada com a diminuição da população e motivada pela convicção de que uma população numerosa constitui a riqueza de uma nação. O fato de que os séculos XVI e XVII marcaram o momento de apogeu do mercantilismo e testemunharam o começo dos registros demográficos (de nascimentos, mortes e matrimônios), do recenseamento e da formalização da própria demografia, como a primeira “ciência de Estado”, é uma prova clara da importância estratégica que começava a adquirir o controle dos movimentos da população para os círculos políticos que instigavam a caça às bruxas (Cullen, 1975, p. 6 e segs.).27

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Bruxas oferecem crianças ao Diabo. Xilogravura de um folheto sobre o processo de Agnes Sampson, 1591.

Também sabemos que muitas bruxas eram parteiras ou “mulheres sábias”, tradicionalmente depositárias do conhecimento e do controle reprodutivo das mulheres (Midelfort, 1972, p. 172). O Malleus dedicou-lhes um capítulo inteiro, no qual afirmava-se que elas eram piores que quaisquer outras mulheres, já que ajudavam as mães a destruir o fruto do seu ventre, uma conspiração facilitada, acusavam, pela restrição à entrada de homens nas habitações onde as mulheres pariam.28 Ao notarem que não havia uma só cabana que não desse guarida a alguma parteira, os autores recomendaram que essa arte não deveria ser permitida a nenhuma mulher, a menos que demonstrasse de antemão ser uma “boa católica”. Esta recomendação não passou despercebida. Como vimos, as parteiras ou eram contratadas para vigiar as mulheres (para verificar, por exemplo, se não ocultavam uma gravidez ou se tinham filhos fora do casamento) ou eram marginalizadas. Tanto na França quanto na Inglaterra, a partir do final do século XVI, poucas mulheres foram autorizadas a praticar a obstetrícia, uma atividade que, até então, havia sido seu mistério inviolável. Por volta do início do século XVII, começaram a aparecer os primeiros homens parteiros e, em questão de um século, a obstetrícia havia caído quase completamente sob controle estatal. Segundo Alice Clark:

O contínuo processo de substituição das mulheres por homens na profissão é um exemplo do modo como elas foram excluídas de todos os ramos de trabalho especializado, conforme as oportunidades de obtenção de um treinamento profissional adequado lhes eram negadas. (Clark, 1968, p. 265)

Contudo, interpretar o declínio social da parteira como um caso de desprofissionalização feminina deixa escapar sua importância fundamental. Há provas convincentes de que, na verdade, as parteiras foram marginalizadas porque não eram vistas como confiáveis e porque sua exclusão da profissão acabou com o controle das mulheres sobre a reprodução.29

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Três mulheres são queimadas vivas no mercado de Guernsey, Inglaterra. Gravura anônima do século XVI.

Do mesmo modo que os cercamentos expropriaram as terras comunais do campesinato, a caça às bruxas expropriou os corpos das mulheres, os quais foram assim “liberados” de qualquer obstáculo que lhes impedisse de funcionar como máquinas para produzir mão de obra. A ameaça da fogueira ergueu barreiras mais formidáveis ao redor dos corpos das mulheres do que aquelas levantadas quando as terras comunais foram cercadas.

De fato, podemos imaginar o efeito que teve nas mulheres o fato de ver suas vizinhas, amigas e parentes ardendo na fogueira e se dar conta de que qualquer iniciativa contraceptiva de sua parte poderia ser interpretada como produto de uma perversão demoníaca30. Procurar entender o que as mulheres caçadas como bruxas e as demais mulheres de suas comunidades deviam pensar, sentir e decidir a partir desse horrendo ataque contras elas — em outras palavras, lançar um olhar à perseguição “vindo de dentro”, como Anne L. Barstow fez no seu Witchcraze (1994) — também nos possibilita evitar a especulação sobre as intenções dos perseguidores e nos concentrar, por outro lado, nos efeitos que a caça às bruxas provocou sobre a posição social das mulheres. Desse ponto de vista, não pode haver dúvida de que a caça às bruxas destruiu os métodos que as mulheres utilizavam para controlar a procriação, posto que eles eram denunciados como instrumentos diabólicos, e institucionalizou o controle do Estado sobre o corpo feminino, o principal pré-requisito para sua subordinação à reprodução da força de trabalho.

Todavia, a bruxa não era só a parteira, a mulher que evitava a maternidade, ou a mendiga que, a duras penas, ganhava a vida roubando um pouco de lenha ou de manteiga de seus vizinhos. Também era a mulher libertina e promíscua — a prostituta ou a adúltera e, em geral, a mulher que praticava sua sexualidade fora dos vínculos do casamento e da procriação. Por isso, nos julgamentos por bruxaria, a “má reputação” era prova da culpa. A bruxa era também a mulher rebelde que respondia, discutia, insultava e não chorava sob tortura. Aqui, a expressão “rebelde” não se refere necessariamente a nenhuma atividade subversiva específica na qual pode estar envolvida uma mulher. Pelo contrário, descreve a personalidade feminina que se havia desenvolvido, especialmente entre o campesinato, no contexto da luta contra o poder feudal, quando as mulheres atuaram à frente dos movimentos heréticos, muitas vezes organizadas em associações femininas, apresentando um desafio crescente à autoridade masculina e à Igreja. As descrições das bruxas nos lembram as mulheres tal como eram representadas nos autos de moralidade medievais e nos fabliaux: prontas para tomar a iniciativa, tão agressivas e vigorosas quanto os homens, vestindo roupas masculinas ou montando com orgulho nas costas dos seus maridos, segurando um chicote.

Sem dúvida, entre as acusadas havia mulheres suspeitas de crimes específicos. Uma foi acusada de envenenar seu marido, outra de causar a morte do seu empregador, outra de ter prostituído sua filha (Le Roy Ladurie, 1974, p. 203-04). Porém, não só as mulheres delinquentes eram levadas a juízo, mas as mulheres enquanto mulheres, em particular aquelas das classes inferiores, as quais geravam tanto medo que, nesse caso, a relação entre educação e punição foi virada de ponta-cabeça. “Devemos disseminar o terror entre algumas, castigando muitas”, declarou Jean Bodin. E, de fato, em alguns vilarejos poucas foram poupadas.

Além disso, o sadismo sexual demonstrado durante as torturas às quais eram submetidas as acusadas revela uma misoginia sem paralelo na história e não pode ser justificado a partir de nenhum crime específico. De acordo com o procedimento padrão, as acusadas eram despidas e depiladas completamente (se dizia que o demônio se escondia entre seus cabelos); depois, eram furadas com longas agulhas por todo seu corpo, inclusive suas vaginas, em busca do sinal com o qual o diabo supostamente marcava suas criaturas (tal como os patrões na Inglaterra faziam com os escravos fugitivos). Muitas vezes, elas eram estupradas; investigava-se se eram ou não virgens — um sinal da sua inocência; e, se não confessavam, eram submetidas a ordálias ainda mais atrozes: seus membros eram arrancados, sentavam-nas em cadeiras de ferro embaixo das quais se acendia fogo; seus ossos eram esmagados. E quando eram enforcadas ou queimadas, tomava-se cuidado para que a lição a ser extraída de sua pena não fosse ignorada. A execução era um importante evento público que todos os membros da comunidade deviam presenciar, inclusive os filhos das bruxas, e especialmente suas filhas que, em alguns casos, eram açoitadas em frente à fogueira na qual podiam ver sua mãe ardendo viva.

A caça às bruxas foi, portanto, uma guerra contra as mulheres; foi uma tentativa coordenada de degradá-las, demonizá-las e destruir seu poder social. Ao mesmo tempo, foi precisamente nas câmaras de tortura e nas fogueiras, nas quais as bruxas morreram, onde se forjaram os ideais burgueses de feminilidade e domesticidade.

Também nesse caso, a caça às bruxas amplificou as tendências sociais contemporâneas. De fato, existe uma continuidade inconfundível entre as práticas que foram alvo da caça às bruxas e aquelas que estavam proibidas pela nova legislação introduzida na mesma época, com a finalidade de regular a vida familiar e as relações de gênero e de propriedade. De um extremo ao outro da Europa ocidental, à medida que a caça às bruxas avançava, aprovavam-se leis que castigavam as adúlteras com a morte (na Inglaterra e na Escócia com a fogueira, como no caso de crime de lesa-majestade), a prostituição era colocada na ilegalidade, assim como os nascimentos fora do casamento, ao passo que o infanticídio foi transformado em crime capital.31 Ao mesmo tempo, as amizades femininas tornaram-se objeto de suspeita, denunciadas no púlpito como uma subversão da aliança entre marido e mulher, da mesma maneira que as relações entre mulheres foram demonizadas pelos acusadores das bruxas, que as forçavam a delatar umas às outras como cúmplices do crime. Foi também neste período que a palavra “gossip” fofoca, que na Idade Média significava “amigo”, mudou de significado, adquirindo uma conotação depreciativa: mais um sinal do grau a que o poder das mulheres e os laços comunais foram solapados.

Há também, no plano ideológico, uma estreita correspondência entre a imagem degradada da mulher, forjada pelos demonólogos, e a imagem da feminilidade construída pelos debates da época sobre a “natureza dos sexos”32, que canonizava uma mulher estereotipada, fraca do corpo e da mente e biologicamente inclinada ao mal, o que efetivamente servia para justificar o controle masculino sobre as mulheres e a nova ordem patriarcal.

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O diabo leva a alma de uma mulher que o servia. Xilogravura de Olaus Magnus, Historia de Gentibus Septentrionalibus (Roma, 1555).

A caça às bruxas e a supremacia masculina: a domesticação das mulheres

A política sexual da caça às bruxas é revelada pela relação entre a bruxa e o diabo, que constitui uma das novidades introduzidas pelos julgamentos dos séculos XVI e XVII. A Grande Caça às Bruxas marcou uma mudança na imagem do diabo em comparação àquela que podia ser encontrada nas hagiografias medievais ou nos livros dos magos do Renascimento. No imaginário anterior, o diabo era retratado como um ser maligno, mas com pouco poder — em geral, bastava borrifar água benta e dizer algumas palavras santas para derrotar suas tramas. Sua imagem era a de um malfeitor fracassado que, longe de inspirar terror, possuía algumas virtudes. O diabo medieval era um especialista em lógica, competente em assuntos legais, às vezes representado atuando na defesa de seu caso perante um tribunal (Seligman, 1948, p. 151-58)33. Também era um trabalhador qualificado, que podia ser usado para cavar minas ou construir muralhas de cidades, ainda que fosse rotineiramente enganado ao chegar o momento de receber sua recompensa. A visão renascentista da relação entre o diabo e o mago também retratava sempre o diabo como um ser subordinado, chamado ao dever, querendo ou não, como um criado, e feito para agir de acordo com a vontade do seu senhor.

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Mulheres voam em suas vassouras para o Sabá, depois de aplicar unguentos em seus corpos. Estampa francesa do século XVI, de Dialogues touchant le pouvoir des sorcières (1570), de Thomas Erastus.

A caça às bruxas inverteu a relação de poder entre o diabo e a bruxa. Agora, a mulher era a criada, a escrava, o súcubo de corpo e alma, enquanto o diabo era, ao mesmo tempo, seu dono e senhor, cafetão e marido. Por exemplo, era o diabo que “se dirigia à suposta bruxa. Ela raramente o fazia aparecer” (Larner, 1983, p. 148). Depois de aparecer para ela, o diabo pedia-lhe que se tornasse sua criada e o que vinha a seguir era um exemplo clássico da relação senhor/escravo, marido/mulher. Ele imprimia-lhe sua marca, tinha relações sexuais com ela e, em alguns casos, inclusive modificava seu nome (Larner, 1983, p. 148). Além disso, em uma clara previsão do destino matrimonial das mulheres, a caça às bruxas introduzia um só diabo, no lugar da multidão de diabos que pode ser encontrada no mundo medieval e renascentista, e um diabo masculino, por sinal, em contraste com as figuras femininas (Diana, Hera, “la Signora del zogo”), cujos cultos estavam presentes entre as mulheres da Idade Média, tanto nas regiões mediterrâneas quanto nas teutônicas.

O quão preocupados estavam os caçadores de bruxas com a afirmação da supremacia masculina pode ser constatado pelo fato de que, até mesmo quando se rebelavam contra as leis humanas e divinas, as mulheres tinham que ser retratadas como subservientes a um homem e o ponto culminante de sua rebelião — o famoso pacto com o diabo — devia ser representado como um contrato de casamento pervertido. A analogia matrimonial era levada a tal ponto que as bruxas chegavam a confessar que elas “não se atreviam a desobedecer o diabo” ou, ainda mais curioso, que elas não tinham nenhum prazer em copular com ele, uma contradição no que diz respeito à ideologia da caça às bruxas, para a qual a bruxaria era consequência da luxúria insaciável das mulheres.

A caça às bruxas não só santificava a supremacia masculina, como também induzia os homens a temer as mulheres e até mesmo a vê-las como destruidoras do sexo masculino. Segundo pregavam os autores de Malleus Maleficarum, as mulheres eram lindas de se ver, mas contaminavam ao serem tocadas; elas atraem os homens, mas só para fragilizá-los; fazem de tudo para lhes satisfazer, mas o prazer que dão é mais amargo que a morte, pois seus vícios custam aos homens a perda de suas almas — e talvez seus órgãos sexuais (Kors e Peters, 1972, p. 114-15). Supostamente, uma bruxa podia castrar os homens ou deixá-los impotentes, seja por meio do congelamento de suas forças geradoras ou fazendo com que um pênis se levantasse e caísse, segundo sua vontade34. Algumas roubavam os pênis dos homens, escondendo-os, em grandes quantidades, em ninhos de aves ou em caixas, até que, sob pressão, eram forçadas a devolvê-los aos seus donos.35

Mas quem eram essas bruxas que castravam os homens e os deixavam impotentes? Potencialmente, todas as mulheres. Num vilarejo ou cidade pequena de uns poucos milhares de habitantes, onde, durante o momento de apogeu da caça às bruxas, dezenas de mulheres foram queimadas em poucos anos ou até mesmo em poucas semanas, nenhum homem podia sentir-se a salvo ou estar seguro de que não vivia com uma bruxa. Muitos deviam ficar aterrorizados ao ouvir que, à noite, algumas mulheres deixavam seu leito matrimonial para viajar ao sabá, enganando seus maridos que dormiam, colocando uma estaca perto deles; ou ao escutar que as mulheres tinham o poder de fazer com que seus pênis desaparecessem, como a bruxa mencionada no Malleus, que armazenou dezenas deles em uma árvore.

Apesar das tentativas individuais de filhos, maridos ou pais salvarem suas parentes mulheres da fogueira, não há registro, salvo uma exceção, de qualquer organização masculina que se opusesse à perseguição, o que sugere que a propaganda teve êxito em separar as mulheres dos homens. A exceção é o caso dos pescadores de uma região basca, em que o inquisidor francês Pierre Lancre estava conduzindo julgamentos em massa, que levaram à queima de aproximadamente seiscentas mulheres. Mark Kurlansky relata que os pescadores estiveram ausentes, pois estavam ocupados com a temporada anual do bacalhau. Porém,

quando os homens da frota de bacalhau de St.-Jean-de-Luz, uma das maiores do País Basco, ouviram rumores de que suas esposas, mães e filhas estavam sendo despidas, apunhaladas e que muitas delas já haviam sido executadas, a campanha do bacalhau de 1609 terminou dois meses antes do normal. Os pescadores regressaram com porretes nas mãos e libertaram um comboio de bruxas que estavam sendo levadas ao lugar da queima. Esta resistência popular foi suficiente para deter os julgamentos […] (Kurlansky 2001, p. 102).

A intervenção dos pescadores bascos contra a perseguição de suas parentes foi um acontecimento único. Nenhum outro grupo ou organização se levantou em defesa das bruxas. Sabemos, por outro lado, que alguns homens fizeram negócios voltados à denúncia de mulheres, designando-se a si mesmos como “caçadores de bruxas”, viajando de vilarejo em vilarejo ameaçando delatar as mulheres, a menos que elas pagassem. Outros homens aproveitaram o clima de suspeita que rondava as mulheres para se livrar de suas esposas e amantes indesejadas, ou para debilitar a vingança das mulheres a que tinham estuprado ou seduzido. Sem dúvida, a inércia dos homens diante das atrocidades a que foram submetidas as mulheres foi frequentemente motivada pelo medo de serem implicados nas acusações, já que a maioria dos homens que foram julgados por tais crimes eram parentes de mulheres suspeitas ou condenadas por bruxaria. Contudo, os anos de propaganda e terror certamente plantaram entre os homens as sementes de uma profunda alienação psicológica com relação às mulheres, o que quebrou a solidariedade de classe e minou seu próprio poder coletivo. Podemos concordar com Marvin Harris, quanto ao seguinte:

A caça às bruxas […] dispersou e fragmentou todas as energias de protesto latentes. Fez com que todos se sentissem impotentes e dependentes dos grupos sociais dominantes e, além disso, deu uma válvula de escape local às frustrações. Por esta razão, impediu que os pobres, mais que qualquer outro grupo social, enfrentassem as autoridades eclesiásticas e a ordem secular ou reivindicassem a redistribuição da riqueza e a igualdade social. (Harris, 1974, p. 239-40)

Assim como atualmente, ao reprimir as mulheres, as classes dominantes reprimiam de forma ainda mais eficaz o proletariado como um todo. Instigavam os homens que foram expropriados, empobrecidos e criminalizados a culpar a bruxa castradora pela sua desgraça e a enxergar o poder que as mulheres tinham ganhado contra as autoridades como um poder que as mulheres utilizariam contra eles.

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O Diabo seduz uma mulher a fim de fazer um pacto. De De Lamies (1489), de Ulrico Monitor.

Todos os medos profundamente arraigados que os homens nutriam em relação às mulheres (principalmente devido à propaganda misógina da Igreja) foram mobilizados nesse contexto. As mulheres não só foram acusadas de tornar os homens impotentes, mas também sua sexualidade foi transformada num objeto de temor, uma força perigosa, demoníaca, pois se ensinava aos homens que uma bruxa podia escravizá-los e acorrentá-los segundo sua vontade (Kors e Peters, 1972, p. 130-32).

Uma acusação recorrente nos julgamentos por bruxaria era de que as bruxas estavam envolvidas em práticas sexuais degeneradas, essencialmente na cópula com o diabo e na participação em orgias que supostamente aconteciam no sabá. Mas as bruxas também eram acusadas de gerar uma excessiva paixão erótica nos homens, de modo que era fácil para aqueles que fossem pegos fazendo algo ilícito, dizer que haviam sido enfeitiçados, ou, para uma família que quisesse acabar com a relação do filho com uma mulher que desaprovavam, acusá-la de ser bruxa. De acordo com o Malleus:

Existem […] sete métodos por meio dos quais as bruxas infectam […] o ato venéreo e a concepção do útero: Primeiro, levando as mentes dos homens a uma paixão desenfreada; segundo, obstruindo sua força geradora; terceiro, removendo os membros destinados a esse ato; quarto, transformando os homens em animais por meio de suas artes mágicas; quinto, destruindo a força geradora das mulheres; sexto, provocando o aborto; sétimo, oferecendo as crianças ao diabo […]. (1971, p. 47)

O fato de as bruxas terem sido acusadas simultaneamente de deixar os homens impotentes e de despertar paixões sexuais excessivas neles é uma contradição apenas aparente. No novo código patriarcal que se desenvolvia de modo concomitante à caça às bruxas, a impotência física era a contrapartida da impotência moral; era a manifestação física da erosão da autoridade masculina sobre as mulheres, já que do ponto de vista “funcional” não havia nenhuma diferença entre um homem castrado e um inutilmente apaixonado. Os demonólogos olhavam ambos os estados com suspeita, claramente convencidos de que seria impossível colocar em prática o tipo de família exigida pelo senso comum da burguesa da época — inspirada no Estado, com o marido como rei e a mulher subordinada à sua vontade, devotada à administração do lar de maneira abnegada (Schochet, 1975) — se as mulheres com seu glamour e seus feitiços de amor podiam exercer tanto poder a ponto de tornar os homens os súcubos de seus desejos.

A paixão sexual destruía não somente a autoridade dos homens sobre as mulheres — como lamentava Montaigne, o homem pode conservar seu decoro em tudo exceto no ato sexual (Easlea, 1980, p. 243) —, mas também a capacidade de um homem de governar a si mesmo, fazendo-o perder esta preciosa cabeça onde a filosofia cartesiana situaria a fonte da Razão. Por isso, uma mulher sexualmente ativa constituía um perigo público, uma ameaça à ordem social, já que subvertia o sentido de responsabilidade dos homens e sua capacidade de trabalho e autocontrole. Para que as mulheres não arruinassem moralmente os homens — ou, o que era mais importante, financeiramente — a sexualidade feminina tinha que ser exorcizada. Isto se alcançava por meio da tortura, da morte na fogueira, assim como pelos interrogatórios meticulosos a que as bruxas foram submetidas, que eram uma mistura de exorcismo sexual e estupro psicológico36.

Para as mulheres, então, os séculos XVI e XVII inauguraram, de fato, uma era de repressão sexual. A censura e a proibição chegaram a definir efetivamente sua relação com a sexualidade. Pensando em Michel Foucault, devemos insistir também em que não foi a pastoral católica, nem a confissão, o que melhor demonstrou como o “Poder”, no começo da Era Moderna, tornou obrigatório que as pessoas falassem de sexo (Foucault, 1978, p. 142). Em nenhum outro lugar, a “explosão discursiva” sobre o sexo, que Foucault detectou nessa época, foi exibida com maior contundência do que nas câmaras de tortura da caça às bruxas. Mas isso não teve nada a ver com a excitação mútua que Foucault imaginava fluindo entre a mulher e seu confessor. Ultrapassando de longe qualquer padre de vilarejo, os inquisidores forçaram as bruxas a revelar suas aventuras sexuais em cada detalhe, sem se dissuadir pelo fato de que, muitas vezes, se tratava de mulheres velhas e suas façanhas sexuais datavam de muitas décadas atrás. De uma maneira quase ritual, forçavam as supostas bruxas a explicar de que maneira foram possuídas pelo demônio na sua juventude, o que sentiram durante a penetração, que pensamentos impuros alimentaram. Mas o cenário em que se desdobrou esse discurso peculiar sobre sexo foi a câmara de torturas, onde as perguntas eram feitas entre aplicações de strappado37a mulheres enlouquecidas pela dor. De nenhum modo podemos presumir que a orgia de palavras que as mulheres torturadas dessa maneira estavam forçadas a dizer incitava seu prazer ou reorientava, por sublimação linguística, seu desejo. No caso da caça às bruxas — que Foucault ignora de forma surpreendente em sua História da Sexualidade (Foucault, 1978, Vol. I) — o “discurso interminável sobre sexo” não foi desencadeado como uma alternativa à repressão, mas a serviço desta, da censura, da rejeição. Certamente, podemos dizer que a linguagem da caça às bruxas “produziu” a Mulher como uma espécie diferente, um ser sui generis, mais carnal e pervertido por natureza. Também podemos dizer que a produção da “mulher pervertida” foi o primeiro passo para a transformação da vis erotica feminina em vis lavorativa — isto é, um primeiro passo na transformação da sexualidade feminina em trabalho. Mas devemos reconhecer o caráter destrutivo deste processo, que também demonstra os limites de uma “história da sexualidade” genérica, como a proposta por Foucault, que trata a sexualidade da perspectiva de um sujeito indiferenciado, de gênero neutro e como uma atividade que, supostamente, tem as mesmas consequências para homens e mulheres.

A caça às bruxas e a racionalização capitalista da sexualidade

A caça às bruxas não resultou em novas capacidades sexuais nem em prazeres sublimados para as mulheres. Foi, pelo contrário, o primeiro passo de um longo caminho ao “sexo limpo entre lençóis limpos” e à transformação da atividade sexual feminina em um trabalho a serviço dos homens e da procriação. Neste processo, foi fundamental a proibição, por serem antissociais e demoníacas, de todas as formas não produtivas, não procriativas da sexualidade das mulheres.

A repulsa que a sexualidade não procriativa estava começando a inspirar é bem evidenciada pelo mito da velha bruxa, voando na sua vassoura, que, assim como os animais em que ela também montava (cabras, éguas, cachorros), era a projeção de um pênis estendido, símbolo da luxúria desenfreada. Este imaginário retrata uma nova disciplina sexual que negava à “velha feia”, que já não era fértil, o direito a uma vida sexual. Na criação desse estereótipo, os demonólogos se ajustavam à sensibilidade moral de sua época, tal como revelam as palavras de dois contemporâneos ilustres da caça às bruxas:

Acaso há algo mais odioso que ver uma velha lasciva? O que pode ser mais absurdo? E, entretanto, é tão comum […] É pior nas mulheres que nos homens […] Ela, enquanto velha megera e bruxa, não pode ver nem ouvir, não é mais que uma carcaça, ela uiva e deve ter um garanhão. (Burton, 1977, p. 56)

É ainda mais divertido ver mulheres velhas, que quase já não se sustentam em pé, pelo peso dos anos, e que parecem cadáveres que ressuscitaram, sair por aí dizendo que “a vida é boa”, ainda excitadas, procurando por um parceiro… sempre espalhando maquiagem no rosto e depilando os pelos pubianos, ainda exibem seus peitos moles e murchos e tentam provocar, com trêmulos cochichos, apetites lânguidos, enquanto bebem, dançam em meio a garotas e escrevem cartas de amor. (Erasmo de Rotterdam, 1941, p. 42)

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Hans Burkmair, Contenda entre uma bruxa e um inquisidor (anterior a 1514). Muitas mulheres acusadas e processadas por bruxaria eram velhas e pobres. Dependiam com frequência da caridade pública para sobreviver. A bruxaria – segundo dizem – é a arma daqueles que não têm poder. Mas as mulheres mais velhas eram também mais propensas que qualquer outra pessoa na comunidade a resistir à destruição das relações comunais causada pela difusão das relações capitalistas. Elas encarnavam o saber e a memória da comunidade. A caça às bruxas inverteu a imagem da mulher velha: tradicionalmente considerada uma mulher sábia, ela se tornou um símbolo de esterilidade e de hostilidade à vida.

Essa era uma imagem muito distante daquela do mundo de Chaucer, em que a Mulher de Bath, depois de queimar cinco maridos, ainda podia declarar abertamente: “Bem-vindo o sexto […] Não pretendo ser casta de forma alguma. Quando um de meus maridos se vai, outro cristão deve ser responsável por mim” (Chaucer, 1977, p. 277). No mundo de Chaucer, a vitalidade sexual da mulher velha era uma afirmação da vida contra a morte; na iconografia da caça às bruxas, a velhice impede a possibilidade de uma vida sexual para as mulheres, a contamina, transforma a atividade sexual em uma ferramenta da morte em vez de um meio de regeneração.

Independentemente da idade das mulheres julgadas por bruxaria (mas levando em consideração sua classe social), há uma constante identificação da sexualidade feminina com a bestialidade. Esse fato era sugerido pela cópula com o deus-cabra (uma das representações do demônio), pelo infame beijo sub cauda e pela acusação de que as bruxas guardavam uma série de animais — “diabinhos” ou “familiares” — que as ajudavam nos seus crimes e com os quais mantinham uma relação particularmente íntima. Eram gatos, cachorros, lebres, sapos, de que a bruxa cuidava, supostamente mamando neles por meio de chupetas especiais.

Havia também outros animais que cumpriam um papel na vida das bruxas como instrumentos do Demônio: as cabras e as éguas (noturnas)38 levavam-nas voando ao sabá, os sapos forneciam veneno para suas poções. A presença dos animais no mundo das bruxas era tamanha que devemos presumir que eles também estavam sendo julgados.39

O casamento entre a bruxa e seus “familiares” era, talvez, uma referência às práticas “bestiais” que caracterizavam a vida sexual dos camponeses na Europa, que continuaram sendo um delito capital muito tempo depois do final da caça às bruxas. Numa época em que se começava a adorar a Razão e a dissociar o humano do corpóreo, os animais foram também sujeitos a uma drástica desvalorização — reduzidos a simples bestas, ao “Outro” máximo — símbolos perenes do pior dos instintos humanos. Nenhum crime, portanto, seria capaz de inspirar mais aversão do que a cópula com uma besta, um verdadeiro ataque aos fundamentos ontológicos de uma natureza humana cada vez mais identificada com seus aspectos imateriais. No entanto, o excesso de presenças animais nas vidas das bruxas sugere também que as mulheres se encontravam numa encruzilhada (escorregadia) entre os homens e os animais, e que não somente a sexualidade feminina, mas também a sexualidade como tal, se assemelhava à animalidade. Para fechar esta equação, as bruxas foram frequentemente acusadas de mudar de forma e tomar a aparência animal, sendo o “familiar” normalmente mais citado, o sapo, que, simbolizando a vagina, sintetizava a sexualidade, a bestialidade e o mal.

A caça às bruxas não só condenou a sexualidade feminina como fonte de todo mal, mas também representou o principal veículo para levar a cabo uma ampla reestruturação da vida sexual, que, ajustada à nova disciplina capitalista do trabalho, criminalizava qualquer atividade sexual que ameaçasse a procriação, a transmissão da propriedade dentro da família ou que diminuísse o tempo e a energia disponíveis para o trabalho.

Os juízos por bruxaria fornecem uma lista informativa das formas de sexualidade que estavam proibidas, na medida em que eram “não produtivas”: a homossexualidade, o sexo entre jovens e velhos40, o sexo entre pessoas de classes diferentes, o coito anal, o coito por trás (acreditava-se que levava a relações estéreis), a nudez e as danças. Também estava proscrita a sexualidade pública e coletiva que prevaleceu durante a Idade Média, como ocorria nos festivais de primavera de origem pagã que, no século XVI, ainda se celebravam em toda Europa. Compare, neste contexto, a descrição que faz P. Stubbes, em Anatomy of Abuse (1583) Anatomia do abuso, da celebração do Dia do Trabalhador na Inglaterra com os típicos relatos do sabá que acusavam as bruxas de dançar nessas reuniões, pulando sem parar ao som dos pífaros e das flautas, completamente entregues ao sexo e à folia coletiva.

Quando chega maio […] em cada paróquia, cidade e vilarejo se reúnem tanto homens quanto mulheres e crianças, velhos e jovens […] Eles correm para o mato e para os bosques, colinas e montanhas, onde passam toda a noite em passatempos prazerosos e, pela manhã, voltam trazendo arcos de bétulas e ramos de árvores […] A principal joia que levam para casa é o mastro enfeitado, que carregam com grande veneração […] Logo começam a comer e celebrar, a pular e dançar ao seu redor, como faziam os pagãos ao adorar seus ídolos (Partridge: III).

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Execução das bruxas de Chelmsford, em 1589. Joan Prentice, uma das vítimas, é apresentada com seus familiares.

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O banquete é um tema importante em muitas representações do Sabá – uma fantasia de uma época em que a fome generalizada era uma experiência comum na Europa. Detalhe da estampa de Jan Ziarnko para Tableau de l’inconstance (1612), de Pierre De Lancre.

É possível fazer uma comparação análoga entre as descrições do sabá e as descrições que fizeram as autoridades presbiterianas escocesas das peregrinações (para poços e outros locais sagrados), que a Igreja Católica promoveu, mas contra as quais os presbiterianos se opuseram por considerá-las congregações do diabo e ocasiões para práticas lascivas. Como tendência geral deste período, qualquer reunião potencialmente transgressora — encontros de camponeses, acampamentos rebeldes, festivais e bailes — foi descrita pelas autoridades como um possível sabá.41

Também é significativo que, em algumas zonas do norte de Itália, a expressão “ir ao baile”, ou “ir ao jogo” (al zogo), era usada para se referir à ida ao sabá, sobretudo quando se considera a campanha que a Igreja e o Estado estavam conduzindo contra tais passatempos (Muraro, 1977, p. 109 e segs; Hill, e 1964, p. 183 segs.). Tal como aponta Ginzburg, “uma vez eliminados (do sabá) os mitos e adornos fantásticos, descobrimos uma reunião de gente, acompanhada por danças e promiscuidade sexual” (Ginzburg, 1966, p. 189) e, devemos acrescentar, de muita comida e bebida, certamente uma fantasia numa época em que a fome era uma experiência comum na Europa. (Quão revelador da natureza das relações de classe na época da caça às bruxas que os sonhos com cordeiro assado e cerveja pudessem ser reprovados, como se fossem sinais de convivência diabólica, por uma burguesia bem alimentada e acostumada a comer carne!). Seguindo um caminho muito trilhado, Ginzburg qualifica, entretanto, as orgias associadas ao sabá como “alucinações de mulheres pobres, que lhes serviam de recompensa por uma existência esquálida” (ibidem, p. 190). Desta maneira, ele culpa as vítimas por seu fracasso e ignora também que não foram as mulheres acusadas de bruxaria, mas a elite europeia, que gastou resmas de papel discutindo tais “alucinações”, debatendo, por exemplo, sobre o papel dos súcubos e dos íncubos ou sobre a questão de a bruxa poder ou não ser fecundada pelo diabo, uma pergunta que, aparentemente, ainda era de interesse para os intelectuais no século século XVIII (Couliano, 1987, p. 148-51). Hoje, estas grotescas investigações são ocultadas das histórias da “Civilização Ocidental” ou são simplesmente esquecidas, embora tenham tramado uma rede que condenou centenas de milhares de mulheres à morte.

Dessa forma, o papel que a caça às bruxas teve no desenvolvimento do mundo burguês e, especificamente, no desenvolvimento da disciplina capitalista da sexualidade, foi apagado da memória. Contudo, é possível estabelecer uma relação entre esse processo e alguns dos principais tabus da nossa época. É o caso da homossexualidade, que em muitas partes da Europa era plenamente aceita, inclusive durante o Renascimento, mas logo foi erradicada na época da caça às bruxas. A perseguição aos homossexuais foi tão feroz que sua memória ainda está sedimentada na nossa linguagem. Faggot42é um termo que remete ao fato de que os homossexuais eram, às vezes, usados para acender a fogueira onde as bruxas eram queimadas, enquanto a palavra italiana finocchio (erva-doce)43 se referia à prática de esparramar essas plantas aromáticas nas fogueiras para mascarar o fedor da carne ardente.

É especialmente significativa a relação que a caça às bruxas estabeleceu entre a prostituta e a bruxa, refletindo o processo de desvalorização que a prostituição sofreu durante a reorganização capitalista do trabalho sexual. Como diz o ditado, “prostituta quando jovem, bruxa quando velha”, já que ambas usavam o sexo somente para enganar e corromper os homens, fingindo um amor que era somente mercenário (Stiefelmeir, 1977, p. 48 e segs.). E ambas vendiam-se para obter dinheiro e um poder ilícito; a bruxa (que vendia sua alma para o diabo) era a imagem ampliada da prostituta (que vendia seu corpo aos homens). Além do mais, tanto a (velha) bruxa quanto a prostituta eram símbolos da esterilidade, a própria personificação da sexualidade não procriativa. Assim, enquanto na Idade Média a prostituta e a bruxa foram consideradas figuras positivas que realizavam um serviço social à comunidade, com a caça às bruxas ambas adquiriram as conotações mais negativas e foram rejeitadas como identidades femininas possíveis, relacionadas fisicamente com a morte e socialmente com a criminalização. A prostituta morreu como sujeito legal somente depois de ter morrido mil vezes na fogueira como bruxa. Ou, melhor dizendo, à prostituta podia ser permitido sobreviver (ela inclusive se tornaria útil, embora de maneira clandestina), desde que a bruxa pudesse ser assassinada; a bruxa era o sujeito social mais perigoso, o que (na visão dos inquisidores) era menos controlável; era ela que podia dar dor ou prazer, curar ou causar dano, misturar os elementos e acorrentar a vontade dos homens; podia até mesmo causar dano somente com seu olhar, um malocchio (“mau-olhado”) que, supostamente, podia matar.

Era a natureza sexual dos seus crimes e o status de classe baixa que distinguiam a bruxa do mago do Renascimento, que ficou, na maior parte dos casos, imune à perseguição. A magia cerimonial e a bruxaria compartilhavam muitos elementos. Os temas derivados da tradição mágica ilustrada foram introduzidos pelos demonólogos na definição de bruxaria. Entre eles se encontrava a crença, de origem neoplatônica, de que Eros seria uma força cósmica, unindo o universo por meio de relações de “simpatia” e atração, permitindo ao mago manipular e imitar a natureza nos seus experimentos. Um poder similar foi atribuído à bruxa, que, segundo se dizia, podia levantar tormentas ao mimeticamente agitar uma poça ou podia exercer uma “atração” similar à ligação dos metais na tradição alquimista (Yates, 1964, p. 145 e segs.; Couliano, 1987). A ideologia da bruxaria também refletiu o dogma bíblico, comum à magia e à alquimia, que estipula uma conexão entre a sexualidade e o saber. A tese de que as bruxas adquiriram seus poderes copulando com o diabo ecoava a crença alquimista de que as mulheres se apropriaram dos segretos da química copulando com demônios rebeldes (Seligman, 1948, p. 76). A magia cerimonial, entretanto, não foi perseguida, ainda que a alquimia fosse cada vez mais malvista, pois parecia uma busca inútil e, como tal, uma perda de tempo e recursos. Os magos formavam uma elite, que com frequência prestava serviços a príncipes e a outras pessoas que ocupavam altos postos (Couliano, 1987, p. 156 e segs.), e os demonólogos distinguiam-nos cuidadosamente das bruxas, ao incluir a magia cerimonial (em particular a astrologia e a astronomia) no âmbito das ciências.44

A caça às bruxas e o Novo Mundo

As figuras correspondentes à típica bruxa europeia não foram, portanto, os magos do Renascimento, mas os nativos americanos colonizados e os africanos escravizados que, nas plantações do “Novo Mundo”, tiveram um destino similar ao das mulheres na Europa, fornecendo ao capital a aparentemente inesgotável provisão de trabalho necessário para a acumulação.

Os destinos das mulheres na Europa e dos ameríndios e africanos nas colônias estavam tão conectados que suas influências foram recíprocas. A caça às bruxas e as acusações de adoração ao demônio foram levadas à América para romper a resistência das populações locais, justificando assim a colonização e o tráfico de escravos ante os olhos do mundo. Por sua vez, de acordo com Luciano Parinetto, a experiência americana persuadiu as autoridades europeias a acreditarem na existência de populações inteiras de bruxas, o que as instigou a aplicar na Europa as mesmas técnicas de extermínio em massa desenvolvidas na América (Parinetto, 1998).

No México, “entre 1536 e 1543, o bispo Zumárraga conduziu dezenove julgamentos que envolviam 75 hereges indígenas, na sua maioria selecionados entre os líderes políticos e religiosos das comunidades do México central, muitos dos quais tiveram suas vidas acabadas na fogueira. O frade Diego de Landa conduziu julgamentos por idolatria em Yucatán, durante a década de 1560, nos quais a tortura, os açoites e os autos de fé figuravam de forma destacada” (Behar, 1987, p. 51). No Peru, também eram conduzidas caças às bruxas com a finalidade de destruir o culto aos deuses locais, considerados demônios pelos europeus. “Os espanhóis viam a cara do diabo por todas as partes: nas comidas […] nos ‘vícios primitivos dos índios’ […] nas suas línguas bárbaras” (de León, 1985, Vol. I, p. 33-4). Nas colônias, as mulheres também eram as mais passíveis de serem acusadas por bruxaria, porque, ao serem especialmente desprezadas pelos europeus como mulheres de mente fraca, logo se tornaram as defensoras mais leais de suas comunidades (Silverblatt, 1980, p. 173, 176-79).

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Imagem do século XVI em que os indígenas do Caribe são representados como demônios, de A compendium of authentic and entertaining voyages, digested in a chronological series…, de Tobias George Smollett (compilador), 1766.

O destino comum das bruxas europeias e de seus súditos coloniais está mais bem demostrado pelo crescente intercâmbio, ao longo do século XVII, entre a ideologia da bruxaria e a ideologia racista que se desenvolveu sobre o solo da conquista colonial e do tráfico de escravos. O diabo era representado como um homem negro e os negros eram tratados cada vez mais como diabos, de tal modo que “a adoração ao diabo e as intervenções diabólicas tornaram se o aspecto mais comumente descrito sobre as sociedades não-europeias que os traficantes de escravos encontravam” (Barker, 1978, p.91). “Dos lapões aos samoiedos, dos hotentotes aos indonésios […] não havia sociedade” — escreve Anthony Barker — “que não fora etiquetada por algum inglês como ativamente influenciada pelo diabo” (1978, p. 91). Assim como na Europa, a marca característica do diabólico era um desejo e uma potência sexual anormais45. O diabo com frequência era retratado com dois pênis, enquanto as histórias sobre práticas sexuais brutais e a afeição desmedida pela música e pela dança tornaram-se os ingredientes básicos dos informes dos missionários e dos viajantes ao “Novo Mundo”.

Segundo o historiador Brian Easlea, esse exagero sistemático da potência sexual dos negros denuncia a ansiedade que sentiam os homens brancos ricos sobre sua própria sexualidade; provavelmente, os homens brancos de classe alta temiam a concorrência das pessoas que eles escravizavam, que viam como seres mais próximos à natureza, pois se sentiam incompetentes sexualmente devido às doses excessivas de autocontrole e raciocínio prudente (Easlea, 1980, p. 249-50). No entanto, a sexualização exagerada das mulheres e dos homens negros — as bruxas e os demônios— também deve ter como origem a posição que ocupavam na divisão internacional do trabalho que surgiu a partir da colonização da América, o tráfico de escravos e a caça às bruxas. A definição de negritude e de feminilidade como marcas da bestialidade e irracionalidade era correspondente à exclusão das mulheres na Europa, assim como das mulheres e dos homens nas colônias, devido ao contrato social implícito no salário e à consequente naturalização de sua exploração.

A bruxa, a curandeira e o nascimento da ciência moderna

Havia outros motivos por trás da perseguição às bruxas. Com frequência, as acusações de bruxaria foram usadas para punir o ataque à propriedade, principalmente os roubos, que aumentaram de forma dramática nos séculos XVI e XVII, seguindo a crescente privatização da terra e da agricultura. Como vimos, as mulheres pobres da Inglaterra, que mendigavam ou roubavam leite ou vinho das casas de seus vizinhos, ou que viviam da assistência pública, tendiam a se tornar suspeitas de praticar artes malignas. Alan Macfarlane e Keith Thomas mostraram que, nesse período, houve um marcante deterioração da condição das mulheres idosas, que se seguiu à perda das terras comunais e da reorganização da vida familiar, que deu prioridade à criação de crianças às custas do cuidado que antes se dava aos idosos (Macfarlane, 1970, p. 205)46. Agora, estes idosos eram, ou forçados a depender de seus amigos e vizinhos para sobreviver, ou então se somavam às Listas de Necessitados (no mesmo momento em que a nova ética protestante começava a apontar a entrega de esmolas como um desperdício e como meio de fomentar a preguiça). Ao mesmo tempo, as instituições que no passado haviam atendido os pobres estavam entrando em colapso. Algumas mulheres pobres usaram, provavelmente, o medo que inspirava sua reputação como bruxas para obter aquilo de que necessitavam. Contudo, não se condenou somente a “bruxa má”, que supostamente maldizia e deixava o gado coxo, arruinava cultivos ou causava a morte dos filhos de seus empregadores. A “bruxa boa”, que havia feito da feitiçaria sua carreira, também foi castigada, muitas vezes com maior severidade.

Historicamente, a bruxa era a parteira, a médica, a adivinha ou a feiticeira do vilarejo, cuja área privilegiada de competência — como escreveu Burckhardt sobre as bruxas italianas — era a intriga amorosa (Burckhardt, 1927, p. 319-20). Uma encarnação urbana deste tipo de bruxa foi a Celestina, da peça teatral de Fernando de Rojas (La Celestina, 1499). Dela se dizia que:

Tinha seis ofícios, a saber: lavadeira, perfumista, mestra na fabricação de cosméticos e na reparação de hímens danificados, alcoviteira e um pouco bruxa. […] Seu primeiro ofício era uma fachada para encobrir os demais e, com esta desculpa, muitas garotas que trabalhavam como criadas iam à casa dela para fazer o serviço de lavagem de roupa. […] Não é possível imaginar o movimento que geravam. Era médica de bebês; pegava linho de uma casa e o levava a outra, tudo isto como desculpa para entrar em todas os lugares. Alguém lhe dizia: “Mãe, venha!” ou “Lá vem a senhora!” Todos a conheciam. E, apesar de suas muitas tarefas, ela ainda encontrava tempo para ir à missa ou às vésperas. (Rojas 1959, p. 17-8)

Entretanto, uma curandeira mais típica foi Gostanza, uma mulher julgada por bruxaria em San Miniato, uma pequena cidade de Toscana, em 1594. Depois de ficar viúva, Gostanza havia se estabelecido como curandeira profissional, logo tornando-se bem conhecida na região pelos seus remédios terapêuticos e exorcismos. Morava com sua sobrinha e duas mulheres mais velhas, também viúvas. Uma vizinha, que também era viúva, fornecia-lhe especiarias para seus medicamentos. Recebia seus clientes em casa, mas também viajava quando fosse necessário, a fim de “marcar” um animal, visitar um enfermo, ajudar as pessoas a se vingar ou se liberar dos efeitos de encantamentos médicos (Cardini, 1989, p. 51-8). Suas ferramentas eram óleos naturais e pós, bem como artefatos aptos a curar e proteger por “simpatia” ou “contato”. Não lhe interessava inspirar medo à comunidade, já que a prática dessas artes era sua forma de ganhar a vida. Ela era, de fato, muito popular, todos a procuravam para serem curados, para que lhes lesse o futuro, para encontrar objetos perdidos ou para comprar poções de amor. Mesmo assim, ela não escapou da perseguição. Depois do Concílio de Trento (1545-1563), a Contrarreforma adotou uma postura dura contra os curandeiros populares, temendo seus poderes e suas profundas raízes na cultura de suas comunidades. Na Inglaterra, o destino das “bruxas boas” também foi selado, em 1604, quando um estatuto aprovado por Jaime I estabeleceu a pena de morte para qualquer pessoa que usasse os espíritos e a magia, ainda que não fossem causadores de um dano visível.47

Com a perseguição à curandeira popular, as mulheres foram expropriadas de um patrimônio de saber empírico, relativo a ervas e remédios curativos, que haviam acumulado e transmitido de geração a geração, uma perda que abriu o caminho para uma nova forma de cercamento: o surgimento da medicina profissional, que, apesar de suas pretensões curativas, erigiu uma muralha de conhecimento científico indisputável, inacessível e estranha para as “classes baixas” (Ehrenreich e English, 1973; Starhawk, 1997).

A substituição da bruxa e da curandeira popular pelo doutor levanta a questão sobre o papel que o surgimento da ciência moderna e da visão científica do mundo tiveram na ascensão e queda da caça às bruxas. Em relação a esta pergunta, há dois pontos de vistas opostos.

Por um lado, há teoria originada no Iluminismo, que reconhece o advento da racionalidade científica como fator determinante para o fim da perseguição. Tal como formulada por Joseph Klaits (1895, p. 62), esta teoria sustenta que a nova ciência transformou a vida intelectual, gerando um novo ceticismo ao “revelar o universo como um mecanismo autorregulado, no qual a intervenção divina direta e constante era desnecessária”. Contudo, Klaits admite que os mesmos juízes que, na década de 1650, estavam limitando os julgamentos contra as bruxas, nunca questionaram a veracidade da bruxaria. “Nem na França, nem em nenhuma outra parte, os juízes do século XVII, que acabaram com a caça às bruxas, declararam que elas não existiam. Como Newton e outros cientistas da época, os juízes continuaram aceitando a magia sobrenatural como teoricamente plausível” (ibidem, p. 163).

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Gravura de Hans Weiditz, O herbário da bruxa (1532). Como o globo estrelado sugere, a “virtude” das ervas era reforçada pelo alinhamento astral correto.

Na verdade, não há provas de que a nova ciência teve um efeito libertador. A visão mecanicista da natureza, que surgiu com o início da ciência moderna, “desencantou o mundo”. Mas não há provas de que aqueles que a promoveram tenham, em algum momento, falado na defesa das mulheres acusadas como bruxas. Descartes se declarou agnóstico acerca desse assunto; outros filósofos mecanicistas (como Joseph Glanvill e Thomas Hobbes) apoiaram fortemente a caça às bruxas. O que acabou com a caça às bruxas (conforme demonstrou Brian Easlea de forma convincente) foi a aniquilação do “mundo das bruxas” e a imposição da disciplina social que o sistema capitalista triunfante requeria. Em outras palavras, a caça às bruxas chegou ao fim, no final do século XVII, porque a classe dominante, nesse período, desfrutava de uma crescente sensação de segurança com relação ao seu poder e não porque uma visão mais ilustrada do mundo tivesse surgido.

A pergunta que permanece é se o surgimento do método científico moderno pode ser considerado como fator para o desenvolvimento da caça às bruxas. Esta visão foi sustentada de forma muito convincente por Carolyn Merchant em The Death of Nature A morte da natureza (1980). Merchant considera que a raiz da perseguição às bruxas encontra-se na mudança de paradigma provocada pela revolução científica e, em particular, no surgimento da filosofia mecanicista cartesiana. Segundo a autora, esta mudança substituiu uma visão orgânica do mundo, que via na natureza, nas mulheres e na terra as mães protetoras, por outra que as degradava à categoria de “recursos permanentes”, retirando qualquer restrição ética à sua exploração (Merchant, 1980, p.127 e segs.). A mulher-enquanto-bruxa, sustenta Merchant, foi perseguida como a encarnação do “lado selvagem” da natureza, de tudo aquilo que na natureza parecia desordenado, incontrolável e, portanto, antagônico ao projeto assumido pela nova ciência. Merchant defende que uma das provas da conexão entre a perseguição às bruxas e o surgimento da ciência moderna encontra-se no trabalho de Francis Bacon, considerado um dos pais do novo método científico. Seu conceito de investigação científica da natureza foi moldado a partir do interrogatório das bruxas sob tortura, de onde surgiu uma representação da natureza como uma mulher a ser conquistada, revelada e estuprada (Merchant, 1980, p. 168-72).

As considerações de Merchant têm o grande mérito de desafiar a suposição de que o racionalismo científico foi um veículo de progresso, centrando nossa atenção sobre a profunda alienação que a ciência moderna instituiu entre os seres humanos e a natureza. Também associa a caça às bruxas à destruição do meio ambiente e relaciona a exploração capitalista do mundo natural à exploração das mulheres.

Entretanto, Merchant ignora o fato de que a “visão orgânica do mundo”, que as elites na Europa pré-científica adotaram, deixou espaço para a escravidão e o extermínio dos hereges. Também sabemos que a aspiração ao domínio tecnológico da natureza e a apropriação do poder criativo das mulheres acomodaram diferentes estruturas cosmológicas. Os magos do Renascimento estavam igualmente interessados nesses objetivos,48 enquanto o descobrimento da gravitação universal pela física newtoniana não se deveu a uma visão mecânica da natureza, mas sim a uma visão mágica. Além disso, quando a moda do mecanicismo filosófico chegou ao seu fim, no começo do século XVIII, surgiram novas tendências filosóficas, reforçando o valor da “simpatia”, da “sensibilidade” e da “paixão” que, todavia, foram facilmente integradas ao projeto da nova ciência (Barnes e Shapin, 1979).

Também devemos considerar que o arcabouço intelectual que serviu de base à perseguição às bruxas não foi tirado diretamente das páginas do racionalismo filosófico. Pelo contrário, foi um fenômeno transitório, uma espécie de bricolage ideológica que se desenvolveu sob a pressão da tarefa que precisava cumprir. Dentro dessa tendência, combinaram-se elementos tomados do mundo fantástico do cristianismo medieval, argumentos racionalistas e os modernos procedimentos burocráticos das cortes europeias, da mesma maneira que, na construção do nazismo, o culto à ciência e à tecnologia foi combinado com um cenário que pretendia restaurar um mundo mítico e arcaico de laços de sangue e lealdades pré-monetárias.

Esse ponto é sugerido por Parinetto, que considera a caça às bruxas um exemplo clássico (infelizmente, não o último), na história do capitalismo, de como “retroceder” pode ser considerado uma forma de avançar, do ponto de vista do estabelecimento das condições para a acumulação de capital.

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O “desejo de se apropriar da função materna” do alquimista é bem refletido neste desenho de Hermes Trimegistus (o fundador mítico da alquimia) portando um feto em seu ventre, sugerindo o “papel inseminador do macho”.

Ao conjurar o demônio, os inquisidores descartaram o animismo e o panteísmo popular, redefinindo, de uma maneira mais centralizada, a localização e a distribuição do poder no cosmos e na sociedade. Assim, paradoxalmente — segundo Parinetto —, na caça às bruxas, o diabo funcionava como o verdadeiro servo de Deus; sendo o fator que mais contribuiu na abertura do caminho à nova ciência. Como um oficial de justiça, ou como o agente secreto de Deus, o diabo trouxe a ordem ao mundo, esvaziando-o de influências conflitivas e reafirmando Deus como o soberano exclusivo. Consolidou tão bem o comando de Deus sobre os assuntos humanos que, em questão de um século, com a chegada da física newtoniana, Deus pôde se retirar do mundo, feliz em resguardar de longe a precisão dos seus mecanismos.

Nem o racionalismo nem o mecanicismo foram, portanto, a causa imediata das perseguições, embora tenham contribuído para criar um mundo comprometido com a exploração da natureza. Mais importante, o fato de que as elites europeias precisavam erradicar todo um modo de existência, que no final da Baixa Idade Média ameaçava seu poder político e econômico, foi o principal fator de incentivo à caça às bruxas. Quando esta tarefa foi cumprida por completo — no momento em que a disciplina social foi restaurada e a classe dominante viu consolidada sua hegemonia — os julgamentos de bruxas chegaram ao seu fim. A crença na bruxaria pôde inclusive se tornar algo ridículo, desprezada como superstição e apagada rapidamente da memória.

Esse processo começou, por toda Europa, no final do século XVII, embora os julgamentos de bruxas continuassem na Escócia durante mais três décadas. Um fator que contribuiu para que os julgamentos contra as bruxas tivessem um fim foi a perda de controle da classe dominante sobre os mesmos, alguns deles, inclusive, tendo acabado sob o fogo de seu próprio aparato repressivo, com denúncias dirigidas a seus próprios membros. Midelfort escreve que na Alemanha:

Quando as chamas começaram a arder cada vez mais próximas dos nomes de gente que fazia parte do alto escalão e tinha muito poder, os juízes perderam a confiança nas confissões e o pânico cessou […]. (Midelfort, 1972, p. 206)

Também na França, a última onda de julgamentos trouxe uma desordem social generalizada: os criados acusavam seus senhores, os filhos acusavam seus pais, os maridos acusavam suas mulheres. Nestas circunstâncias, o rei decidiu intervir e Colbert estendeu a jurisdição de Paris a toda a França para terminar com a perseguição. Foi promulgado um novo código legal, no qual a bruxaria não foi sequer mencionada (Mandrou, 1968, p. 443).

Logo que o Estado assumiu o controle da caça às bruxas, um por um, os vários governos foram tomando a iniciativa de acabar com ela. A partir da metade do século XVII, foram feitos esforços para frear o fervor judicial e inquisitorial. Uma consequência imediata foi que, no século XVIII, os “crimes comuns” multiplicaram-se repentinamente (ibidem, p. 437). Entre 1686 e 1712, na Inglaterra, à medida que se atenuava a caça às bruxas, as prisões por danos à propriedade (em particular os incêndios de celeiros, casas e palheiros) e por assaltos cresceram enormemente (Kittredge, 1929, p. 333), assim como novos crimes entraram nos códigos legais. A blasfêmia começou a ser tratada como um delito punível — na França, decretou-se que depois da sexta condenação, os blasfemadores teriam sua língua cortada — da mesma maneira que o sacrilégio (profanação de relíquias e roubo de hóstias). Também foram estabelecidos novos limites para a venda de venenos; seu uso privado foi proibido, sua venda foi condicionada à aquisição de uma licença e estendeu-se a pena de morte aos envenenadores. Tudo isto sugere que a nova ordem social já estava suficientemente consolidada para que os crimes fossem identificados e castigados como tais, sem a possibilidade de recorrer ao sobrenatural. Nas palavras de um parlamentar francês:

Já não se condenam as bruxas e feiticeiras, em primeiro lugar, porque é difícil determinar a prova de bruxaria e, em segundo lugar, porque tais condenações foram usadas para provocar dano. Parou-se então de culpá-las pelo incerto para acusá-las do que se tem certeza. (Mandrou, 1968, p. 361)

Uma vez destruído o potencial subversivo da bruxaria, foi possível até mesmo permitir que tal prática seguisse adiante. Depois de que a caça às bruxas chegou ao seu fim, muitas mulheres continuaram sustentando-se por meio da adivinhação, da venda de encantamentos e da prática de outras formas de magia. Como escreveu Pierre Bayle, em 1704, “em muitas províncias da França, em Saboia, no cantão de Berna e em muitas outras partes da Europa […] não existe vilarejo ou povoado, não importa quão pequeno seja, onde não haja uma pessoa considerada bruxa” (Erhard, 1963, p. 30). Na França do século XVIII, também se desenvolveu um interesse pela bruxaria entre a nobreza urbana, que — sendo excluída da produção econômica e percebendo que seus privilégios eram atacados — tratou de satisfazer seu desejo de poder recorrendo às artes da magia (ibidem, p. 31-2). Mas agora as autoridades já não estavam interessadas em processar essas práticas, sendo inclinadas, ao contrário, a ver a bruxaria como um produto da ignorância ou uma desordem da imaginação (Mandrou, 1968, p. 519). No século XVIII, a intelligentsia europeia começou, inclusive, a se sentir orgulhosa da ilustração que havia adquirido, e segura de si mesma continuou reescrevendo a história da caça às bruxas, rejeitando-a como um produto da superstição medieval.

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Uma bruxa cavalga um bode através do céu, causando uma chuva de fogo. Xilogravura de Francesco Maria Guazzo, Compendium Maleficarum (1610).

O espectro das bruxas seguiu, de qualquer forma, assombrando a imaginação da classe dominante. Em 1871, a burguesia parisiense o retomou instintivamente para demonizar as mulheres communards, acusando-as de querer incendiar Paris. Não pode haver muita dúvida, de fato, de que os modelos das histórias e imagens mórbidas de que se valeu a imprensa burguesa para criar o mito das pétroleuses foram retirados do repertório da caça às bruxas. Como descreve Edith Thomas, os inimigos da Comuna alegavam que milhares de proletárias vagavam (como bruxas) pela cidade, dia e noite, com panelas cheias de querosene e etiquetas com a inscrição “BPB” (bon pour brûler, “boa para queimar”), supostamente, seguindo as instruções recebidas em uma grande conspiração para reduzir a cidade de Paris a cinzas, frente às tropas que avançavam de Versalhes. Thomas escreve que “não se encontraram pétroleuses em lugar nenhum. Nas áreas ocupadas pelo exército de Versalhes, bastava que uma mulher fosse pobre e mal vestida, e que levasse um cesto, uma caixa ou uma garrafa de leite, para que se tornasse suspeita” (Thomas, 1966, p. 166-67). Desse modo, centenas de mulheres foram executadas sumariamente, ao mesmo tempo que eram difamadas nos periódicos. Como a bruxa, a pétroleuse era representada como uma mulher mais velha, descabelada, de aspecto bárbaro e selvagem. Em suas mãos, levava o recipiente com o líquido que usava para praticar seus crimes.49

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Pétroleuses, litografia colorida de Bertall, reproduzida em Les Communeaux, n. 20.

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As mulheres de Paris. Xilografia reproduzida em The Graphic, 29 de abril de 1871.

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O desembarque de Américo Vespúcio na costa da América do Sul em 1497. A sua frente, deitada numa rede, sedutora, está “América”. Atrás dela, alguns canibais estão assando restos humanos. Desenho de Jan van der Straet, gravado por Théodore Galle (1589).

Notas
1. ↑ “Um animal imperfeito, sem fé, sem lei, sem medo, sem consistência” N.T. P.
2. ↑ “Abaixo da cintura são centauros, / muito embora mulheres para cima. / Até a cintura os deuses é que mandam; / para baixo, os demônios. / Ali é o inferno, escuridão, / abismo sulfuroso, / calor, fervura, cheiro de podridão…” Tradução livre de Nélson Jahr Garcia, disponível em: www.ebooksbrasil.org/adobeebook/lear.pdf
3. ↑ Como sinalizou Erik Midelfort: “Com poucas exceções notáveis, o estudo da caça às bruxas se manteve impressionista […] É verdadeiramente chamativo quão poucas pesquisas existem sobre a bruxaria no caso da Europa, pesquisas que tentem a enumerar todos os julgamentos a bruxas em certa cidade ou região” (Midelfort, 1972, p. 7).
4. ↑

Uma expressão desta identificação foi a criação de WITCH (bruxa), uma rede de grupos feministas autônomos que teve um papel importante na fase inicial do movimento de liberação das mulheres nos Estados Unidos. Como relata Robin Morgan, em Sisterhood is Powerful (1970), WITCH nasceu durante o Halloween de 1968 em Nova York, ainda que rapidamente se formaram “aquelarres” em outras cidades. O que a figura da bruxa significou para estas ativistas pode se ser entendido através de um panfleto escrito pelo aquelarre de Nova York que, depois de recordar que as bruxas foram as primeiras praticantes do controle de natalidade e do aborto, afirma:

As bruxas sempre foram mulheres que se atreveram a ser corajosas, agressivas, inteligentes, não conformistas, curiosas, independentes, sexualmente liberadas, revolucionárias […] WITCH vive e ri em cada mulher. Ela é a parte livre de cada uma de nós […] Você é uma Bruxa pelo fato de ser mulher, indomável, desvairada, alegre e imortal (Morgan, 1970, p. 605-06).

Entre as escritoras feministas estadunidenses que de uma forma mais consciente identificaram a história das bruxas com a luta pela liberação das mulheres estão Mary Daly (1978), Starhawk (1982) e Barbara Ehrenreich e Deidre English, cujo Witches, Midwives and Nurses: A History of Women Healers (1973) foi para muitas feministas,incluindo eu mesma, a primeira aproximação à história da caça às bruxas.
5. ↑ Quantas bruxas foram queimadas? Se trata de uma questão controversa dentro da pesquisa acadêmica sobre a caça às bruxas, muito difícil de responder, já que muitos julgamentos não foram registrados ou, se foram, o número de mulheres executadas não vem especificado. Além disso, muitos documentos, nos quais podemos encontrar referências aos julgamentos por bruxaria, ainda não foram estudados ou foram destruídos. Na década de 1970, E. W. Monter advertiu, por exemplo, que era impossível calcular a quantidade de julgamentos seculares a bruxas que aconteceram na Suíça, já que frequentemente estes só estavam mencionados nos arquivos fiscais e estes arquivos ainda não foram analisados (1976, p. 21). Trinta anos depois, as cifras ainda são amplamente discrepantes.
Enquanto algumas acadêmicas feministas defendem que a quantidade de bruxas executadas equivale ao número de judeus assassinados na Alemanha nazista, de acordo com Anne L. Barstow — com base no atual trabalho arquivístico— pode justificar que aproximadamente 200 mil mulheres foram acusadas de bruxaria em um lapso de três séculos, sendo que a menor parte delas foi assassinada. Barstow admite, entretanto, que é muito difícil estabelecer quantas mulheres foram executadas ou morreram pelas torturas que sofreram.
Muitos arquivos ela escreve não enumeravam os vereditos dos julgamentos […] [ou] não incluem as mortas na prisão […] Outras levadas ao desespero pela tortura se suicidaram nas celas […] Muitas bruxas acusadas foram assassinadas na prisão […] Outras morreram nos calabouços pelas torturas sofridas. (Barstow, p. 22-3)
Levando em conta também as que foram linchadas, Barstow conclui que ao menos 100 mil mulheres foram assassinadas, mas acrescenta que as que escaparam foram “arruinadas para toda a vida”, já que uma vez acusadas, “a suspeita e a hostilidade as perseguiriam até a cova” (ibidem).
Enquanto a polêmica sobre a magnitude da caça às bruxas continua, Midelfort e Larner forneceram estimativas regionais. Midelfort (1972) descobriu que no sudeste da Alemanha ao menos 3.200 bruxas foram queimadas somente entre 1560 e 1670, um período no qual “já não queimavam uma ou duas bruxas, mas vintenas e centenas” (Lea, 1922, p. 549). Christina Larner (1981) estima em 4.500 a quantidade de mulheres executadas na Escócia entre 1590 e 1650; mas também concorda que a quantidade pode ser muito maior, já que a prerrogativa de levar a cabo a caça às bruxas era conferida também a notáveis conterrâneos, que tinham liberdade para prender “bruxas” e estavam encarregados de manter os arquivos.
6. ↑ Duas escritoras feministas — Starhawk e Maria Mies — explicaram a caça às bruxas no contexto da acumulação primitiva, deduzindo conclusões muito similares às apresentadas neste livro. Em Dreaming the Dark (1982) Starhawk conectou a caça às bruxas com a desapropriação do campesinato europeu das terras comunais, os efeitos sociais da inflação de preços causada pela chegada do ouro e prata americanos à Europa e o surgimento da medicina profissional. Também sinalizou que:
A bruxa já se foi […] mas seus medos e as forças contra as quais lutou durante sua vida ainda vivem. Podemos abrir nossos diários e ler as mesmas acusações contra o ócio dos pobres […] Os expropriadores vão ao Terceiro Mundo, destruindo culturas […] roubando os recursos da terra e das pessoas […] Se ligamos a rádio, podemos escutar o ruído das chamas […] Mas a luta também continua. (Starhawk, 1997, p. 218-19)
Enquanto Starhawk examina principalmente a caça de bruxas no contexto da ascensão da economia de mercado na Europa, Patriarchy and Accumulation on a World Scale (1986), de Maria Mies, o conecta com o processo de colonização e a crescente conquista da natureza que caracterizaram a dominação capitalista. Mies sustenta que a caça às bruxas foi parte da tentativa da classe capitalista emergente de estabelecer seu controle sobre a capacidade produtiva das mulheres e, fundamentalmente, sobre sua potência procriativa, no contexto de uma nova divisão sexual e internacional do trabalho construída sobre a exploração das mulheres, das colônias e da natureza (Mies, 1986, p. 69-70; 78-88).
7. ↑ Ver nota no segundo capítulo, “A acumulação do trabalho e a degradação das mulheres” N. da T.
8. ↑ Desde o Império Romano tardio, as classes dominantes consideraram a magia suspeita de ser parte da ideologia dos escravos e de constituir um instrumento de insubordinação. Pierre Dockes cita De re rustica, de Columella, um agrônomo romano da República tardia – que, por sua vez, cita a Cato – no sentido de que a familiaridade com astrólogos, adivinhos e feiticeiros deveria ser mantida sob controle pois tinha uma influência perigosa sobre os escravos. Columella recomendou que o villicus “não deve fazer sacrifícios sem ordens do seu senhor. Não deve receber adivinhos nem magos, que se aproveitavam das superstições dos homens para os conduzir ao crime […] Deve evitar a confiança de arúspices e feiticeiros, duas classes de pessoas que infectam as almas ignorantes com o veneno das superstições sem fundamento” (Citado por Dockes, 1982, p. 213).
9. ↑ Dockes cita o seguinte extrato de Les Six Livres de la Republique (1576), de Jean Bodin: “O poder dos árabes cresceu somente deste modo dando ou prometendo a liberdade aos escravos. Pois assim que o capitão Omar, um dos tenentes de Maomé, prometeu a liberdade aos escravos que o seguiam, atraiu a tantos outros que em poucos anos eles se converteram em senhores de todo o Oriente. Os rumores de liberdade e as conquistas dos escravos enalteceram os corações dos escravos na Europa, ao que eles passaram a pegar em armas, primeiro na Espanha, em 781, e logo no Sacro Império, nos tempos de Carlos Magno e Ludovico Pio, como se pode ver nos éditos expedidos na época contra as conspirações declaradas entre os escravos […] Ao mesmo tempo, este arranque de ira estalou na Alemanha, onde os escravos, em pé de guerra, sacudiram as propriedades dos príncipes e as cidades, e inclusive Ludovico, rei dos alemães, foi forçado a reunir todas as suas forças para os aniquilar. Pouco a pouco isto forçou os cristãos a diminuir a servidão e a liberar aos escravos, com exceção de algumas corvées […]” (Citado en Dockes, 1982, p. 237).
10. ↑ O Canon Episcopi (século X), considerado o texto mais importante na documentação da tolerância da Igreja em relação às crenças mágicas, qualificou como “infiéis” aqueles que acreditavam em demônios e voos noturnos, argumentando que tais “ilusões” eram produtos do Diabo (Russell, 1972, p. 76-7). Entretanto, no seu estudo sobre a caça às bruxas no sudoeste da Alemanha, Eric Midelfort questionou a ideia de que a Igreja na Idade Média fosse cética e tolerante no que diz respeito à bruxaria. Este autor foi particularmente crítico com o uso que se fez do Canon Episcopi, defendendo que este afirma o oposto do que foi feito a dizer. Em outras palavras, não devemos concluir que a Igreja tolerava práticas mágicas porque o autor do Canon atacava a crença na magia. De acordo com Midelfort, a posição do Canon era a mesma que a Igreja sustentou até o século XVIII. A Igreja condenava a crença de que os atos de magia eram possíveis, porque considerava que era uma heresia maniqueista atribuir poderes divinos às bruxas e demônios. Entretanto, sustentava que era correto castigar aqueles que praticavam a magia porque acobertavam maldade e se aliavam ao Demônio (Midelfort, 1975, p. 16-9). Midelfort reforça que até mesmo na Alemanha do século XVI, o clero insistiu na necessidade de não acreditar nos poderes do Demônio. Mas sinaliza que: a) a maioria dos julgamentos foram instigados e administrados por autoridades seculares a quem não lhes interessavam as disquisições teológicas; b) tampouco entre o clero, a distinção entre “maldade” e “feito maligno” teve muitas consequências práticas, já que, depois de tudo, muitos clérigos recomendaram que as bruxas fossem castigadas com a morte.
11. ↑ Monter (1976), 18. O sabá apareceu pela primeira vez na literatura medieval por volta da metade do século XV. Rosell Hope Robbins (1959, p. 415) escreveu que:
Johannes Nieder (1435), um dos primeiros demonólogos, desconhecia o sabá, mas o panfleto francês anônimo Errores Gazariarum (1459) contém uma descrição detalhada da “sinagoga”. Por volta de 1458, Nicholas Jaquier usou a palavra “sabbat”, apesar do seu relato ser pouco preciso; “sabbat” apareceu também em um informe sobre a perseguição às bruxas em Lyon em 1460 — já no século XVI o “sabbat” era um componente conhecido da bruxaria.
12. ↑ Os julgamentos por bruxaria eram custosos, já que podiam durar meses e se tornar uma fonte de trabalho para muita gente (Robbins, 1959, p. 111). Os pagamentos pelos “serviços” e as pessoas envolvidas — o juiz, o cirurgião, o torturador, o escriba, os guardas — inclusive suas refeições e o vinho, estavam descaradamente incluídos nos arquivos dos processos, ao que é preciso agregar o custo das execuções e o de manter as bruxas na prisão. O que segue é a fatura de um julgamento na cidade escocesa de Kirkaldy em 1636:
Por dez cargas de carvão, para as queimar: 5 marcos ou 3 libras ou 6 xelins e 8 pence. Por um barril de alcatrão: 14 xelins. Pela tela de cânhamo para coletes para elas: 3 libras ou 10 xelins. Por os fazer: 3 libras. Para a viagem à Finmouth para que o laird senhor de terras ocupe sua sessão como juiz: 6 libras. Para o carrasco por seus esforços: 8 libras ou 14 xelins. Por seus gastos neste lugar: 16 xelins ou 4 pence. (Robbins, 1959, p. 114)
Os custos do julgamento de uma bruxa eram pagos pelos parentes da vítima, mas “quando a vítima não tinha um centavo” eram custeados pelos cidadãos do povoado ou pelo proprietário de terras (Robbins, ibidem). Sobre este tema, ver Robert Mandrou (1968, p. 112) e Christina Larner (1983, p. 115), entre outros.
13. ↑ H. R. Trevor-Roper escreve: “A caça às bruxas foi promovida pelos papas refinados do Renascimento, pelos grandes reformadores protestantes, pelos santos da contrarreforma, pelos acadêmicos, advogados e eclesiásticos […] Se estes dois séculos foram a Era das Luzes, temos que admitir que ao menos em algum aspecto os Anos Escuros foram mais civilizados […]” (Trevor-Roper, 1967, p. 122 e segs.).
14. ↑ Cardini (1989, p. 13-6), Prosperi (1989, p. 217 e segs.) e Martin (1989, p. 32). Conforme escreve Ruth Martin acerca do trabalho da Inquisição em Veneza: “Uma comparação feita por P. F. Grendler sobre a quantidade de sentenças de morte concedidas pela Inquisição e pelos tribunais civis o levou a concluir que ‘as Inquisições Italianas atuaram com grande moderação comparadas com os tribunais civis’, e que ‘a Inquisição Italiana esteve marcada mais pelos castigos levianos e as comutações do que pela severidade’, uma conclusão confirmada recentemente por E. W. Monter no seu estudo da Inquisição no Mediterrâneo […] No que diz respeito aos julgamentos venezianos, não houve sentenças de execução nem de mutilação e a condenação às galés era rara. As penas a longos tempos em prisão também eram raras, e quando se ditavam condenações deste tipo ou banimentos, estes eram frequentemente comutados depois de um lapso de tempo relativamente curto […] As solicitações daqueles que estavam na prisão para que se lhes permitisse passar à prisão domiciliar em decorrência de problemas de saúde também foram tratadas com compaixão¨ (Martin, 1989, p. 32-3).
15. ↑ Também há provas de mudanças significativas no peso atribuído às acusações específicas, à natureza dos crimes comumente associados à bruxaria e à composição social dos acusadores e das acusadas. A mudança mais significativa é, talvez, que em uma fase prematura da perseguição (durante os juízos do século XV) a bruxaria foi vista principalmente como um crime coletivo, que dependia da organização de reuniões massivas, enquanto no século XVII foi vista como um crime de natureza individual, uma carreira maléfica na qual se especializavam bruxas isoladas — sendo isto um signo da ruptura dos laços comunais que resultaram da crescente privatização da tenência da terra e da expansão das relações comerciais durante este período.
16. ↑ A Alemanha é uma exceção dentro deste padrão, já que ali a caça às bruxas afetou muitos membros da burguesia, inclusive muitos vereadores. Sem dúvida, na Alemanha, o confisco da propriedade foi o principal motivo por trás da perseguição, o que explica o fato de esta ter alcançado ali proporções incomparáveis com qualquer outro país, com exceção da Escócia. Entretanto, de acordo com Midelfort, a legalidade do confisco foi controversa; e até mesmo no caso das famílias ricas, não lhes subtraíram mais de um terço da propriedade. Midelfort agrega também que na Alemanha “é inquestionável que a maior parte das pessoas executadas era pobre” (Midelfort, 1972, p. 164-69).
17. ↑ Ainda não foi feita nenhuma análise séria da relação entre as mudanças na posse da terra — sobretudo a privatização da terra — e a caça às bruxas. Alan Macfarlane, que foi o primeiro em sugerir que existiu uma importante conexão entre os cercamentos em Essex e a caça às bruxas na mesma área, se retratou depois (Macfarlane, 1978). Apesar disso, a relação entre ambos fenômenos é inquestionável. Como vimos (no Capítulo 2), a privatização da terra foi um fator significativo — direta e indiretamente — no empobrecimento que sofreram as mulheres no período no qual a caça às bruxas alcançou proporções massivas. Ao mesmo tempo em que a terra foi privatizada e o comércio de terras se desenvolveu, as mulheres se tornaram vulneráveis a um duplo processo de expropriação: por parte dos ricos compradores de terras e por parte dos homens com os quais se relacionavam.
18. ↑ Cottar é o termo escocês usado para designar uma espécie de camponês lavrador. Os cottars ocupavam casas de campo e cultivavam pequenos pedaços de terra. A palavra cotter é frequentemente empregada para traduzir a expressão ¨cotarius do Domesday Book¨, uma classe cujo status exato tem sido objeto de discussão e ainda não há clareza a respeito. De acordo com o Domesday, os cotarii eram relativamente poucos, sendo menos de 7 mil, e estavam espalhados de modo desigual pela Inglaterra, concentrando-se principalmente nos condados do sul. Eles eram empregados tanto no cultivo de pequenas parcelas de terra quanto nos espaços em posse dos vilões. Como os vilões, entre os quais eles são frequentemente classificados, sua condição econômica pode ser descrita como livre em relação a todos, exceto seu senhor. N.T. P.
19. ↑ Entretanto, a medida em que a caça às bruxas se estendeu, as distinções entre a bruxa profissional e aquelas mulheres que lhe pediam ajuda ou realizavam práticas de magia sem pretender ser especialistas se ofuscaram.
20. ↑ Midelfort (1972, p. 123-24) também vê uma conexão entre a Revolução dos Preços e a perseguição às bruxas. Sobre a intensificação de julgamentos de bruxas no sudoeste da Alemanha depois de 1620, escreveu:
Os anos 1622-1623 foram testemunhas da total ruptura do sistema monetário. O dinheiro se depreciou a tal ponto que os preços dispararam até se perder de vista. A primavera do ano 1625 foi fria e as colheitas foram más, de Wurzburg, passando por Württemberg, até o Vale do Reno. O ano seguinte teve fome no Vale do Reno […] Estas condições elevaram os preços para além do que muitos trabalhadores podiam suportar.
21. ↑ Le Roy Ladurie (1987, p. 208) escreve: “Entre estes levantamentos frenéticos as caças às bruxas e as autênticas revoltas populares, que também alcançaram seu clímax nas mesmas montanhas entre 1580 e 1600, existiram uma série de coincidências geográficas, cronológicas e às vezes familiares”.
22. ↑ Na obsessão com o sabá ou sinagoga, como era chamada a mítica reunião de bruxas, encontramos uma prova da continuidade entre a perseguição das bruxas e a perseguição dos judeus. Como hereges e propagadores da sabedoria árabe, os judeus eram vistos como feiticeiros, envenenadores e adoradores do Demônio. As histórias sobre a prática da circuncisão, que diziam que os judeus matavam crianças em rituais, contribuíram para retratá-los como seres diabólicos. “Uma e outra vez os judeus foram descritos (nos mistérios teatro medieval e também nas sketches) como ‘demônios do Inferno, inimigos da raça humana’” (Trachtenberg, 1944, p. 23). Sobre a conexão entre a perseguição aos judeus e a caça às bruxas ver também Ecstasies (1991), de Carlo Ginzburg, capítulos 1 e 2.
23. ↑ A referência provém aqui dos conspiradores do Bundschuh — o sindicato de camponeses alemães cujo símbolo era o tamanco — que na Alsácia, na década de 1490, conspirou para se levantarem contra a Igreja e o castelo. Friedrick Engels comenta que estavam habituados a fazer suas reuniões durante a noite no solitário Hunher Hill (Engels, 1977, p. 66).
24. ↑ O historiador italiano Luciano Parinetto sugeriu que a questão do canibalismo poderia ser importada do Novo Mundo, já que o canibalismo e a adoração do Demônio se fundiam nos informes sobre os “índios” realizados pelos conquistadores e seus cúmplices do clero. Para fundamentar essa tese Parinetto cita o Compendium Maleficarum (1608), de Francesco Maria Guazzo, que, do seu ponto de vista, demostra que os demonólogos na Europa foram influenciados, no seu retrato das bruxas como canibais, por informes provenientes do “Novo Mundo”. De qualquer forma, as bruxas na Europa foram acusadas de sacrificar as crianças ao Demônio muito antes da conquista e da colonização da América.
25. ↑ Nos séculos XIV e XV, a Inquisição acusou as mulheres, os hereges e os judeus de bruxaria. A palavra hexerei (bruxaria) foi usada pela primeira vez durante os julgamentos realizados entre 1419 e 1420 em Lucerna e Interlaken (Russell, 1972, p. 203).
26. ↑ A tese de Murray foi revisitada nos últimos anos, graças ao renovado interesse das ecofeministas pela relação entre as mulheres e a natureza nas primeiras sociedades matrifocais. Entre as que interpretaram as bruxas como defensoras de uma antiga religião ginocêntrica que idolatrava as potências reprodutivas se encontra Mary Condren. Em The Serpent and the Goddess (1989), Condren sustenta que a caça às bruxas foi parte de um longo processo em que o cristianismo deslocou as sacerdotisas da antiga religião, afirmando, à principio, que estas usavam seus poderes para propósitos malignos e negando, depois, que tivessem semelhantes poderes (Condren, 1989, p. 80-6). Um dos argumentos mais interessantes aos que recorre Condren neste contexto está relacionado com a conexão entre a perseguição às bruxas e a intenção dos sacerdotes cristãos de se apropriarem dos poderes reprodutivos das mulheres. Condren mostra como os sacerdotes participaram em uma verdadeira concorrência com as “mulheres sábias”, realizando milagres reprodutivos, fazendo com que mulheres estéreis ficassem grávidas, mudando o sexo de bebês, realizando abortos sobrenaturais e, por último, mas não menos importante, dando abrigo a crianças abandonadas (Condren, 1989, p. 84-5).
27. ↑ Em meados do século XVI a maioria dos países europeus começou a realizar estatísticas com regularidade. Em 1560 o historiador italiano Francesco Guicciardini expressou sua surpresa ao tomar conhecimento de que na Antuérpia e nos Países Baixos, normalmente as autoridades não recolhiam dados demográficos, exceto nos casos de “urgente necessidade” (Helleneir, 1958, p. 1-2). Durante o século XVII todos os Estados nos quais houve caça às bruxas promoveram também o crescimento demográfico (ibidem, p. 46).
28. ↑ Monica Green desafiou, entretanto, a ideia de que na Idade Média existisse uma divisão sexual do trabalho médico tão rígida, como para que os homens estivessem excluídos do cuidado das mulheres e em particular da ginecologia e da obstetrícia. Também sustenta que as mulheres estiveram presentes, ainda que em menor quantidade, em todas os ramos da medicina, não somente como parteiras mas também como médicas, boticárias, barbeiras-cirurgiãs. Green questiona o argumento comum de que as parteiras foram especialmente perseguidas pelas autoridades e de que é possível estabelecer uma conexão entre a caça às bruxas e a expulsão das mulheres da profissão médica a partir dos séculos XIV e XV. Argumenta que as restrições à prática foram resultado de inúmeras tensões sociais (na Espanha, por exemplo, do conflito entre cristãos e muçulmanos) e que enquanto as crescentes limitações à prática das mulheres puderam ser documentada, não ocorreu o mesmo com as razões que se deram por trás delas. Green admite que as questões imperantes detrás destas limitações eram de origem “moral”; ou seja, estavam relacionadas com considerações sobre o caráter das mulheres (Green, 1989, p. 453 e seg.).
29. ↑ J. Gelis escreve que “o Estado e a Igreja desconfiaram tradicionalmente desta mulher cuja prática era frequentemente secreta e impregnada de magia, quando não de bruxaria, e que podia sem dúvida contar com o apoio da comunidade rural”. Agrega que foi necessário sobretudo quebrar a cumplicidade, verdadeira ou imaginada, das sages femmes, em tais crimes como o aborto, o infanticídio e o abandono de crianças (Gelis, 1977, p. 927 e segs.). Na França, o primeiro edito que regulava a atividade das sages femmes foi promulgado em Estrasburgo no final do século XVI. No final do século XVII as sages femmes estavam completamente sob o controle do Estado e eram usadas por este como força reacionária em suas campanhas de reforma moral (Gelis, 1977).
30. ↑ Isto pode explicar por que os anticoncepcionais contraceptivos, que foram amplamente usados na Idade Média, desapareceram no século XVII, sobrevivendo somente ao redor da prostituição.Quando reapareceram em cena já estavam em mãos masculinas, de tal maneira que não se permitiu às mulheres o seu uso, exceto com permissão masculina. De fato, durante muito tempo o único contraceptivo oferecido pela medicina burguesa foi o preservativo. A “camisinha” começou a aparecer na Inglaterra no século XVIII, uma de suas primeiras menções aparece no Diário de James Boswell (citado por Helleiner, 1958, p. 94).
31. ↑ Em 1556, Enrique II sancionou na França uma lei punindo como assassina qualquer mulher que ocultasse sua gravidez e cujo filho nascesse morto. Uma lei similar foi sancionada na Escócia em 1563. Até o século XVIII, o infanticídio foi castigado na Europa com a pena de morte. Na Inglaterra, durante o Protetorado, foi introduzida a pena de morte por adultério. Ao ataque aos direitos reprodutivos da mulher, e à introdução de novas leis que sancionavam a subordinação da esposa ao marido no âmbito familiar, se deve agregar a criminalização da prostituição, a partir de meados do século XVI. Como vimos (no Capítulo 2), as prostitutas eram submetidas a castigos atrozes tais como a acabussade. Na Inglaterra, eram marcadas na testa com ferros quentes de maneira semelhante à “marca do Diabo”, e depois eram chicoteadas e tinham seus cabelos raspados como bruxas — o cabelo era visto como o lugar favorito do diabo. Na Alemanha, a prostituta podia ser afogada, queimada ou enterrada viva. Em algumas ocasiões lhe cortavam o nariz, uma prática de origem árabe, usada para castigar “crimes de honra” e infligida também às mulheres acusadas de adultério.
Como a bruxa, a prostituta era supostamente reconhecida pelo seu “mau olhado”. Supunha-se que a transgressão sexual era diabólica e dava às mulheres poderes mágicos. Sobre a relação entre o erotismo e a magia no Renascimento, ver P. Couliano (1987).
32. ↑ O debate sobre a natureza dos sexos começou na Baixa Idade Média e foi retomado no século XVII.
33. ↑ “Tu non pensavi ch’io fossi!” (“Você não imaginava que minha especialidade fosse a lógica!”) ri o Diabo no Inferno de Dante, enquanto arrebatava a alma de Bonifácio VIII, que sutilmente pensou escapar do fogo eterno arrependendo-se no exato momento de cometer seus crimes (A Divina Comédia, Inferno, canto XXVII, verso 123).
34. ↑ A sabotagem do ato conjugal era um dos principais temas nos processos judiciais relacionados ao matrimônio e à separação, especialmente na França. Como observa Robert Mandrou, os homens temiam tanto se tornarem impotentes pelas mulheres que os padres dos povos proibiam com frequência mulheres que eram suspeitas de serem especialistas em “atar nós” (um suposto ardil para causar a impotência masculina) de assistirem aos casamentos (Mandrou 1968, p. 81-2, 391 e segs.; Le Roy Ladurie, 1974, p. 204-05; Lecky, 1886, p. 100).
35. ↑ Este relato aparece em várias demonologias. Generalmente termina quando o homem descobre o dano que lhe foi causado e força a bruxa a lhe devolver seu pênis. Ela o acompanha até o alto de uma árvore onde tem muitos pênis escondidos em um ninho; o homem escolhe um deles, mas a bruxa se opõe: “Não, esse é o do Bispo”.
36. ↑ Carolyn Merchant (1980, p. 168) afirma que os interrogatórios e as torturas às bruxas proporcionaram o modelo para o método da Nova Ciência, tal como definida por Francis Bacon: Boa parte do imaginário usado por Bacon para delinear seus objetivos e métodos científicos deriva dos julgamentos. Na medida em que trata a natureza como uma mulher a ser torturada por meio de invenções mecânicas, seu imaginário está fortemente sugestionado pelos interrogatórios nos julgamentos por bruxaria e pelos aparatos mecânicos usados para torturar bruxas. Em uma passagem pertinente, Bacon afirmou que o método pelo qual os segredos da natureza poderiam ser descobertos consistia em investigar os segredos da bruxaria pela Inquisição […].
37. ↑ O strappado era uma forma de tortura pela qual as mãos da vítima eram primeiramente amarradas em suas costas e, então, suspensas no ar por meio de uma corda ligada aos pulsos, que quase sempre causava deslocamento dos braços. Pesos podiam ser colocados junto ao corpo para intensificar o efeito e aumentar a dor. N.T. P.
38. ↑ No texto se lê “(night)mare”. Night é “noite” e mare se traduz como “égua”. Nightmare é “pesadelo”. Não se trata só de um jogo de palavras. Em inglês, a fêmea do cavalo forma parte da etimologia da palavra “pesadelo”. N.T.E.
39. ↑ Sobre o ataque contra animais, ver o Capítulo 2.
40. ↑ Nesse contexto, é significativo que as bruxas tenham sido acusadas com frequência por crianças. Norman Cohn interpretou o fenômeno como uma revolta dos jovens contra os velhos e, em particular, contra a autoridade dos pais (N. Cohn, 1975; Trevor Roper, 2000). Mas é necessário considerar outros fatores. Em primeiro lugar, é verossímil que o clima de medo criado pela caça às bruxas ao logo dos anos fosse o motivo para que houvesse uma grande presença de crianças entre os acusadores, o que começou a se materializar no século XVII. Também é importante destacar que as acusadas de ser bruxas eram fundamentalmente mulheres proletárias, enquanto que as crianças que as acusavam eram frequentemente os filhos de seus patrões. Assim, é possível supor que as crianças foram manipuladas por seus pais para que formulassem acusações que eles mesmos eram reticentes a dizer, como foi sem dúvida o que aconteceu no caso do julgamento das bruxas de Salem. Também se deve considerar que, nos séculos XVI e XVII, havia uma crescente preocupação entre os endinheirados pela intimidade física entre seus filhos e seus serventes, sobretudo suas babás, que começava a aparecer como uma fonte de indisciplina. A familiaridade que havia existido entre os patrões e seus serventes durante a Idade Média desapareceu com a ascensão da burguesia, que formalmente instituiu relações mais igualitárias entre os patrões e seus subordinados (por exemplo, ao nivelar os estilos de vestir), mas que na realidade aumentou a distância física e psicológica entre eles. No lar burguês, o patrão já não se despia na frente dos seus serventes, nem dormia na mesma habitação.
41. ↑ Para um exemplo de um sabá verossímil, no qual os elementos sexuais se combinam com temas que evocam a rebelião de classe, ver a descrição de Julian Cornwall do acampamento rebelde que os camponeses estabeleceram durante a revolta de Norfolk de 1549. O acampamento causou bastante escândalo entre a alta burguesia, que aparentemente o considerou um verdadeiro sabá.
A conduta dos rebeldes foi deturpada em todos seus aspectos. Se dizia que o acampamento havia se convertido na Meca de todos os libertinos do país […] Bandas de rebeldes buscavam suprimentos e dinheiro. Se disse que 3 mil bois e 20 mil ovelhas, sem contar porcos, aves de curral, cervos, cisnes e milhares de celemins de milho foram trazidos e consumidos em poucos dias. Homens cuja dieta cotidiana era com frequência escassa e monótona se rebelaram diante da abundância de carne e se esbanjou com imprudência. O sabor foi muito mais doce por provir de bestas que eram a raiz de tanto ressentimento. (Cornwall, 1977, p. 147)
As “bestas” eram as muito valorizadas ovelhas produtoras de lã, que estavam efetivamente, como disse Thomas More em sua Utopia, “comendo os humanos”, já que as terras aráveis e os campos comuns estavam sendo cercados e convertidos em pasto para sua criação.
42. ↑ Na América do Norte, a palavra faggot é uma das mais ofensivas para desqualificar os homossexuais. Na Inglaterra ela ainda conserva seu significado original: “feixe de lenha para fogo”. N.T.E.
43. ↑ Finocchio é uma gíria italiana de significado semelhante à expressão em inglês faggot. N.T. P.
44. ↑ Thorndike (1923-58, p. 69), Holmes (1974, p. 85-6) e Monter (1969, p. 57-8). Kurt Seligman escreve que desde meados do século XIV até o século XVI a alquimia foi universalmente aceita, mas com o surgimento do capitalismo mudou a atitude dos monarcas. Nos países protestantes, a alquimia se converteu em objeto de ridicularização. O alquimista era retratado como um vendedor de tabaco, que prometia converter os metais em ouro mas fracassava na sua tentativa (Seligman, 1948, p. 126 e segs.). Com frequência era representado trabalhando em seu estúdio, rodeado de estranhos vasos e instrumentos, estranho a tudo o que lhe rodeava, enquanto que do outro lado da rua estavam sua esposa e filhos batendo na porta da casa pobre. O retrato satírico do alquimista feito por Ben Jonson reflete esta nova atitude.
A astrologia também era praticada já no século XVII. Em sua Demonología (1597), James I afirmava que era legítima, sobretudo quando se limitava ao estudo das estações e à previsão do tempo. Uma descrição detalhada da vida de um astrólogo inglês no final do século XVI se encontra em Sex and Society in Shakespeare’s Age (1974), de A. L Rowse. Aqui tomamos conhecimento de que na mesma época em que a caça às bruxas chegava ao seu apogeu, um mago podia continuar realizando seu trabalho, ainda que com certa dificuldade e correndo às vezes certos riscos.
45. ↑ Em referência às Antilhas, Anthony Barker (1978: 121-23) escreveu:
Nenhum aspecto desfavorável da imagem do negro construída pelos proprietários de escravos tinha raízes mais amplas ou profundas que a acusação de apetite sexual insaciável. Os missionários informavam que os negros se negavam a ser monogâmicos, eram excessivamente libidinosos e contavam histórias de negros que tinham relações sexuais com macacos.
46. ↑ Na ldade Média, quando um filho (ou uma filha) se responsabilizava pela propriedade familiar, ele (ou ela) assumia automaticamente o cuidado de seus envelhecidos pais, enquanto no século XVI os pais começaram a ser abandonados e se deu maior prioridade aos filhos (Macfarlane, 1970, p. 205).
47. ↑ O estatuto aprovado por Jaime I em 1604 impôs a pena de morte para quem “usasse os espíritos ou a magia” sem importar se provocaram algum dano. Este estatuto se converteu depois na base sobre a qual se realizou a perseguição às bruxas nas colônias americanas.
48. ↑ Em “Outrunning Atlanta: Feminine Destiny in Alchemic Transmutations”, Allen e Hubbs escrevem que:
O simbolismo recorrente nos trabalhos de alquimia sugere uma obsessão por reverter ou, talvez, inclusive deter a hegemonia feminina sobre o processo de criação biológica […] Este domínio desejado é também representado em imagens como a de Zeus parindo a Atenas pela sua cabeça […] ou Adão parindo a Eva desde seu peito. O alquimista que exemplifica a luta pelo controle do mundo natural busca nada menos que a magia da maternidade […] Desta maneira, o grande alquimista Paracelso responde afirmativamente a pergunta sobre se “é possível para a arte e a natureza que um homem nasça fora do corpo de uma mulher e fora de uma mãe natural” (Allen y Hubbs, 1980: 213).
49. ↑ Sobre a imagem da pétroleuse ver Albert Boime (1995, p. 109-11; 196-99), Art and the French Commune e Rupert Christiansen (1994, p. 352-53), Paris Babylon: The Story of the Paris Commune.

Capítulo V
Colonização e cristianização

Calibã e as bruxas no Novo Mundo

[…] e então eles dizem que viemos a essa terra para destruir o mundo. Dizem que os ventos devastam as casas e cortam as árvores, e o fogo as queima, mas que nós devoramos tudo, consumimos a terra, mudamos o curso dos rios, nunca estamos tranquilos, nunca descansamos, sempre corremos de lá pra cá, buscando ouro ou prata, nunca satisfeitos e então especulamos com eles, fazemos guerra, matamos uns aos outros, roubamos, insultamos, nunca falamos a verdade e privamo-nos de seus meios de vida. E, finalmente, maldizem o mar que pôs sobre a terra crianças tão malvadas e cruéis.

Girolamo Benzoni, História do Mundo Novo, 1565.

[…] vencidas pela tortura e pela dor, as mulheres foram obrigadas a confessar que adoravam os huacas1[…] Elas se lamentavam, “agora, nesta vida, nós, mulheres […] somos cristãs; talvez depois o sacerdote seja culpado se nós, mulheres, adorarmos as montanhas, se fugirmos para as colinas e para as montanhas e a puna,2 já que aqui não há justiça para nós”.

Felipe Guamán Poma de Ayala, Nova Crônica e Bom Governo, 1615

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1 Introdução 2 O nascimento dos canibais 3 Exploração, resistência e demonização 4 Mulheres e bruxas na América 5 As bruxas europeias e os “índios” 6 A caça às bruxas e a globalização

Introdução

A história do corpo e da caça às bruxas é baseada em uma hipótese que se pode ser resumida, em referência ao Calibã e a bruxa, com os personagens de A tempestade, simbolizando a resistência dos índios americanos à colonização3

Dessa forma, Próspero e Calibã nos proporcionam uma poderosa metáfora do colonialismo. Um ramo dessa interpretação aborda a condição abstrata de Calibã, vítima da história, frustrado ao entender-se completamente carente de poder. Na América Latina, o nome de Calibã tem sido adotado de um modo mais positivo, tendo em vista que Calibã parece representar as massas que lutam e se levantam contra a opressão da elite.. A hipótese é precisamente a continuidade entre a dominação das populações do Novo Mundo e a das populações da Europa, em especial as mulheres, durante a transição ao capitalismo. Em ambos casos, ocorreu a expulsão forçada de populações inteiras de suas terras, o empobrecimento em grande escala, o lançamento de campanhas de “cristianização” que destruíram a autonomia das pessoas e suas relações comunais. Também houve uma influência recíproca por meio da qual certas formas repressivas, que haviam sido desenvolvidas no Velho Mundo, foram transportadas para o Novo e depois retomadas na Europa.

As diferenças não devem ser subestimadas. No século XVIII, a afluência de ouro, prata e outros recursos procedentes da América para a Europa deu lugar a uma nova divisão internacional do trabalho que fragmentou o proletariado global por meio de segmentações classistas e sistemas disciplinares, que marcaram o começo de trajetórias, frequentemente conflitivas, dentro da classe trabalhadora. As semelhanças no tratamento que receberam tanto as populações europeias como as da América são suficientes para demonstrar a existência de uma mesma lógica que rege o desenvolvimento do capitalismo e conforma o caráter estrutural das atrocidades perpetradas neste processo. A extensão da caça às bruxas às colônias americanas constitui um exemplo notável.

No passado, a perseguição de mulheres e homens sob a alegação de bruxaria era um fenômeno que os historiadores normalmente consideravam como algo limitado à Europa. A única exceção a essa regra eram os juízos das Bruxas de Salem, que ainda constituem o principal tema de estudo dos acadêmicos que pesquisam a caça às bruxas no Novo Mundo. Hoje em dia, no entanto, admite-se que a acusação de adoração ao Diabo também teve um papel-chave na colonização da população aborígene americana. Em relação a este tema, deve-se mencionar particularmente dois textos que constituem a base da minha argumentação neste capítulo. O primeiro é Moon, Sun and Witches (1987) A lua, o sol e as bruxas de Irene Silverblatt, um estudo sobre a caça às bruxas e a redefinição das relações de gênero na sociedade inca e o Peru colonial, que,segundo meus conhecimentos, é o primeiro estudo em inglês que reconstrói a história das mulheres andinas perseguidas por sua condição de bruxas. O outro texto é Streghe e Potere (1998) Bruxas e poder, de Luciano Parinetto, uma série de ensaios que documentam o impacto da caça às bruxas na América, sobre os juízos das bruxas na Europa. Este é, na minha opinião, um estudo deficiente por causa da insistência do autor em assinalar que a perseguição às bruxas era neutra em relação ao gênero.

Ambos trabalhos demonstram que, também no Novo Mundo, a caça às bruxas constituiu-se em uma estratégia deliberada, utilizada pelas autoridades com o objetivo de propagar terror, destruir resistências coletivas, silenciar comunidades inteiras e instigar o conflito entre seus membros. Também foi uma estratégia de cercamento, que, segundo o contexto, podia consistir em cercamentos de terra, de corpos ou de relações sociais. Da mesma forma que ocorreu na Europa, a caça às bruxas foi, sobretudo, um meio de desumanização e, como tal, uma forma paradigmática de repressão que servia para justificar a escravidão e o genocídio.

A caça às bruxas não destruiu a resistência dos colonizados. Devido à luta das mulheres, o vínculo das índios americanos com a terra, as religiões locais e a natureza sobreviveram à perseguição, proporcionando uma fonte de resistência anticolonial e anticapitalista durante mais de 500 anos. Isso é extremamente importante para nós em um momento de conquista renovada dos recursos e das formas de existência das populações indígenas. Devemos repensar o modo com que os conquistadores lutaram para dominar aqueles a quem colonizavam; foi o que permitiu a estes últimos subverter este plano, e contra a destruição de seu universo social e físico, criar uma nova realidade histórica.

O nascimento dos canibais

Quando Cristóvão Colombo navegou em direção às “Índias”, a caça às bruxas ainda não constituía um fenômeno de massa na Europa. No entanto, a acusação de adorar o Demônio como uma arma para atacar inimigos políticos e vilipendiar populações inteiras – como os muçulmanos e os judeus – já era uma prática comum entre as elites. Mais do que isso, como escreve Seymour Philips, uma “sociedade persecutória” foi se desenvolvendo na Europa Medieval, alimentada pelo militarismo e pela intolerância cristã, que olhava o “Outro” principalmente como objeto de agressão (Philips, 1994). Dessa forma, não é surpreendente que “canibal”, “infiel”, “bárbaro”, “raças monstruosas” e “adorador do Diabo” fossem “modelos etnográficos” com os quais os europeus “apresentaram a nova era de expansão” (ibidem, p. 62). Esses termos proporcionaram o filtro por meio do qual os missionários e conquistadores interpretaram as culturas, religiões e costumes sexuais da população que encontraram4. Outras marcas culturais contribuíram para a invenção dos “índios”. O “nudismo” e a “sodomia” eram muito mais estigmatizantes e, provavelmente, projetavam as necessidades de mão de obra dos espanhóis, que qualificavam os ameríndios como seres que viviam em estado animal – prontos para serem transformados em bestas de carga – apesar de alguns informes também enfatizarem suas propensões a compartilhar “e a entregar tudo o que têm em troca de objetos de pouco valor” como um sinal de sua bestialidade (Hulme, 1994, p.198).

Ao definir as populações aborígenes como canibais, adoradores do Diabo e sodomitas, os espanhóis respaldaram a ficção de que a Conquista não foi uma busca desenfreada por ouro e prata, mas uma missão de conversão, uma alegação que, em 1508, ajudou a Coroa Espanhola a obter a benção papal e a autoridade absoluta da Igreja na América. Também eliminou aos olhos do mundo, e possivelmente dos próprios colonizadores, qualquer sanção contra as atrocidades que eles pudessem cometer contra os índios, funcionando assim como uma licença para matar independentemente do que as possíveis vítimas pudessem fazer. E, efetivamente, “o chicote, o tronco, a prisão, a tortura, a violação e ocasionalmente o assassinato se converteram em armas comuns para reforçar a disciplina do trabalho” no Novo Mundo (Cockroft, 1990, p. 19).

Em uma primeira fase, no entanto, a imagem dos colonizados como adoradores do Diabo pôde coexistir com uma imagem mais positiva, inclusive idílica, que descrevia os “índios” como seres inocentes e generosos, que levavam uma vida “livre da labuta e da tirania”, remetendo à mítica “época dourada” ou a um paraíso terreno (Brandon, 1986, p. 6-8; Sale, 1991, p.100-01).

Essa caracterização pode ter sido um estereótipo literário ou – como sugeriu Roberto Retamar, entre outros – a contrapartida retórica da imagem do “selvagem”, expressando assim a incapacidade dos europeus em considerar as pessoas com as quais se encontravam como verdadeiros seres humanos5. Mas esse olhar otimista também corresponde a um período da Conquista (de 1520 à 1540) no qual os espanhóis ainda acreditavam que as populações aborígenes seriam facilmente convertidas e subjugadas (Cervantes, 1994). Essa foi a época dos batismos massivos, na qual se manifestou o maior fervor para convencer os “índios” a mudar seus nomes e abandonar seus deuses e costumes sexuais, especialmente a poligamia e a homossexualidade. As mulheres, com seus peitos nus, foram obrigadas a cobrir-se, os homens com tangas tiveram que usar calças (Cockroft, 1983, p. 21). Nessa época, a luta contra o demônio consistia principalmente em fogueiras de “ídolos” locais, ainda que, entre 1536 (quando se introduziu a Inquisição na América) e 1543, muitos líderes políticos e religiosos do centro do México fossem julgados e queimados na fogueira pelo padre franciscano Juan de Zumárraga.

À medida que a Conquista avançava, deixou de haver espaço para qualquer tipo de acordo. Não é possível impor seu poder sobre outras pessoas sem rebaixá-las, até o ponto em que mesmo a possibilidade de identificação fosse inviabilizada. Assim, apesar das primeiras homílias sobre os amáveis tainos6, inaugurou-se uma máquina ideológica complementar à militar que retratava os colonizados como seres “imundos” e demoníacos, praticantes de todo tipo de abominações, enquanto os mesmos crimes que antes haviam sido atribuídos à falta de educação religiosa – sodomia, canibalismo, incesto, “travestismo” – eram agora considerados provas de que os “índios” se encontravam sob o domínio do Diabo e que podiam ser justificadamente privados de suas terras e de suas vidas (Williams, 1986, p. 136-37). Em relação a essa mudança de imagem, Fernando Cervantes escreve o seguinte em The Devil in the New World (1994, p. 8) O Demônio no Novo Mundo:

[…] antes de 1530 seria difícil prever qual desses enfoques se converteria no ponto de vista dominante. No entanto, na metade do século XVI já havia triunfado uma visão demoníaca muito negativa das culturas ameríndias e sua influência pairava como um imenso nevoeiro sobre cada afirmação, oficial ou não, feita sobre o tema.

Sobre a base das histórias contemporâneas das “Índias” – como as de Gomara (1556) e de Acosta (1590) – seria possível conjeturar que essa mudança de perspectiva foi provocada pelo encontro dos europeus com Estados imperialistas como o Asteca e o Inca, cujas maquinarias repressivas incluíam a prática de sacrifícios humanos (Martínez et al., 1976). Em Historia Natural y Moral de Las Indias A História Natural e Moral das Índias, publicado em Sevilha em 1590 pelo jesuíta José de Acosta, há descrições que nos trazem uma vívida sensação da repulsa gerada nos espanhóis em relação aos sacrifícios massivos de centenas de jovens (prisioneiros de guerra, crianças compradas e escravas), praticados principalmente pelos astecas7. No entanto, ao ler o relato de Bartolomé de las Casas sobre a destruição das “Índias” ou de qualquer outro informe sobre a Conquista, nos perguntamos por que os espanhóis se sentiriam impressionados por essas práticas quando eles mesmos não tiveram escrúpulos ao cometer impronunciáveis atrocidades em nome de Deus e do ouro, quando em 1521, segundo Cortés, massacraram 10 mil pessoas apenas para Conquistar Tenochtitlán (Cockroft, 1983, p. 19).

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Como resultado da conquista, proliferou na Europa a edição dos diários de viagem ilustrados com terríveis imagens de canibais se empanturrando de restos humanos. Um banquete canibal na Bahia (Brasil), de acordo com a descrição do alemão J.G. Aldenburg.

Do mesmo modo, os rituais canibalistas que os espanhóis descobriram na América, e que ocupam um lugar destacado nos registros da Conquista, não devem ter sido muito diferentes das práticas médicas populares na Europa durante aquela época. Nos séculos XVI, XVII e até mesmo XVIII, o consumo de sangue humano (especialmente daqueles que haviam morrido de forma violenta) e de água de múmias, que se obtinha banhando a carne humana em beberagens, era uma cura comum para a epilepsia e outras doenças em muitos países europeus. Este tipo de canibalismo, “envolvendo carne humana, sangue, coração, crânio, medula óssea e outras partes do corpo não estava limitado a grupos marginais, como também era praticado nos círculos mais respeitáveis” (Gordon-Grube, 1988, p. 406-07)8. Portanto, o novo horror que os espanhóis sentiram pelas populações aborígenes a partir da década de 1550 não pode ser facilmente atribuído a um choque cultural, mas deve ser visto como uma resposta inerente à lógica da colonização, que, inevitavelmente precisa desumanizar e temer aqueles que quer escravizar.

O êxito dessa estratégia pode ser observado na facilidade com que os espanhóis explicaram, de forma “racional”, as altas taxas de mortalidade causadas pelas epidemias que dizimaram a região no começo da Conquista, e que eles conceberam como um castigo divino pela conduta bestial dos índios9. Também o debate ocorrido em Valladolid, em 1550, entre Bartolomé de las Casas e o jurista espanhol Juan Ginés de Sepúlveda, sobre se os “índios” deveriam ou não ser considerados seres humanos, teria sido impensável sem uma campanha ideológica que representasse estes como animais e demônios10.

A divulgação dessas ilustrações – banquetes canibalísticos com multidões de corpos nus oferecendo cabeças e membros humanos como prato principal – que retratavam a vida no Novo Mundo com reminiscências dos sabás aquelarres das bruxas e que começaram a circular por toda a Europa depois da década de 1550, completaram o trabalho de degradação. Le Livre des Antipodes (1630) O Livro dos Antípodas, compilado por Johann Ludwig Gottfried, constitui um exemplo tardio deste gênero literário que exibe uma grande quantidade de imagens horrorosas: mulheres e crianças empanturrando-se de vísceras humanas, ou a comunidade canibal reunida ao redor de uma grelha, deleitando-se com pernas e braços enquanto observam restos humanos sendo assados. Já as ilustrações que aparecem em Les singularités de la France Antarctique (Paris, 1557) As singularidades da França Antártica, realizadas pelo franciscano francês André Thevet – centrado no esquartejamento, a preparação e a degustação de carne humana – e a obra de Hans Staden, Wahrharftige Historia (Marburg, 1557), na qual o autor descreve seu cativeiro entre os índios canibais do Brasil (Parinetto, 1998, p. 428), constituem contribuições anteriores à produção cultural dos ameríndios como seres bestiais.

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Canibais na Bahia se regalando com restos humanos. Ilustrações que mostravam a comunidade ameríndia assando e se alimentando de restos humanos completaram o aviltamento das populações aborígenes americanas, iniciado previamente pelo trabalho dos missionários.

Exploração, resistência e demonização

A decisão da Coroa Espanhola de introduzir um sistema muito mais severo de exploração nas colônias americanas na década de 1550 constituiu um dos momentos cruciais de virada da propaganda anti-índígena e da campanha anti-idolatria que acompanharam o processo de colonização. A decisão foi motivada pela crise da “economia de rapina”, que fora introduzida depois da Conquista, pela qual a acumulação de riqueza continuou dependendo da expropriação dos excedentes de bens dos “índios” mais que da exploração direta de seu trabalho (Spalding, 1984; Steve J. Stern, 1982). Até a década de 1550, apesar dos massacres e da exploração associados ao sistema de encomienda, os espanhóis não haviam desorganizado completamente as economias de subsistência que encontraram nas áreas colonizadas. Pelo contrário, devido à riqueza acumulada, eles confiavam nos sistemas de tributo postos em prática pelos astecas e incas, por meio do qual os chefes designados (caciques, no México; kurakas, no Peru) lhes entregavam parcelas de bens e trabalho, supostamente compatíveis com a sobrevivência das economias locais. O tributo fixado pelos espanhóis era muito maior que o demandado pelos incas e astecas àqueles a quem conquistavam; mas ainda assim não era suficiente para satisfazer suas necessidades. Por volta da década de 1550, passou a ser mais difícil obter mão de obra suficiente, tanto para os obrajes (oficinas de manufatura nas quais se produziam bens para o mercado internacional mundial) como para a exploração das minas de prata e mercúrio, recentemente descobertas, como a legendária mina de Potosí11.

A necessidade de extrair mais trabalho das populações aborígenes provinha principalmente da situação interna da metrópole. A Coroa Espanhola estava literalmente nadando em lingotes de outro e prata americanos, com os quais comprava os bens e alimentos que já não se produziam na Espanha. Além disso, a riqueza produzida pelo saque financiou a expansão europeia da Coroa. Esta situação dependia em tal medida da contínua chegada de grandes quantidades de prata e outro do Novo Mundo que, na década de 1550, a Coroa estava preparada para destruir o poder dos encomenderos com a finalidade de se apropriar de grande parte do trabalho dos índios para a extração de prata, que posteriormente seria enviada em navios para a Espanha12. Por outro lado, a resistência à colonização estava aumentando (Spalding, 1984, p. 134-35; Stern, 1982)13. Foi em resposta a este desafio que, tanto no México como no Peru, se declarou uma guerra contra as culturas indígenas, abrindo caminho para uma intensificação draconiana do domínio colonial.

No México, essa mudança ocorreu em 1562, quando, por iniciativa do Provincial Diego de Landa, foi lançada uma campanha anti-idolatria na península de Yucatán, durante a qual mais de 4.500 pessoas foram capturadas e brutalmente torturadas sob a acusação de praticar sacrifícios humanos. Em seguida, foram objetos de um castigo público bem orquestrado que, por fim, completou a destruição de seus corpos e sua moral (Clendinnen, 1987, p. 71-92). As penas infligidas foram tão cruéis (açoites tão severos que fizeram que o sangue fluísse anos de escravidão nas minas) que muita gente morreu, ou ficou impedida de trabalhar; outros fugiram de suas casas ou se suicidaram, de tal forma que o trabalho terminou e a economia regional foi destruída. Entretanto, a perseguição montada por Landa se transformou no fundamento de uma nova economia colonial, que fez que a população local entendesse que os espanhóis haviam chegado para ficar e que o domínio dos antigos deuses havia terminado (ibidem, p. 190).

Também no Peru, o primeiro ataque em grande escala contra o culto diabólico ocorreu em 1560, coincidindo com o surgimento do movimento Taki Onqoy14, um movimento nativo milenarista que argumentava contra o colaboracionismo com os europeus e a favor de uma aliança pan-andina dos deuses locais (huacas) para por fim à colonização. Os Takionqos atribuíam a derrota sofrida e a crescente mortalidade ao abandono dos deuses locais e encorajavam as pessoas a rejeitar a religião cristã, os nomes, a comida e a roupa recebida dos espanhóis. Também incitavam as pessoas a recusarem o pagamento de tributos e o trabalho forçado imposto pelos espanhóis, e a “abandonarem o uso de camisas, chapéus, sandálias ou qualquer outro tipo de vestimenta proveniente da Espanha” (Stern, 1982, p. 53). Prometiam que se isto se concretizasse, os huacas revividos dariam a volta ao mundo e destruiriam os espanhóis, enviando-lhes doenças, inundações em suas cidades e a ascensão do oceano para apagar todo rastro de sua existência (Stern, 1982, p. 52-64).

A ameaça formulada pelos Takionqos era séria, uma vez que, ao convocar uma unificação pan-andina dos huacas, o movimento marcava o começo de um novo senso da identidade capaz de superar as divisões vinculadas à organização tradicional dos ayullus (unidades familiares). Nas palavras de Stern, essa foi a primeira vez que o povo dos Andes começou a se enxergar como um só, como “índios” (Stern, 1982, p. 59) e, de fato, o movimento se expandiu amplamente alcançando “como extremo norte, a cidade de Lima; como extremo leste, Cuzco, e do topo da elevada puna do sul, até La Paz, na atual Bolívia” (Spalding, 1984, p. 246). A resposta veio do Conselho eclesiástico realizado em Lima em 1567, que estabeleceu que os sacerdotes deviam “extirpar as inumeráveis superstições, cerimônias e ritos diabólicos dos índios. Também deviam erradicar a embriaguez, prender médicos-bruxos e, sobretudo, descobrir e destruir os lugares sagrados e os talismãs” relacionados com o culto dos huacas. Essas recomendações foram repetidas em um sínodo celebrado em Quito, no ano de 1570, durante o qual, novamente, foi denunciada a existência de “médicos-bruxos que […] protegem os huacas e conversam com o Diabo” (Hemming, 1970, p. 397).

Os huacas eram montanhas, fontes de água, pedras e animais que encarnavam os espíritos dos ancestrais. Como tais, eram cuidados, alimentados e adorados de forma coletiva, já que todos os consideravam como os principais vínculos com a terra e com as práticas agrícolas primordiais para a reprodução econômica. As mulheres falavam com eles, como parece ainda acontecer em algumas regiões da América do Sul, para se assegurarem de uma boa colheita (Descola, 1994, p. 191-214)15). Destruí-los ou proibir seu culto era uma forma de atacar a comunidade, suas raízes históricas, a relação do povo com a terra e sua relação intensamente espiritual com a natureza. Os espanhóis compreenderam isso na década de 1550 e embarcaram em uma sistemática destruição de tudo aquilo que se assemelhava a um objeto de culto. O que Claude Baudez e Sydney Picasso escreveram sobre a campanha anti-idolatria dirigida pelos franciscanos contra os maias em Yucatán também se aplica ao ocorrido no resto do México e no Peru.

Os ídolos foram destruídos, os templos incendiados e aqueles que celebravam ritos nativos e praticavam sacrifícios foram punidos com a morte; as festividades, tais como os banquetes, as canções e as danças, assim como as atividades artísticas e intelectuais (pintura, escultura, observação das estrelas, escrita hieroglífica) – suspeitas de serem inspiradas pelo Diabo – foram proibidas e aqueles que participavam delas foram perseguidos sem misericórdia. (Baudez e Picasso, 1992, p. 21)

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Uma mulher andina é obrigada a trabalhar nos obrajes, oficinas de manufatura que produziam para o mercado internacional. Cena de Felipe Guaman Poma de Ayala, em seu manuscrito El Primer nueva coronica y buen gobierno (1600-1615).

Esse processo veio de mãos dadas com a reforma exigida pela Coroa Espanhola, que aumentou a exploração do trabalho indígena com a finalidade de assegurar um maior fluxo de lingotes de outro e prata para os seus cofres. Com essa finalidade, foram introduzidas duas medidas, ambas facilitadas pela campanha anti-idolatria. Em primeiro lugar, a cota de trabalho que os chefes locais deviam prover para o trabalho nas minas e obrajes foi aumentada notavelmente, e a execução da nova norma foi posta em mãos de um representante local da Coroa (corregidore) com o poder de prender e administrar outras formas de punição no caso de desobediência. Além disso, houve um programa de reassentamento (reducciones) que levou a maior parte da população rural a aldeias designadas, a fim de exercer sobre ela um controle mais direto. A destruição dos huacas e a perseguição da religião dos antepassados a eles associada teve um papel decisivo em ambas as medidas, dado que as reduções (reducciones) adquiriram maior força a partir da demonização dos lugares de culto locais.

Rapidamente, evidenciou-se que, sob o manto da cristianização, os povos continuaram adorando seus deuses, da mesma forma que continuaram retornando a suas milpas (campos), depois de terem sido tirados de suas casas. Por isso, o ataque aos deuses locais, ao invés de diminuir, se intensificou com o passar do tempo, alcançando seu ápice entre 1619 e 1660, quando a destruição dos ídolos foi acompanhada por verdadeiras caças às bruxas, desta vez convertendo as mulheres em seu objeto particular. Karen Spalding descreveu uma dessas caças às bruxas conduzidas no repartimiento de Huarochirí, em 1660, pelo sacerdote inquisidor Dom Juan Sarmiento. Tal como ela assinala, a investigação foi dirigida segundo o mesmo padrão das caças às bruxas na Europa. Começou com a leitura do edital contra a idolatria e a pregação de um sermão contra este pecado. Isto era seguido por denúncias secretas fornecidas por informantes anônimos, então havia o interrogatório dos suspeitos, o uso de tortura para extrair confissões e, finalmente, a sentença e a punição, que nesse caso consistia no açoite em público, o exílio e outras formas de humilhação:

As pessoas sentenciadas eram levadas à praça pública […] Eram colocadas entre mulas e burros, com cruzes de madeira de aproximadamente seis polegadas de largura penduradas ao redor de seus pescoços. A partir desse dia deveriam levar essas marcas de humilhação. As autoridades religiosas colocavam uma coroa medieval sobre suas cabeças, um capuz em forma de cone feito de papelão, que era a marca europeia e católica da infâmia e da desgraça. O cabelo por debaixo dos capuz era cortado como uma marca de humilhação andina. Aqueles que eram condenados a receber chicotadas tinham suas costas despidas. Colocavam cordas ao redor de seus pescoços. Eram levados lentamente pelas ruas do povo, precedidos por um pregonero16 que lia seus crimes […] Depois desse espetáculo, as pessoas eram trazidas de volta, algumas com suas costas sangrando devido aos 20, 40 ou 100 açoites desferidos pelo carrasco do povo com o açoite de faixas de nove nós. (Spalding, 1984, p. 256)

Spalding conclui:

As campanhas de idolatria eram rituais exemplares, didáticas peças teatrais dirigidas tanto para a audiência como para os participantes, parecidas com os enforcamentos públicos da Europa Medieval. (Ibidem, p. 265)

Seu objetivo era intimidar a população, com a finalidade de criar um “espaço de morte”17) em que os potenciais rebeldes se sentissem tao paralisados pelo medo que aceitassem qualquer coisa para não ter de enfrentar o tormento daqueles que eram açoitados e humilhados publicamente. Nisso, os espanhóis foram em parte bem sucedidos. Frente à tortura, às denúncias anônimas e às humilhações públicas, muitas alianças e amizades se romperam; a fé dos povos na efetividade de seus deuses se debilitou e o culto se transformou em uma prática individual e secreta, mais que coletiva, tal como havia sido na América antes da Conquista.

Segundo Spalding, a profundidade com que o tecido social se viu afetado por essas campanhas de terror pode ser observada nas mudanças que, com o passar do tempo, começaram a ocorrer na natureza das acusações. Enquanto, na década de 1550, as pessoas podiam reconhecer abertamente seu apego e o de sua comunidade à religião tradicional, na década de 1650 os crimes dos que eram acusadas giravam em torno da “bruxaria”, uma prática que agora pressupunha uma conduta secreta e que se parecia cada vez mais com as acusações feitas contra as bruxas na Europa. Por exemplo, na campanha lançada em 1660 na zona de Huarochirí, “os crimes descobertos pelas autoridades […] estavam vinculados à cura, ao achado de objetos perdidos e a outras modalidades do que, em termos gerais, poderia denominar-se ‘bruxaria’ aldeã, campesina”. No entanto, a própria campanha revelava que, apesar da perseguição, aos olhos das comunidades, “os antepassados e huacas continuavam sendo essenciais para sua sobrevivência” (Spalding, 1984, p. 261).

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Cenas de Felipe Guaman Poma de Ayala, representando a terrível experiência das mulheres andinas e dos seguidores da religião dos antepassados. (De Steve J. Stern, 1982). Cena 1: Humilhação pública durante uma campanha anti-idolatria.

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Cena 2: As mulheres como “botins da conquista”.

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Cena 3: As divindades huacas, representadas como demônios, falam através de um sonho.

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Cena 4: Um membro do movimento Taki Ongoy com um índio bêbado possuído por uma divindade huana representada como o diabo.

Mulheres e bruxas na América

Não é coincidência que a “maioria dos condenados na investigação de 1660 em Huarochirí fossem mulheres (28 de 32)” (Spalding, 1984, p. 258). Também não é por acaso que as mulheres tiveram maior presença no movimento Taki Onqoy. Foram as mulheres que defenderam de forma mais ferrenha o antigo modo de existência e que de forma mais veemente se opuseram à nova estrutura de poder, provavelmente devido ao fato de serem também as mais afetadas.

Como mostra a existência de divindades femininas de importância nas religiões pré-colombianas, as mulheres tinham uma posição de poder nessas sociedades. Em 1517, Hernández de Córdoba chegou a uma ilha situada a pouca distância da costa da península de Yucatán e a chamou de Isla Mujeres “pois os templos que visitaram ali continham uma grande quantidade de ídolos femininos” (Baudez e Picasso, 1992, p. 17). Antes da Conquista, as mulheres americanas tinham suas próprias organizações, suas esferas de atividade reconhecidas socialmente e, ainda que não fossem iguais aos homens,18) eram consideradas complementares a eles quanto a sua contribuição na família e na sociedade.

Além de serem agricultoras, donas de casa, tecelãs e produtoras de panos coloridos utilizados tanto na vida cotidiana quanto durante as cerimônias, também eram oleiras, curandeiras e sacerdotisas a serviço dos deuses locais. No sul do México, na região de Oaxaca, estavam vinculadas à produção de pulque-maguey, uma substância sagrada que, segundo acreditavam, havia sido inventada pelos deuses e estava relacionada com Mayahuel, uma deusa mãe-terra que era “o centro da religião campesina” (Taylor, 1970, p. 31-2).

Tudo mudou com a chegada dos espanhóis, pois estes trouxeram sua bagagem de crenças misóginas e reestruturaram a economia e o poder político em favor dos homens. As mulheres sofreram também nas mãos dos chefes tradicionais, que, a fim de manter seu poder, começaram a assumir a propriedade das terras comunais e a expropriar das integrantes femininas da comunidade o uso da terra e seus direitos sobre a água. Na economia colonial, as mulheres foram assim reduzidas à condição de servas que trabalhavam como criadas – para os encomenderos, sacerdotes e corregidores – ou como tecelãs nos obrajes. As mulheres também foram forçadas a seguir seus maridos quando estes tinham que fazer o trabalho de mita nas minas – um destino que era considerado pior que a morte – dado que, em 1528, as autoridades estabeleceram que os cônjuges não podiam ficar afastados, com a finalidade de que, depois, as mulheres e as crianças fossem obrigadas a trabalhar nas minas, além de ter que preparar comida para os trabalhadores homens.

A nova legislação espanhola, que declarou a ilegalidade da poligamia, constituiu outra fonte de degradação para as mulheres. Do dia pra noite, os homem se viram obrigados a se separar de suas mulheres ou elas tiveram que se converter em criadas (Mayer, 1981), ao passo que as crianças que haviam nascido dessas uniões eram classificadas de acordo com cinco categorias diferentes de ilegitimidade (Nash, 1980, p. 143). Ironicamente, com a chegada dos espanhóis, ao mesmo tempo que as uniões poligâmicas eram dissolvidas, nenhuma mulher aborígene se encontrava a salvo do estupro ou do rapto. Dessa forma, muitos homens, em vez de se casarem, começaram a recorrer à prostituição (Hemming, 1970). Na fantasia europeia, a América em si era uma mulher nua reclinada que convidava, de forma sedutora, o estrangeiro branco que se aproximava. Em certos momentos, eram os próprios homens “índios” que entregavam suas parentes mulheres aos sacerdotes ou encomenderos em troca de alguma recompensa econômica ou um cargo público.

Por todos esses motivos, as mulheres se converteram nas principais inimigas do domínio colonial, negando-se a ir a missa, a batizar seus filhos ou a qualquer tipo de cooperação com as autoridades coloniais e os sacerdotes. Nos Andes, algumas se suicidaram e mataram seus filhos homens, muito provavelmente para evitar que fossem às minas e também devido à repugnância provocada, possivelmente, pelo maus-tratos que lhe infligiam seus parentes masculinos (Silverblatt, 1987). Outras organizaram suas comunidades e, frente à traição de muitos chefes locais cooptados pela estrutura colonial, se converteram em sacerdotisas, líderes e guardiãs das huacas, assumindo tarefas que nunca antes haviam exercido. Isto explica por que as mulheres constituíram a coluna vertebral do movimento Taki Onqoy. No Peru, elas também realizaram reuniões confessionais com o fim de preparar as pessoas para o momento em que se encontrassem com os sacerdotes católicos, aconselhando-lhes sobre que coisas deveriam contar e quais não deveriam revelar. Se, antes da Conquista, as mulheres estavam encarregadas exclusivamente das cerimônias dedicadas às divindades femininas, posteriormente se converteram em assistentes ou principais oficiantes em cultos dedicados aos huacas dos antepassados masculinos – algo que era proibido antes da Conquista (Stern, 1982). Também lutaram contra o poder colonial, escondendo-se nas zonas mais elevadas (punas), onde podiam praticar a religião antiga. Como assinala Irene Silverblatt (1987, p. 197):

Enquanto os homens indígenas fugiam da opressão da mita e do tributo, abandonando suas comunidades e indo trabalhar como yaconas (quase-servos) nas novas haciendas, as mulheres fugiam para as punas, inacessíveis e muito distantes das reducciones de suas comunidades nativas. Uma vez nas punas, as mulheres rejeitavam as forças e os símbolos de sua opressão, desobedecendo os administradores espanhóis, o clero, assim como os dirigentes de sua própria comunidade. Também rejeitavam energicamente a ideologia colonial, que reforçava sua opressão, negando-se a ir à missa, a participar em confissões católicas ou a aprender o dogma católico. E o que é ainda mais importante, as mulheres não rejeitavam só o catolicismo, mas também retornavam a sua religião nativa e, até onde era possível, à qualidade das relações sociais que sua religião expressava.

Ao perseguir as mulheres como bruxas, os espanhóis atingiam tanto os praticantes da antiga religião como os instigadores da revolta anti-colonial, ao mesmo tempo que tentavam redefinir “as esferas de atividade nas quais as mulheres indígenas podiam participar” (Silverblatt, 1987, p. 160). Como assinala Silverblatt, o conceito de bruxaria era alheio à sociedade andina. Também no Peru, como em todas as sociedades pré-industriais, muitas mulheres eram “especialistas no conhecimento médico”, estavam familiarizadas com as propriedades de ervas e plantas e também eram adivinhas. Mas a noção cristã de Demônio era desconhecida. Não obstante, por volta do século XVII, devido ao impacto da tortura, da intensa perseguição e da “aculturação forçada”, as mulheres andinas que eram presas, em sua maioria idosas e pobres, reconheciam os mesmos crimes que eram imputados às mulheres nos juízos de bruxaria na Europa: pactos e fornicação com o Diabo, prescrição de remédios a base de ervas, uso de unguento, voar pelos ares e fazer amuletos de cera (Silverblatt, 1987, p. 174). Também confessaram adorar as pedras, as montanhas e os mananciais, e alimentar os huacas. O pior de tudo foi que confessaram ter enfeitiçado as autoridades ou outros homens poderosos, causando a sua morte (ibidem, p. 187-188).

Como na Europa, a tortura e o terror foram utilizados para forçar os acusados a revelar outros nomes, a fim de que os círculos de perseguição se ampliassem cada vez mais. Mas um dos objetivos da caça às bruxas, o isolamento das bruxas do resto da comunidade, não foi alcançado. As bruxas andinas não foram transformadas em párias. Pelo contrário, “foram muito solicitadas como comadres e sua presença era requerida em reuniões aldeãs, na mesma medida em que a consciência dos colonizados, a bruxaria, a continuidade das tradições ancestrais e a resistência política consciente passaram a estar cada vez mais entrelaçadas” (ibidem). De fato, graças, em grande medida, à resistência das mulheres, a antiga religião pôde ser preservada. Houve certas mudanças no sentido das práticas associadas à religião. O culto foi levado à clandestinidade às custas do caráter coletivo que tinha na época anterior à Conquista. Mas os laços com as montanhas e os outros lugares das huacas não foram destruídos.

Encontramos uma situação parecida no centro e no sul do México, onde as mulheres, sobretudo as sacerdotisas, cumpriam um papel importante na defesa de suas comunidades e culturas. Segundo a obra de Antonio García de León, Resistencia y utopía, a partir da Conquista dessa região, as mulheres “dirigiram ou guiaram todas as grandes revoltas anti-coloniais” (de León, 1985, Vol. I, p. 31). Em Oaxaca, a presença das mulheres nas rebeliões populares continuou durante o século XVIII quando, um em cada quatro casos, eram elas que lideravam o ataque contra as autoridades, “e eram visivelmente mais agressivas, ofensivas e rebeldes” (Taylor, 1979, p. 116). Também em Chiapas, as mulheres foram os atores-chave da preservação da região antiga e da luta anti-colonial. Assim, quando, em 1524, os espanhóis lançaram uma campanha de guerra para subjugar os chiapanecos rebeldes, foi uma sacerdotisa quem liderou as tropas contra eles. As mulheres também participaram das redes clandestinas de adoradores de ídolos e de rebeldes que eram periodicamente descobertas pelo clero. Por exemplo, em 1584, durante uma visita a Chiapas, o bispo Pedro de Feria foi informado que muitos dos índios chefes locais ainda praticavam os antigos cultos e que estes estavam sendo aconselhados por mulheres, com as quais mantinham práticas obscenas, tais como cerimônias (do estilo do sabá) durante as quais dormiam juntos e se convertiam em deuses e deusas, “ficando a cargo das mulheres enviar a chuva e prover a riqueza a quem as solicitava” (de León, 1985, Vol. I, p. 76).

A partir desse registro, é irônico que seja Calibã – e não sua mãe, a bruxa Sycórax –, quem os revolucionários latino-americanos tomaram depois como símbolo da resistência à colonização. Calibã só pôde lutar contra seu senhor insultando-o na linguagem que havia aprendido com ele próprio, fazendo que sua rebelião dependesse das “ferramentas de seu senhor”. Ele também pôde ser enganado quando o fizeram crer que sua libertação chegaria por meio de um estupro e da iniciativa de alguns proletários oportunistas brancos, transladados ao Novo Mundo, a quem ele adorava como se fossem deuses. Em contraposição, Sycórax, uma bruxa “tão poderosa que dominava a lua e provocava os fluxos e refluxos” (A Tempestade, ato V, cena 1), pode ter ensinado seu filho a apreciar os poderes locais – a terra, as águas, as árvores, os “tesouros da natureza” – e esses laços comunais que, durante séculos de sofrimento, continuam nutrindo a luta pela liberação até o dia de hoje, e que habitavam, como uma promessa, a imaginação de Calibã:

Não tenhas medo; a ilha está cheia de sons

e músicas que deleitam sem causar-nos dano.

Muitas vezes ressoa em meus ouvidos a vibração

de mil instrumentos, e outras vezes são vozes

que, embora tenha me despertado de um longo sono,

de novo me fazem dormir. E, ao sonhar,

as nuvens se abrem, mostrando riquezas

prestes a choverem sobre mim, assim que acordo

choro porque desejo continuar sonhando.

Shakespeare, A Tempestade, ato III.

As bruxas europeias e os “índios”

A caça às bruxas no Novo Mundo teve algum impacto sobre os acontecimentos na Europa? Ou ambas perseguições simplesmente faziam uso das mesmas estratégias e táticas repressivas que a classe dirigente europeia havia forjado desde a Idade Média na perseguição dos hereges?

Formulo essas perguntas a partir da tese do historiador italiano Luciano Parinetto, que sustenta que a caça às bruxas no Novo Mundo teve um enorme impacto na elaboração da ideologia sobre a bruxaria na Europa, assim como na cronologia da caça às bruxas europeia.

Em poucas palavras, a tese de Parinetto sustenta que foi sob o impacto da experiência americana que a caça às bruxas na Europa se transformou em um fenômeno de massa durante a segunda metade do século XVI. Isto se deve ao fato de que as autoridades e o clero encontraram, na América, a confirmação de sua visão da adoração ao diabo, chegando a crer na existência de populações inteiras de bruxas, uma convicção que depois aplicaram em sua campanha de cristianização na Europa. Dessa forma, a adoção do extermínio como estratégia política por parte dos Estados europeus constituiu outra importação proveniente do Novo Mundo, que era descrito pelos missionários como “a terra do demônio” e que, muito possivelmente, tenha inspirado o massacre dos huguenotes e a massificação da caça às bruxas a partir das últimas décadas do século XVI (Parinetto, 1998, p. 417-35)19.

Segundo Parinetto, o uso dos informes de “Índias”, por parte dos demonólogos, constitui uma evidência da decisiva conexão que existia entre ambas as perseguições. Parinetto se concentra em Jean Bodin, mas também menciona Francesco Maria Guazzo e cita – como um exemplo do “efeito boomerang” produzido pela implementação da caça às bruxas na América – o caso do inquisidor Pierre Lancre, que, durante uma perseguição de vários meses na região de Lapurdi Labor êde – que, como sustenta Parinetto, todas tinham sua matriz no Novo Mundo.

Como utilizar essa teoria e onde traçar a linha entre o explicável e o especulativo? Trata-se de uma pergunta que os futuros estudiosos deverão responder. Me limito, nesse sentido, a realizar algumas observações.

A tese de Parinetto é importante na medida em que nos ajuda a dissipar o eurocentrismo que tem caracterizado o estudo da caça às bruxas; potencialmente pode responder algumas das perguntas que têm surgido em torno da perseguição das bruxas europeias. Sua principal contribuição está, no entanto, no fato de que amplia a nossa consciência sobre o caráter global do desenvolvimento capitalista e nos ajuda a nos darmos conta de que, no século XVI, já existia na Europa uma classe dominante que estava envolvida de todas as formas – em termos práticos, políticos e ideológicos – implicada na formação de um proletariado mundial e que, por tanto, atuava continuamente a partir do conhecimento que reunia em esfera internacional na elaboração de seus modelos de dominação.

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Francesco Maria Guazzo, Compendium Maleficarum (Milão, 1608). Guazzo foi um dos demonólogos mais influenciados pelos relatos vindos das Américas. Este retrato de bruxas rodeando os restos de corpos desenterrados ou tirados da forca apresenta reminiscências de um banquete canibal.

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Canibais preparando sua refeição. Wahrhaftige Historia, de Hans Staden (Marburg, 1557).

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Preparação para o Sabá. Gravura alemã do século XVI.

Quanto a suas alegações, a história da Europa, anterior à Conquista, basta para provar que os europeus não precisavam cruzar o oceano para descobrir sua vontade de exterminar aqueles que cruzavam seu caminho. Também é possível explicar a cronologia da caça às bruxas na Europa sem recorrer à hipótese do impacto do Novo Mundo, uma vez que os anos de 1560 a 1620 testemunharam um empobrecimento generalizado e um deslocamento social na maior parte da Europa Ocidental.

Com a finalidade de estimular uma nova forma de pensar a caça às bruxas na Europa, a partir do ponto de vista do que aconteceu na América, as correspondências temáticas e iconográficas entre ambas resultam muito sugestivas. A questão do uso de unguentos é um dos pontos mais reveladores, na medida em que as descrições do comportamento dos sacerdotes astecas ou incas, em relação aos sacrifícios humanos, evocam os encontrados em algumas demonologias que descrevem os preparativos das bruxas para o sabá. Conforme a seguinte passagem narrada por Acosta (1590, p. 262-63), na qual considera a prática americana como uma perversão do hábito cristão de consagrar os sacerdotes ungindo-os:

Os sacerdotes-ídolos no México se besuntavam da seguinte maneira. Se engorduravam dos pés á cabeça, inclusive no cabelo […] a substância com a qual se manchavam era chá comum, porque este, desde a Antiguidade, sempre constituiu uma oferenda a seus deuses e por isso foi muito adorado […] esta era a forma comum de se engordurar exceto quando compareciam a um sacrifício […] ou quando iam às cavernas onde guardavam seus ídolos, situação em que utilizavam um unguento diferente para dar coragem […] Este unguento era feito de substâncias venenosas […] rãs, salamandras, cobras […] com este unguento eles podiam se converter em magos (brujos) e falar com o Diabo.

Supostamente, as bruxas europeias espalhavam a mesma infusão venenosa sobre seus corpos (segundo seus acusadores) com a finalidade de obter o poder de voar até o sabá. Mas não se pode garantir que esse assunto tenha se iniciado no Novo Mundo, uma vez que nos juízos e nas demonologias do século XV já se encontravam referências a mulheres que preparavam unguentos com o sangue de sapos ou dos ossos de crianças20. Por outro lado, é possível que os informes da América revitalizassem essas acusações, acrescentando novos detalhes e outorgando a eles maior autoridade.

A mesma consideração serve para explicar a correspondência iconográfica entre as imagens do sabá e as diversas representações da família e do clã canibal que começaram a aparecer na Europa nos finais do século XVI e que permitem a compreensão de muitas outras “coincidências”, tais como o fato de que as bruxas, tanto na Europa como na América, foram acusadas de sacrificar crianças ao Diabo (ver figuras).

A caça às bruxas e a globalização

Durante a última metade do século XVII, a caça às bruxas na América continuou se desenvolvendo em ondas, até que a persistência da diminuição demográfica e a crescente segurança política e econômica da estrutura de poder colonial se combinaram, pondo fim à perseguição. Dessa forma, na mesma região em que se desenvolveram as grandes campanhas anti-idolatria nos séculos XVI e XVII, a Inquisição renunciou qualquer tentativa de influenciar as crenças religiosas e morais da população, aparentemente porque considerava que elas já não representavam um perigo para o domínio colonial a partir do século XVIII. A substituição da perseguição se deu com uma perspectiva paternalista que considerava a idolatria e as práticas mágicas como debilidades de pessoas ignorantes, que não valiam a pena serem consideradas por “gente de razão” (Behar, 1987). A partir daí, a preocupação pela adoração ao Diabo se deslocou para as recentes plantações de escravos no Brasil, Caribe e América do Norte, onde – começando com as guerras do Rei Felipe – os colonos ingleses justificaram os massacres dos índios americanos nativos, qualificando-os de servos do diabo (Williams e Williams Adelman, 1978, p. 143).

Os julgamentos de Salém também foram explicados pelas autoridades locais com o argumento de que aqueles que viviam na Nova Inglaterra haviam se estabelecido na terra do diabo. Como assinalou Cotton Mather anos mais tarde, ao recordar-se dos fatos ocorridos em Salem:

Encontrei algumas coisas estranhas […] que me fizeram pensar que esta guerra inexplicável (a guerra iniciada pelos espíritos do mundo invisível contra as pessoas de Salem) poderia ter suas origens entre os índios, cujos principais chefes são famosos, inclusive entre alguns de nossos cativos, por terem sido horríveis feiticeiros e magos diabólicos que, como tais, conversavam com os demônios. (ibidem, 145)

Nesse contexto, é significativo que os julgamentos de Salém tenham sido provocados por adivinhações de uma escrava índia do Oeste – Tituba – que foi uma das primeiras a serem presas, e que a última execução de uma bruxa, em território de língua inglesa, fosse de uma escrava negra, Sarah Bassett, morta nas Bermudas em 1730 (Daly, 1978, p. 179). De fato, no século XVIII, a bruxa estava se convertendo em uma praticante africana de obeah, um ritual que os colonos temiam e demonizavam por considerá-lo uma incitação à rebelião.

No entanto, a abolição da escravidão não pressupôs a desaparição da caça às bruxas do repertório da burguesia. Pelo contrário, a expansão global do capitalismo, por meio da colonização e da cristianização, assegurou que esta perseguição fosse implantada no corpo das sociedades colonizadas e, com o tempo, posta em prática pelas comunidades subjugadas em seu próprio nome e contra seus próprios membros.

Por exemplo, na década de 1840, houve uma onda de queima de bruxas no oeste da Índia. Nesse período foram queimadas mais mulheres por serem consideradas bruxas que na prática do sati21 (Skaria, 1997, p. 110). Esses assassinatos se deram no contexto da crise social causada tanto pelo ataque das autoridades coloniais contra as comunidades que viviam nos bosques – nas quais as mulheres tinham um maior grau de poder que nas sociedades de casta, em que moravam nas planícies – como pela desvalorização colonial do poder feminino, que teve como resultado o declínio do culto das deusas (ibidem, p. 139-40).

A caça às bruxas também ocorreu na África, onde sobrevive até hoje como um instrumento chave de divisão em muitos países, especialmente aqueles que, em determinado momento, estiveram implicados com o comércio de escravos, como a Nigéria e a África do Sul. Nessas regiões, a caça às bruxas tem sido acompanhada da perda de posição social das mulheres, provocada pela expansão do capitalismo e da intensificação da luta pelos recursos que, nos últimos anos, vem se agravando pela imposição da agenda neoliberal. Como consequência da competição, de vida ou morte, pelos recursos cada vez mais escassos, uma grande quantidade de mulheres – em sua maioria idosas e pobres – foram perseguidas, durante a década de 1990, no norte de Transvaal, onde setenta delas foram queimadas nos primeiros quatro meses de 1994 (Diario de Mexico, 1994). Também foram denunciados casos de caça às bruxas no Quênia, Nigéria e Camarão durante as décadas de 1980 e 1990, coincidindo com a imposição da política de ajuste estrutural do Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, algo que levou a uma nova série de cercamentos, causando um empobrecimento sem precedentes da população22.

Na década de 1980, na Nigéria, meninas inocentes confessavam ter matado dezenas de pessoas, enquanto que em outros países africanos foram encaminhadas aos governantes petições a fim de que as bruxas fossem perseguidas com maior rigor. Enquanto isso, na África do Sul e no Brasil, mulheres idosas foram assassinadas por vizinhos e parentes sob a acusação de bruxaria. Ao mesmo tempo, uma nova classe de crenças de “bruxarias” começou a se desenvolver. Ditas crenças apresentavam semelhanças com as que foram documentadas por Michael Taussing na Bolívia a partir das quais os pobres suspeitavam que os nouveau riches haviam adquirido sua riqueza por meios ilícitos e sobrenaturais, acussando-os de querer transformar suas vítimas em zumbis e colocá-los para trabalhar (Gerschiere e Nyamnjoh, 1998, p. 73-4).

Poucas vezes chegam à Europa e aos EUA casos sobre as caçarias de bruxas que ocorrem na África ou na América Latina, da mesma forma que as caças às bruxas dos séculos XVII e XVII foram durante muito tempo de pouco interesse para os historiadores. Inclusive, nos casos conhecidos, sua importância é normalmente ignorada, de tão disseminada que é a crença de que estes fenômenos pertencem a uma era longínqua e que não têm vinculação alguma com os tempos presentes.

Se aplicarmos, no entanto, as lições do passado ao presente, nos damos conta de que a reaparição da caça às bruxas em tantas partes do mundo durante a década de 1980 e 1990 constitui um sintoma claro de um novo processo de “acumulação primitiva”, o que significa que a privatização da terra e de outros recursos comunais, o empobrecimento massivo, o saque e o fomento de divisões de comunidades que antes estavam em coesão tem voltado a fazer parte da agenda mundial. “Se as coisas continuam dessa forma” – comentavam as idosas de uma aldeia senegalesa a um antropólogo norte americano, expressando seus temores em relação ao futuro – “nossas crianças se comerão umas às outras”. E, com efeito, isto é o que se consegue por meio da caça às bruxas, seja orquestrada de cima para baixo, como uma forma de criminalização da resistência à expropriação, ou de baixo para cima, como um meio para se apropriar dos recursos cada vez mais escassos, como parece ser o caso de alguns lugares na África atualmente.

Em alguns países, este processo requer ainda uma mobilização de bruxas, espíritos e diabos. Mas não deveríamos nos enganar pensando que isso não nos concerne. Como Arthur Miller observara em sua interpretação dos julgamentos de Salem, assim que tiramos a parafernália metafísica da perseguição às bruxas, começamos a reconhecer nela fenômenos que estão muito próximos de nós.

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Pode-se ver refletida a africanização da bruxa nesta caricatura de uma “pétroleuse”, de um panfleto contrarrevolucionário de 1871. Note-se seu chapéu e brincos incomuns e suas características africanas, sugerindo o parentesco entre as comunardas e as mulheres africanas “selvagens” que incutiam nos escravos a coragem da revolta, assombrando a imaginação da burguesia francesa como um exemplo de selvageria política.

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Notas
1. ↑ N.T.P. Huacas são divindades andinas que fazem parte da cultura inca e de culturas anteriores.
2. ↑ N.T.P. Puna é um bioma de pastagens e matagais de montanha encontrado na parte central da Cordilheira dos Andes.
3. ↑ Na verdade, Sicórax, a bruxa, não entrou na imaginação revolucionária latino-americana do mesmo modo que Calibã. Ela ainda permanece invisível, o mesmo que ocorreu, durante muito tempo, com a luta das mulheres contra a colonização. Em relação a Calibã, o que ele defendeu foi bem expressado em um ensaio de grande influência do escritor cubano Roberto Fernández Retamar (1989, p. 5-21):
Nosso símbolo não é, então, Ariel […], mas Calibã. Isso é algo que vemos com particular nitidez os mestiços que vivem nas mesmas ilhas em que viveu Calibã. Próspero invadiu as ilhas, matou nossos ancestrais, escravizou Calibã e ensinou-lhe seu idioma para se comunicar com ele. O que mais pode fazer Calibã, senão utilizar este mesmo idioma — atualmente, ele não possui outro — para maldizer, para fazer com que caia sobre ele a “praga vermelha”? […] Desde Tupac Amaru […] Toussaint-Louverture, Simón Bolívar […] José Martí […] Fidel Castro […] Che Guevara […] Franz Fanon […] — qual é a nossa história, qual é a nossa cultura, senão a história, a cultura de Calibã? (1989, p. 14; 33-4)
Em relação a essa questão, ver também Margaret Paul Joseph, quem, em Caliban in Exile Calibã no exílio (1992-2), escreve:

Dessa forma, Próspero e Calibã nos proporcionam uma poderosa metáfora do colonialismo. Um ramo dessa interpretação aborda a condição abstrata de Calibã, vítima da história, frustrado ao entender-se completamente carente de poder. Na América Latina, o nome de Calibã tem sido adotado de um modo mais positivo, tendo em vista que Calibã parece representar as massas que lutam e se levantam contra a opressão da elite.
4. ↑ Em seu relato sobre a Ilha de São Domingos, em História Geral das Índias (1551), Francisco López de Gómara pôde declarar com total certeza que “o deus mais importante que existe nessa ilha é o diabo” e que o diabo vivia entre as mulheres (de Gomara, p. 49). De forma parecida, o Livro V da História (1590) de Acosta, no qual se discute a religião e os costumes dos habitantes do México e do Peru, é dedicado às diversas formas de adoração ao diabo dessas populações, que incluíam sacrifícios humanos.
5. ↑ “Esta imagem de galibi/canibal”, escreve Retamar, “contrasta com uma outra imagem do homem americano presente nos escritos de Colombo: a do aruaque das Grandes Antilhas – principalmente nosso taino – que é representado como pacífico, dócil, até mesmo temeroso, e covarde. Ambas visões dos aborígenes americanos se difundiriam rapidamente pela Europa […] O taino se transformará no habitante paradisíaco de um mundo utópico […] O galibi, por sua vez, dará lugar ao canibal – um antropófago, um homem bestial, situado à margem da civilização, a quem é preciso combater até a morte. No entanto, ambas visões estão mais próximas do que pode parecer à primeira vista”. Cada imagem corresponde a uma intervenção colonial – assegurando seu direito de controlar as vidas da população aborígene do Caribe – que, segundo Retamar, continua até o presente. Retamar assinala que o extermínio tanto dos amáveis tainos quanto dos ferozes galibis constitui uma prova da afinidade entre estas duas imagens (ibidem, 23-4).
6. ↑ N.T.P. Os tainos formaram um povo que habitou as Bahamas, as Grandes Antilhas e as Pequenas Antilhas do Norte, no Caribe.
7. ↑ Os sacrifícios humanos ocupam um lugar muito importante no relato de Acosta sobre os costumes religiosos dos incas e dos astecas. Acosta descreve como, durante certas festividades no Peru, de quatrocentas crianças de dois a quatro anos, trezentas eram sacrificadas,– “espetáculo forte e desumano”, segundo suas palavras. Entre outros sacrifícios, descreve também o de setenta soldados espanhóis capturados durante uma batalha no México e, da mesma forma que Gómara, afirma, com total certeza, que tais matanças eram obras do diabo. (Acosta, 1962, p. 250 e segs).
8. ↑ Na Nova Inglaterra, os médicos administravam remédios “feitos com cadáveres humanos”. Entre os mais populares, universalmente recomendado como uma panaceia para qualquer problema, estava a “Múmia”, um remédio preparado com os restos de um cadáver seco ou embalsamado. Em relação ao consumo de sangue humano, Gordon-Gruber (1988, p. 407) escreve que “vender o sangue de criminosos decapitados era uma prerrogativa dos executores. Era dado ainda quente a epiléticos ou a outros clientes que esperavam em meio à multidão, ‘com o copo na mão’, no lugar da execução”.
9. ↑ Walter L. Williams (1986, p. 138) escreve:
Os espanhóis nunca se deram conta do motivo pelo qual os índios estavam sendo consumidos pelas doenças, mas tomaram o fenômeno como um indício de que essa realidade era parte dos planos de Deus para eliminar os infiéis. Oviedo concluiu: “Não é sem motivo que Deus permite que eles sejam destruídos. E não tenho dúvidas de que, devido a seus pecados, Deus logo se livrará deles”. Mais tarde, em uma carta destinada ao rei, condenando os maias por aceitarem o comportamento homossexual, afirmou o seguinte: “Desejo mencioná-lo, a fim de declarar ainda mais fortemente o motivo pelo qual Deus castiga os índios e a razão pela qual não têm sido merecedores de sua misericórdia”.
10. ↑ O fundamento teórico do argumento de Sepúlveda a favor da escravização dos índios era a doutrina de Aristóteles sobre a “escravidão natural” (Hanke, 1970, p. 16 e segs).
11. ↑ A mina de Potosí foi descoberta em 1545, cinco anos antes de ocorrer o debate entre Las Casas e Sepúlveda.
12. ↑ Na década de 1550, a Coroa espanhola dependia de tal forma dos metais preciosos da América para sobreviver – dos quais necessitava para pagar os mercenários que lutavam em suas guerras – que confiscava as cargas de lingotes de ouro e prata que chegavam em navios privados. Normalmente, estes navios transportavam de volta o dinheiro que havia sido guardado por aqueles que tinham participado da Conquista e que agora estavam se preparando para aposentar-se na Espanha. Dessa forma, durante alguns anos, eclodiu um conflito entre os expatriados e a Coroa, que culminou na aprovação de uma nova legislação que limitava o poder de acumulação dos primeiros.
13. ↑ Na obra Tribute to the Household (1982), de Enrique Mayer, encontra-se uma poderosa descrição dessa resistência. Nela, são descritas as famosas visitas que os encomenderos costumavam fazer nas aldeias, com a finalidade de fixar o tributo que cada comunidade devia a eles e à Coroa. Nos vilarejos andinos, a procissão de homens a cavalo podia ser vista horas antes de sua chegada, diante da qual muitos jovens fugiam, as crianças eram realocadas em casas diferentes e os recursos eram escondidos.
14. ↑ O nome Taki Onqoy descreve o transe em que entravam, durante a dança, os participantes do movimento.
15. ↑ Philippe Descola escreve que entre os Achuar, uma população da alta Amazônia, “a condição necessária para um cultivo eficaz depende do comércio direto, harmonioso e constante com Nunkui, o espírito protetor das hortas” (Descola, 1994, p. 192). Isto é o que faz toda mulher quando canta canções secretas “do coração” e ensalmos cura de doenças por meio de feitiços e rezas, medicina alternativa mágicos às plantas e ervas de seu jardim, encorajando-as a crescer (ibidem, 198). A relação entre a mulher e o espírito que protege seu jardim é tão íntima que quando ela morre “seu jardim segue seu exemplo, dado que, à exceção de sua filha solteira, nenhuma outra mulher se animaria a sustentar uma relação desse tipo, se ela mesma não houvesse iniciado”. Quanto aos homens, “são completamente incapazes de substituir suas esposas, se esta necessidade aparecer […] Quando um homem já não tem uma mulher (mãe, esposa, irmã ou filha) que cultive sua horta e prepare sua comida, não há alternativa além do suicídio”. (Descola, 1994, p. 175
16. ↑ N.T.P. Na Espanha e suas colônias, era um oficial público que dava, em voz alta, notícias de interesse público, assim como fazem hoje os vendedores ambulantes.
17. ↑ Esta é a expressão utilizada por Michael Taussig, em Shamanism, Colonialism and the Wild Man Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem (1987, p. 5), com a finalidade de destacar a função do terror no estabelecimento da hegemonia colonial na América:
Quaisquer que sejam as conclusões a que cheguemos sobre a rapidez com que se efetivou a hegemonia, seria pouco sensato subestimar o papel do terror. E com isso quero dizer que devemos analisar a fundo o terror, que não constitui apenas um estado fisiológico, mas também social, cujas características particulares permitem que ele sirva como um mediador por excelência da hegemonia colonial: o espaço da morte, onde os índios, os africanos e os brancos pariram um Novo Mundo. (destaque nosso)
Taussig acrescenta, todavia, que o espaço da morte constitui também um “espaço de transformação”, dado que “por meio da experiência de encontrar-se próximo da morte também é possível experimentar um sentido mais intenso da vida; por meio do medo é possível chegar não só a um crescimento da consciência de si mesmo, mas também a uma separação e, depois, a uma perda da adaptação à autoridade” (ibidem, p. 7
18. ↑ Em relação à posição das mulheres no México e no Peru antes da Conquista, ver respectivamente June Nash (1978, 1980), Irene Silverblatt (1987) e María Rostworowski (2001). Nash discute acerca da decadência do poder das mulheres astecas, conforme ocorreu a transformação de uma “sociedade baseada no parentesco […] para um império estruturado em classes”. Assinala que, durante o século XV, os astecas desenvolveram-se no sentido da formação de um império guerreiro, tendo surgido, então, uma rígida divisão sexual do trabalho; ao mesmo tempo as mulheres (dos inimigos vencidos) tornaram-se o “o espólio a ser repartido pelos vitoriosos” (Nash, 1978, p. 356-58). Simultaneamente, as divindades femininas deram lugar a deuses masculinos – especialmente o sanguinário Huitzilopochtli –, ainda que continuassem sendo adoradas pela gente comum. De todo modo, as “mulheres da sociedade asteca possuíam muitas habilidades como produtoras independentes de artesanatos de cerâmica e tecidos, como sacerdotisas, médicas e comerciantes. A política de desenvolvimento espanhola em contraposição, tal como foi levada a cabo pelos sacerdotes e administradores da Coroa, desviou a produção doméstica em direção aos estabelecimentos comerciais de artesanato ou aos moinhos dirigidos por homens”. (Ibidem
19. ↑ Parinetto assinala que a conexão entre o extermínio dos “selvagens” ameríndios e o dos huguenotes ficou gravada de forma clara na consciência e na literatura dos franceses protestantes, depois da Noite de São Bartolomeu, influenciando de maneira indireta os ensaios de Montaigne sobre os canibais e, de uma forma completamente distinta, a associação que estabeleceu Jean Bodin entre as bruxas europeias e os índios canibais e sodomitas. Citando fontes francesas, Parinetto sustenta que esta associação (entre os selvagens e os huguenotes) alcançou seu auge nas últimas décadas do século XVI, quando os massacres perpetrados pelos espanhóis na América – como a matança, ocorrida na Flórida, em 1565, de milhares de colonos franceses acusados de serem luteranos – tornaram-se “uma arma política amplamente utilizada” na luta contra o domínio espanhol (Parinetto, 1998, p. 429-30).
20. ↑ Faço especial referência aos julgamentos que ocorreram na Inquisição no Delfinado, na década de 1440, durante os quais inúmeras pessoas pobres (camponeses ou pastores) foram acusadas de cozinhar crianças para fazer pós mágicos com seus corpos (Russell, 1972, p. 217-18); e à obra do suábio Johannes Nider, pertencente à ordem dominicana, Formicarius (1435), na qual lemos que as bruxas “cozinham seus filhos, fervem-nos, comem sua carne e bebem a sopa que sobra na panela […] Da matéria sólida, elas fazem um unguento ou pomada mágica, sendo a obtenção desta a terceira principal causa de assassinato de crianças” (ibidem, p. 240). Russell aponta que “esse unguento ou pomada foi um dos elementos mais importantes da bruxaria no século XV e seguintes.” (ibidem).
21. ↑ N.T.P. Sati era um antigo costume entre algumas comunidades hindus no qual as viúvas se sacrificavam na pira funerária de seu marido morto. Tornou-se uma prática proibida na Índia a partir do colonialismo britânico.
22. ↑ Com relação à “renovada atenção que recebeu a bruxaria na África, conceituada explicitamente em relação às mudanças da modernidade”, ver a edição de dezembro de 1998 de African Studies Review, que é dedicada a esta questão. Em particular, Diane Ciekawy e Peter Geschiere, em “Containing Witchcraft: Conflicting Scenarios in Postcolonial Africa” (ibidem, p. 1-14). Ver também Adam Ashforth, Witchcraft, Violence and Democracy in South Africa Bruxaria, violência e democracia na África do Sul (Chicago: Univ. of Chicago Press, 2005) e o documentário “Witches in Exile” Bruxas em exílio, produzido e dirigido por Allison Berg (California Newsreel, 2005).

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ZILBOORG, Gregory (1935). The Medical Man and the Witch During the Renaissance. Baltimore: John Hopkins Press.

ZOLRAK, Durkon (1996). The Tarot of the Orishas. St. Paul (MN): Llewellyn Publications.

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muito massa! Mas já é a versão integral ou falta mais coisa? quem traduziu vc sozinho?

 
 

a tradução é daquele link, é um coletivo de mulheres, acredito que todas de SP

 
 

o livro tá todo aí

 
   

pode ser que seja um grupo de estudos da SOF, lembro que havia um pessoal lendo o livro…